Ando meio saudosista. De vez em quando acontece. Deve ser aquela falta que sinto dos corredores e laboratórios onde aprendi a fazer ciência.
Eu me lembro bem daquela sensação de estar fazendo algo importante. As conversas normalmente giravam em torno do procedimento adotado num determinado experimento, o cuidado na análise estatística, a construção de dispositivos os mais diversos para a coleta de dados, a busca incessante de dados que pudessem ser corretamente interpretados diante de uma teoria. Para confirmá-la ou descartá-la.
Se é que entendo bem a cultura geral dos nossos dias, ciência é aquilo que propicia celulares com mais recursos, computadores mais rápidos e equipamentos médicos com lindas imagens 3D.
Não pode ser só isso. Foi o que aprendi com Carl Sagan.
O começo
Carl Sagan nasceu em 1939 em Nova York. O pai, Sam Sagan, era judeu de origem ucraniana, e a mãe, Rachel Molly Gruber, uma judia de origem húngara. O pai trabalhava pesado na indústria têxtil durante os anos de recessão, e a mãe cuidava dos filhos Carl e Carol. O pai era considerado um homem de grande habilidade, e a mãe sempre deu tudo o que tinha de seus recursos pessoais para atender Carl, que mostrou desde cedo ser adiantado para sua idade.
Aos cinco anos já era fascinado pelas estrelas, e foi procurar algo que pudesse ler, aprender sozinho sobre elas. Procurou uma biblioteca pública. Diz a lenda que a atendente, quando ouviu o menino de cinco anos pedindo livros sobre as estrelas, trouxe para ele uma revista com as estrelas, mas as do cinema. Mas ele se explicou e conseguiu o que queria. Pegou os que pôde, leu tudo, não pararia mais. Sua imaginação também foi agitada pelas obras de ficção científica de Edgar Rice Burroughs, que usava a ideia de vida em outros planetas, especialmente Marte.
Os pais eram judeus de linha reformista. Isso significa que eles respeitavam as tradições de seu povo, mas ensinavam que tudo deve passar pelo crivo da coerência intelectual. Esse ambiente, misturado com a dedicação da mãe com seu filho adiantado, criou para Sagan um ambiente de imaginação fértil que sempre deveria ser posto à prova. Nas palavras dele:
“Meus pais não eram cientistas. Eles não sabiam quase nada sobre ciência. Mas, ao me introduzirem simultaneamente ao ceticismo [vindo do judaísmo reformista] e ao saber, ensinaram-me os dois modos de pensamento coexistentes e essenciais para o método científico.”
Essa marca de conhecimento, misturado a uma dose de ceticismo e a outra dose de deslumbramento diante dos planetas, seria sempre a marca registrada de Carl Sagan.
Casamentos, filhos e divórcios
Sagan casou três vezes. A primeira esposa foi Lynn Margulis, com quem teve Dorion e Jeremy. Lynn ficou casada com Sagan durante sete anos, e foi uma bióloga de grande destaque por seu trabalho com evolução celular. A segunda esposa foi Linda Salzman, escritora e roteirista, com quem teve Nick. O casamento durou treze anos, e acabou num tumultuado e desgastante divórcio, cujo motivo foi a paixão pela escritora Ann Druyan, a terceira esposa e sobre a qual existem mais informações pessoais.
Muitos conhecidos testemunharam o amor entre Sagan e Ann. O trabalho que conduziram juntos mostrou que a ligação também tinha um forte componente de conhecimento. Ann conheceu Sagan na NASA, a agência espacial americana, onde ocupava o cargo de Diretora Criativa (embora seja difícil imaginar o que isso significa numa agência espacial). Juntos tiveram Sasha e Sam.
O que ficou para nós como testemunho pessoal da importância do trabalho conjunto dos dois foram os escritos de Sagan. Basta mencionar que Ann colaborou para e publicou postumamente seu livro de coletâneas de textos Bilhões e bilhões, e o roteiro para o filme Contato (1997), baseado no romance de mesmo nome.
Dos filhos de Sagan, provavelmente conhecemos Nick, que escreveu, entre outros trabalhos, diversos episódios da franquia Star Trek.
Vida acadêmica
A educação básica de Sagan foi completada em escolas públicas na região de Nova York, uma vez que sua infância sempre foi modesta. Em 1951, ele conseguiu bolsa para estudar na Universidade de Chicago, e lá seguiu o abrangente programa liberal de leitura das principais obras da literatura e da cultura ocidentais.
Além deste programa, Sagan estudou astronomia e biologia, obtendo em 1960 seu doutorado em astronomia. Foi professor de astronomia em Harvard, mas a famosa universidade negou a ele a efetivação. Desde este momento, em 1968, ele passou a ensinar na Universidade Cornell, em Nova York, onde assumiu o cargo de diretor do departamento de estudos planetários e onde ficou até o fim da vida.
Informações muito significativas podem ser intuídas desse histórico acadêmico. A primeira é que Sagan transitava bem entre as ciências exatas e humanas. Essa é exatamente a tônica de uma das obras mais populares de Sagan, a série Cosmos, que foi vista por mais de 400 milhões de pessoas no mundo todo.
Por isso, o cientista não se encaixava em programas acadêmicos rígidos. Foi exatamente isso que o impediu de progredir em Harvard, cuja escola de astronomia era fechada para qualquer tipo de inovação.
Um homem celebrado por seu intelecto poderoso, versátil, que conhecia literatura e se comunicava muito bem, seja falando com sua atraente voz de barítono, seja escrevendo como quem conversa à mesa do jantar: está aí a receita primeva do sucesso do mais destacado e competente divulgador que a ciência já teve.
A ciência de Sagan
Ao longo de uma carreira prolífica, o homem escreveu mais de 300 artigos científicos. Era um entusiasta dos experimentos conduzidos segundo o método científico e usava toda sua capacidade para entender os planetas e o que acontecia neles, sempre mantendo a esperança de que, nesse universo tão vasto, não estaríamos sozinhos.
Se no começo dos anos 50 ainda se acreditava que Vênus tinha clima semelhante ao da Terra, foi em 1956 que descobriu-se as ondas de rádio muito intensas na faixa das micro-ondas emitidas por esse planeta. E isso só poderia significar duas coisas: que a origem dessas micro-ondas era uma superfície muito quente ou a ionosfera, a parte mais externa de uma atmosfera. Foi o doutorado de Sagan mostrou que a emissão de micro-ondas vinha mesmo da superfície quente, que gerava um efeito estufa no planeta.
Mais tarde, foi junto com James Pollack que Sagan mostrou que as propriedades óticas dos gases e aerossóis venusianos explicavam as altas temperaturas altas. Já trabalhando com a NASA, participou do projeto Mariner 2, uma sonda que foi capaz de coletar dados de Vênus e mostrar que as temperaturas eram realmente altas, o que explicava as emissões de micro-ondas detectadas. Ponto para o cientista.
Seu trabalho de pesquisa também foi capaz de mostrar as nuvens formadas no planeta não eram de água como se acreditava, mas ácido sulfúrico. A descoberta lhe serviu de inspiração: em uma cena do filme Contato, Ellie, personagem principal e alter-ego de Sagan, conta como foi fisgada ainda criança pela ideia de planetas cheios de gases venenosos e como isso a levou a ser uma astrônoma. É a poderosa maneira de Sagan de transformar um dado científico em experiência pessoal de amor pela ciência.
Marte foi outro planeta que capturou a imaginação de Sagan desde pequeno, especialmente nas histórias de Edgard Rice Burroughs sobre o planeta: o escritor criou o personagem John Carter, herói da guerra civil americana e que foi abduzido por marcianos verdes para lutar nas guerras de lá.
Para o conhecimento da época, Marte tinha um ambiente inóspito, mas que não impedia o surgimento e a manutenção da vida (normalmente se espera encontrar bactérias ou outro tipo de vida unicelular). Mas descobriu-se que havia uma grande variação sazonal no coeficiente de reflexão do sol em partes diferentes, ou seja, o quanto de luz solar em diferentes partes da atmosfera marciana era refletida de volta para o espaço.
Com essa informação, Sagan e colaboradores foram capazes de mostrar que as variações no coeficiente de reflexão eram devido a fortes variações sazonais de ventos muito intensos, o que impediu definitivamente que isso fosse interpretado como evidência de vida em Marte.
É irônico que seu trabalho como cientista tenha enterrado suas imaginações de criança. Sagan podia ser imaginativo e esperançoso, mas nunca colocou suas imaginações e esperanças à frente de seu ceticismo, de sua análise objetiva nem dos dados que coletava nas inúmeras missões que comandou na NASA.
Exatamente porque Sagan era um homem tão metódico e engenhoso, ele pôde contribuir durante três décadas – de 1960 a 1980 – com a NASA, o programa espacial americano. Lá, definia as missões e os planetas a serem estudados e dava as últimas instruções para os astronautas das missões Apollo.
Os relatos das equipes são de que Sagan era capaz de produzir diversas teorias para explicar os dados enviados por cada uma dessas missões. Nunca se contentava com a explicação mais comum nem pela ideia que parecia angariar simpatia mais rapidamente.
Um homem de ideias
Sagan era um mestre dos cálculos feitos em guardanapos, um cientista de ideias.
Na prática, isso significa que ele se responsabilizava pelas ideias mais amplas, pelo enquadramento teórico mais abrangente, e normalmente deixava os cálculos finos para seus alunos ou colaboradores. Ele olhava os dados que recebia e propunha diversas explicações alternativas e as maneiras de decidir, cientificamente, entre uma teoria e outra.
Carl é comumente descrito como astrônomo. Apesar de verdadeira, essa designação fica aquém do merecido. Ele também era cosmólogo, pois queria saber que respostas e perspectivas o cosmos tinha a oferecer. Além disso, era exobiólogo, designação nova na época, que indica aquelas pessoas que olham para o cosmos em busca de outros tipos de vida.
Em seus escritos, especialmente o romance Contato, surge com clareza sua vontade de que outras civilizações mais adiantadas pudessem nos ensinar a sobreviver à adolescência tecnológica sem nos destruirmos.
Sagan também era um professor nato. Adorava explicar as coisas, tarefa sempre executada com muita clareza e ordem de raciocínio. Fazia questão de dar aulas para alunos de graduação em Cornell, atividade comumente relegada para professores de menor projeção acadêmica. Diz-se que ele nunca desmereceu nenhuma pergunta e nem desmereceu quem as fazia.
Sua habilidade notável em combinar áreas de conhecimento tão diversas pode ser identificada facilmente na sua maneira de se comunicar e sua ótima retórica, que contribuiu não só para suas aulas mas também para palestras e falas em público.
Além disso, ditava seus textos ao invés de escrevê-los. Assim, ele combinava com destreza duas atratividades pessoais que estavam sempre a serviço da divulgação da ciência: a fala bem estruturada que viraria um bom texto, e a maneira bem estruturada de um texto que viraria uma palestra, uma aula, em formato oral.
Escreveu 14 livros de não ficção, um romance (Contato, que deu origem ao filme de 1990), e uma enormidade de ensaios, além dos artigos científicos que fazem parte da vida de qualquer pesquisador. Recebeu o badalado prêmio Pulitzer em 1977 por Os dragões do Éden, e foi best-seller em diversos outros títulos.
Sagan no entretenimento: a série Cosmos
A série Cosmos foi ao ar em 1980 e pode ter atingido mais de 400 milhões de pessoas ao redor do globo. Feita para a televisão em 13 episódios, levou 3 anos para ficar pronta. Foi filmada em doze países e se valeu dos melhores recursos televisivos disponíveis na época. Ficou marcada como a série que levou a grandiosidade do universo para dentro da casa de milhões de pessoas e a versão escrita continua sendo o livro de divulgação científica mais vendido da história.
Mas o que poucos sabem é que o produto causou uma série de transtornos para Sagan, embora isso tenha virado um detalhe no cômputo geral. Uma guerra de egos com o diretor Adrian Malone quase colocou o projeto a perder. Sua dedicação à série acabou por gerar descontentamentos em seu departamento na Universidade de Cornell, já que sua sala permaneceu vazia e fechada durante o período da gravação. Além disso, parte do divórcio traumático de Linda Salzman, sua segunda esposa, ocorreu durante as gravações da série, na qual Ann Druyan, a terceira esposa, contribuiu diretamente.
Esforço válido, já que a série Cosmos é, em suma, Sagan apresentando o universo em termos leigos. Para tanto, Sagan convida o espectador a fazer uma viagem na imaginação. dentro de uma nave sem limitações de tempo e espaço por todo o universo. De dentro dela ele nos explica o que vê, e especialmente transmite seu lendário senso de maravilhamento diante a imensidão do universo. Afinal, somos somos poeira das estrelas.
Espectadores de hoje certamente acharão os efeitos visuais toscos, mas o efeito do olhar de curiosidade quase infantil de Sagan, como uma criança boquiaberta que finalmente fica livre para brincar num parque imenso, permanece igualmente marcante.
Se somos feitos de poeira das estrelas, se desenvolvemos consciência e ímpeto de descoberta, se temos a ciência para nos guiar para esse conhecimento, se sabemos hoje onde estamos no universo, então talvez possamos encontrar nosso caminho como raça humana, pois a poeira cósmica virou um universo em forma de ser humano com um toque de autoconsciência. A ideia é tão intuitiva, seu apelo é tão evidente, que a gente mal percebe a ousadia da formulação. É esse outro tipo de mágica que Sagan fazia.
Ativismo
Não foi difícil para Sagan adaptar o modelo do efeito-estufa venusiano para a nossa terra. Desde seus dias de porta-voz da ciência, ele vinha alertando para o perigo do aquecimento global, como que a temer que a atmosfera de Vênus seja exatamente aquilo que a Terra vai virar se continuarmos vivendo e produzindo de maneira não sustentável.
Ter vivido sob tempos de Guerra Fria também lhe causava a preocupação inversa: a falta de raios solares. Uma de suas previsões dizia que não seria necessário nem haver uma guerra nuclear em escala total para que nós fôssemos dizimados. Se cem cidades no mundo fossem destruídas, a fumaça gerada pela destruição seria suficiente para impedir a passagem da luz solar, e isso, com o tempo, diminuiria a temperatura da terra para níveis perigosos. Ele deu a isso o nome de inverno nuclear.
O cientista era contra o programa de defesa americano proposto por Ronald Reagan, chamado popularmente de Guerra nas Estrelas. Quando Gorbachev assinou um processo unilateral de desarmamento e o governo americano se recusou a fazer qualquer compromisso, se colocou contra essa decisão. Chegou até mesmo a viajar com pesquisadores para Moscou numa tentativa de fortalecer a posição russa. Foi uma das forças que levou Reagan à assinatura do tratado de não proliferação de armas nucleares.
Ele era um cientista engajado. E tinha audiência.
Porta-voz da ciência
Sagan nunca perdeu oportunidade de mostrar a importância da ciência em qualquer entrevista, artigo para revistas ou entrevistas na televisão. Tinha uma disposição incomum de interromper trabalho, refeições ou reuniões para atender telefonemas de jornalistas em busca de sua opinião sobre algum assunto.
Sua primeira aparição no programa Tonight Show, de Johnny Carson, foi em 1973. Ele voltaria 23 vezes nos 13 anos seguintes. Um homem de presença, articulado, de maneiras informais, mas que discutia ciência com empolgação e seriedade. Ele tinha muito o que falar, uma vez que todas as missões da NASA eram coordenadas por ele. Como se o restante não bastasse, Carl era um homem talhado para a televisão.
Embora houvesse no meio científico quem o destratasse por ser popular, a verdade é que a maioria dos cientistas viam nele um representante legítimo, alguém que de fato compreendia os mecanismos da ciência porque os praticava. E os explicava com propriedade. Esses, a maioria, sentiam alívio por ter alguém que falava por eles com tamanha desenvoltura e legitimidade.
Uma vida para nosso tempo
Creio que o cientista ficaria desanimado com o que veria em nossos dias. Ele respirava uma ciência que gostaria de encontrar outras civilizações para aprender com elas, que serviria para o autoconhecimento humano.
A ciência da qual Sagan falava era cheia de esperanças, e é isso que gera nas pessoas, ainda hoje, empolgação – da qual era um veículo perfeito com suas várias e impressionantes habilidades.
Mesmo assim, se mantia cético e fiel aos dados que achava. Nunca cedeu a qualquer tipo de desonestidade intelectual. Como ele gostava de dizer, afirmações extraordinárias exigem evidências extraordinárias, e no que se refere à existência de civilizações extraterrestres, as evidências nunca chegaram perto do extraordinário.
Sagan morreu aos 62 anos depois de lutar durante 2 anos contra a mielodisplasia, um câncer raro que ataca o sangue. Mesmo depois de três transplantes de medula óssea, doadas por sua irmã, Carol, ele faleceu em 1996.
Permaneceu serenamente cético até o fim. Afinal, não acreditava nas coisas só porque gostaria que elas fossem verdade. Teve Ann Druyan ao seu lado, a mulher que amou e que foi capaz de continuar seu legado.
Se somos a maneira de o cosmos conhecer a si mesmo, seria bom que aprendêssemos com Sagan mais de ciência. Com essa antena maior e mais competente, a gente poderia ir mais longe no conhecimento e – valha-nos, Sagan! – chegar mais perto de nós mesmos.
Para aprender mais sobre Carl Sagan
1. O melhor documentário sobre a vida de Carl Sagan, da A&E
2. Para os interessados em começar a ler obras de Carl Sagan, eu recomendo dois livros que mostrarão a abrangência dos interesses do cientista: O mundo assombrado pelos demônios e Bilhões e bilhões, uma coletânea póstuma organizada por Ann Druyan sobre diversos assuntos, ambos publicados pela Companhia das Letras.
3. Dois textos foram úteis na reconstrução das credenciais acadêmicas de Carl Sagan, além de prover informações importantes sobre suas habilidades. Foram escritos por David Morrison, colaborador de Sagan e pesquisador da NASA: Carl Sagan, the people’s astronomer e Carl Sagan: biographical memoirs.
4. A série Cosmos pode ser vista no You Tube, com legendas em português. A série foi refilmada em 2014 tendo como protagonista o astrônomo Neil deGrasse Tyson, aluno de Sagan. Esse remake pode ser encontrado no Netflix.
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