Há quatro anos, durante o doutorado, eu estava em uma aula de antropologia da saúde com estudantes de várias áreas, inclusive de fora da saúde. Em certa altura, uma delas perguntou: por que não existe anticoncepcional pra homem?
Eu e outro médico na sala demos a resposta técnica: a liberação mensal do óvulo é determinada por uma variação cíclica nos hormônios femininos; administrando hormônios semelhantes por meio da pílula anticoncepcional é possível alterar esse ciclo e impedir a liberação do óvulo. Como no homem há uma produção ininterrupta de espermatozóides, era de se concordar que era mais fácil fazer um remédio contraceptivo para mulheres que para homens.
“Mas a gente já conseguiu chegar na Lua!”, retrucou a aluna.
Ela estava certa. Percebi que tinha dado uma resposta tão vazia quanto dizer que alguém precisa tratar tuberculose por seis meses com quatro antibióticos porque “é difícil tratar tuberculose”.
O tratamento dessa doença – que nos aflige há mais de 6.000 anos – tornou-se cada vez mais difícil desde a popularização dos antibióticos, na década de 1940, e hoje envolve o uso de quatro antibióticos pelos dois primeiros meses e dois deles por quatro meses, completando seis meses.
Já o HIV/aids, surgido nos primeiros anos da década de 1980, passou de uma sentença de morte (terrivelmente chamada de peste gay) para uma doença crônica controlável, com cada vez mais opções de tratamento. As características do bacilo de Koch e do vírus da imunodeficiência humana não são suficientes para justificar essa diferença: é preciso lembrar que a tuberculose afeta principalmente pessoas pobres vivendo em más condições de moradia e alimentação e presidiários, enquanto o HIV/aids atravessa todas as classes sociais, inclusive as mais abastadas, o que forma um mercado de maior potencial econômico e gera maior interesse em pesquisas.
Como funciona o remédio?
Antes de mais nada, já existem dois anticoncepcionais masculinos: a camisinha e a vasectomia. O primeiro tem a vantagem de oferecer a chamada dupla proteção (contra gravidez e infecções sexualmente transmissíveis) e ter mínimos efeitos colaterais (como alergia ao látex); quanto ao segundo, você pode conferir um texto sobre o assunto que escrevi aqui.
Mas no final do mês passado, a Endocrine Society dos Estados Unidos divulgou no portal Eurekalert! a conclusão da primeira fase de testes em humanos do hormônio sintético dodecilcarbonato de 11-beta-metil-19-nortestosterona, ou 11-beta-MNTDC. Trata-se de uma testosterona (a nandrolona) modificada para ter efeitos de hormônio masculino e de progesterona. Os pesquisadores esperam que a droga, que combina duas ações hormonais em uma, diminua a produção de espermatozoides sem afetar a libido.
Os 40 participantes da pesquisa foram distribuídos aleatoriamente em três grupos que receberiam três comprimidos diferentes entre si, sem que os participantes soubessem de qual se tratava. Dez homens tomaram placebos (pílulas sem efeito); 14 tomaram pílulas com 200mg e 16 tomaram pílulas com 400mg da substância; todos fizeram uso de um comprimido ao dia, por 28 dias contínuos.
Exames de sangue mostraram que o nível de testosterona de quem tomou o anticoncepcional diminuiu a níveis que não permitem a produção de espermatozoides, mas que os efeitos dessa insuficiência androgênica foram mínimos.
Segundo uma das pesquisadoras, isso ocorre porque “o 11-beta-MNTDC imita a testosterona no resto do corpo, mas não é concentrada o bastante nos testículos para garantir a produção de espermatozoides”. Houve poucos efeitos colaterais, como fadiga, dor de cabeça e acne, e mesmo os homens que relataram diminuição de libido ou disfunção erétil os classificaram como leves e não tiveram prejuízo em sua atividade sexual.
Como a droga leva 60 a 90 dias para afetar a produção de espermatozoides, só foi possível observar, digamos, condições hormonais contraceptivas. Ainda são necessários estudos mais longos para confirmar a supressão espermática em exames; provando-se eficaz, a droga é finalmente submetida a testes com casais sexualmente ativos. A previsão do grupo de pesquisadores é de que o anticoncepcional masculino venha a público daqui a dez anos, em 2029.
Desafios
Se a tuberculose é uma doença negligenciada por questões econômicas, a anticoncepção masculina é limitada por questões de gênero. A capacidade de ter filhos é um dos constituintes da masculinidade hegemônica, e sua interrupção, mesmo que reversível, pode afetar a autoimagem de diversos homens, comprometendo a adesão ao método.
Além disso, é sabido que homens aderem menos a ações preventivas que as mulheres, e, diferentemente delas, eles podem resistir mais livremente aos ditames da Medicina, buscando-a principalmente ao terem sua capacidade produtiva comprometida.
Espero que nos próximos dez anos de pesquisa necessários para o lançamento do anticoncepcional masculino, nossa sociedade tenha se transformado tanto que uma mulher possa perguntar a um homem, enquanto tiram a roupa: “você toma pílula?”
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