Tu já deu um soco na cara de alguém? Tá aí a moral da história, tu é um cara pacifico, nunca foi de brigar. No máximo discutir e guardar a raiva. Conter ela nos cigarros e na queda de cabelo para em seguida esquecer por se preocupar com os pulmões e com a aparência.
Daí te apresentam o carro.
E com ele, um padrão novo do conceito de sociedade, o trânsito. E lá as coisas andam em outro ritmo. Uma sociedade que tem um quê de Galeano, uma sociedade categorizada por sua interminável busca da utopia. Uma sociedade em que o tempo é sempre o objetivo e está sempre alguns quilômetros à frente e invariavelmente antes de mais algumas manobras. Onde o lado racional da mente trabalha como se tomasse facadas nas costas. Lá, o conforto é prezado. Todos buscam algo melhor. É lindo. Tu xinga para ser xingado, tu fecha para ser fechado, tu até deixa o ônibus te cortar nos dias bons, mas sempre esperando algo em troca. Lá só se deixa passar para que te deixem passar. É Regra.
Mas quando, de repente, tu xinga, é incrível. É o pleno relacionamento que se pode alcançar com essa sociedade. Alguém ouvindo tua voz. E tu berra que ele é um arrombado e vê o cara responder jogando o carro dele para cima do teu. O pavor pega, e tu joga o teu de volta. As pessoas em volta começam a diminuir, ficar para trás. Os da frente abrem espaço. Mas tu não tá emocionalmente preparado para esse tipo de coisa, que acontece e passa na vida de todos eles. E perde o controle do volante na hora de ameaçar fechar o cara. Bate com tudo. Agora os dois estão parados e ele vem caminhando na tua direção. Melhor sair do carro antes que ele fique por cima de mim na janela, tu pensa. Daí tu acha melhor não descer e ficar protegido por toda aquela lataria, mas nisso o cara já tá do lado da tua janela. E os carros passando por trás dele, e pelos lados dos carros de vocês. Alguns buzinam. Ele bota a arma na tua cara e diz Desce daí seu filhodaputa. E aí tu respira fundo e entende tudo.
É a tua mente de volta. A arma liberta teu consciente da escravidão irracional. Mas nisso, não consegue pensar em soluções viáveis para sair dessa porque já começou a pensar que não tem seguro e para pagar esse estrago todo teria que pegar outro empréstimo. Mas teu nome já tá sujo. Pensa que é melhor que ele atire. Aí tu desce do carro e ele manda tu te escorar e botar as mãos pra cima, quietinho. É nesse instante que tu reflete se já deu um soco em alguém. Sempre foi um cara pacífico. Nesse exato momento que as dívidas te abraçam. Tua mão se fecha e vai em direção à bochecha do cara que tá apontando uma arma para a tua cabeça. Ele sente o soco, mas não o suficiente. Tu nunca deu um soco, tua mão tá doendo. Tu olha para baixo e analisa a mão naquele milésimo de segundo em que espera o tiro. Aparentemente quebrou o mindinho, o dedo está torcido para o lado. Deve ter ficado esticado durante a ação. Tu nunca deu um soco. Não sente dor no dedo, mas está pensando na agonia que vai ser puxar o osso para o lugar no exato momento em que o cara puxa o gatilho da arma que estava sem balas. Mas ele sabia disso porque dá uma gargalhada enquanto gira a arma na mão para te desmaiar com uma coronhada.
Acorda na ambulância, vivo. Fica feliz quando vê que o dedo já está no lugar e enfaixado. A ambulância está quente, o paramédico do teu lado está com metade do macacão azul aberto. Ele tem uns pelos densos e molhados de suor à mostra. Não corre um vento porque a ambulância está parada. Tu lembra imediatamente da coronhada quando sente uma fisgada tão forte na cabeça que te faz fechar os olhos. Nisso, tu ouve, de olhos fechados, o motorista da ambulância berrar um putaquepariu porque ninguém está dando passagem.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.