Nota editorial: o PdH é uma plataforma de transformação das masculinidades e refletirmos sobre atos de violência e brutalidades contra pessoas gays é parte essencial de nossa causa.

Segundo a Wikipedia, homofobia seria uma série de atitudes e sentimentos negativos em relação a pessoas homossexuais, bissexuais e, em alguns casos, contra transgêneros e pessoas intersexuais.

As definições para o termo referem-se variavelmente a antipatia, desprezo, preconceito, aversão e medo irracional.

O Brasil é o país que mais mata pessoas gays por serem gays no mundo. 1 morte a cada 19 horas. Foram 445 homicídios em 2017, aumento de 30% em relação ao ano anterior. 

Não existe (nunca existiu) jornalismo imparcial. E não é momento de nos isentarmos — o país precisa de cidadãos políticos, pensantes, críticos.

Contamos com nossa comunidade para que surjam bons diálogos em torno desse corajoso relato do Gut Simon.

* * *

São Paulo, 2 de setembro de 2018.

Finalmente um domingo de sol. Pego o patins e vou direto pro Minhocão. De fone, deslizo pelo asfalto contemplando tudo: dentro e fora de mim. De repente, ligação.

Minhocão num domingo, fechado para carros e aberto para uso das pessoas

Atendo o celular e do outro lado da linha está, aos prantos, a pessoa com quem estou saindo há uns meses (boy, crush, namorado – escolha o nome que você quiser). Alô, o que foi? Perguntei assustado. Sem conseguir dizer outra coisa sem ser pedir desculpa e chorar muito, ele responde

– Acabei de apanhar feio. Me ajuda!

Como é? Sim, ele atravessava a rua pra entrar no Memorial da América Latina pro Coala Festival quando, do nada, três caras vieram pelas costas. Foram muitos chutes. O primeiro deles em cheio nas costas que o derrubou no chão.

Depois, saíram correndo enquanto gritavam – "Viadinho!! Viadinho!! Tem que apanhar mesmo!!" 

Não roubaram nada!

Não deu nem tempo de ver quem o acertou. Ali do chão, ele entendeu rapidamente que estava – mais uma vez – sofrendo uma violência por simplesmente ser quem é: uma pessoa alegre, livre, autêntica no modo de falar e de se vestir. Um homem que se apaixona por outros homens.

Confuso. Moído. Machucado. Não conseguia levantar. Tô correndo praí, eu disse.

Saí em uma mistura de raiva, indignação, desespero e uma vergonha profunda da humanidade. Um trajeto que demorou uma eternidade. Até que por Whatsapp ele me avisa que uma menina que presenciou tudo o ajudou. Ele está em direção ao metrô Vergueiro para irmos juntos ao pronto atendimento do Hospital Beneficência Portuguesa.

Subo correndo as escadas rolantes e o encontro de pé próximo à catraca com as mãos nas costas e uma expressão desesperada. A roupa encharcada de suor. Apesar de mal andar de tanta dor, percebi rapidamente que o choro era de outra coisa.

Ele me abraçou forte e só conseguia dizer:

– Eu não aguento mais.

Cruelmente, aquele crime de ódio do qual ele tinha sido vítima havia deixado nele a maior das feridas.

– Tô com vergonha do meu próprio corpo. Me sinto culpado. As pessoas têm nojo de mim. Como vou encarar minha mãe? Eu cansei de ser estatística.

Vergonha.

Aquela última frase me pegou em cheio. Ambos sabíamos ao quê ele se referia. Há alguns anos, quando não nos conhecíamos ainda, ele estampou a capa dos principais jornais do país. Foi abordado com uma faca na barriga no centro de SP às 17h da tarde em um dia de semana qualquer.

Os três homens o levaram a um hotelzinho barato. Um deles rendeu o recepcionista enquanto os outros dois subiram com ele pro apartamento dizendo:

– Nós vamos matar esse viadinho!!!

Ele não se lembra de muita coisa e me contar essa história foi muito difícil. Do pouco que eu sei é que o violentaram por horas de formas indescritíveis. É horrível ter que dar detalhes, mas necessário: chegaram a enfiar um cabo de vassoura no c* dele e sua mãe teve que ir reconhecê-lo, todo ensanguentado, ainda na cena do crime.

Desculpa, você continua lendo esse texto? Sei que é uma leitura aterrorizante e revoltante.

Também tá sendo bem difícil escrever essas palavras. Mas faço isso pois esse relato é preciso e urgente. Só pra você saber, no domingo dia 2, no qual fui acolhê-lo, um taxista que presenciou tudo contou que os agressores já haviam pego outros dois jovens LGBTs horas antes.

Eu sempre soube que esse tipo de coisa acontecia.

Os jornais de vez em quando trazem um caso ou outro. A diferença é que nunca tinha entendido o quanto essa situação se tornou rotineira e comum. E nunca havia sido com alguém próximo a mim. A verdade é que cada vez mais esses casos chegam aos nossos círculos pessoais. Não é à toa que o Brasil segue ocupando o primeiro lugar do mundo em crimes contra a população LGBT+.

Em 2017, foram mais de 1.720 denúncias de violações contra LGBTs no Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos. Ou seja, casos reportados né?! Um estudo realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) apontou que 445 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais foram mortos em crimes motivados por lgbtfobia, o que representa uma vítima a cada 19 horas e um aumento de 30% em relação ao número registrado em 2016.

Voltando à nossa história, chegamos ao hospital e no guichê de atendimento.

Ainda era bem difícil pra ele dar nome aos bois. A frase 'fui agredido' saia baixinho de forma tímida. Aquela pessoa gigante que em qualquer outra situação estaria gritando pra todo mundo ouvir – "ISSO CHAMA LGBTFOBIA!" – agora estava reduzida, pequena, partida, envergonhada de si mesmo.

Tentei explicar às recepcionistas a gravidade daquilo tudo, mas sem sucesso. Era assustador ver como até mesmo as pessoas que estavam dispostas a ajudar tentavam deslegitimar o ocorrido.

Ao chegar na sala do ortopedista, mais uma violência. Explicamos o que aconteceu para um médico visivelmente sem interesse nenhum no que tínhamos a dizer, que foi logo tentando suavizar:

– Sabe o que é? Existe muita gente maluca por aí. Um dia desses um amigo estava com a namorada quando dois caras passaram e mexeram com ela. O meu amigo foi falar …

Interrompemos na hora.

– Não doutor! Você não tá entendendo. O que aconteceu aqui é outra coisa e comparar essas duas histórias é no mínimo desonesto. Esse foi um crime dirigido exclusivamente a ele por sua forma de se vestir, andar, falar, por simplesmente ser quem ele é. Esse ataque sinaliza que essas pessoas desaprovam a nossa existência. E que o desprezo e a fobia deles estão gerando violência pura e gratuita.

Torta de climão, é claro! Silêncio. Concluímos a consulta respirando fundo, nos sentindo ainda mais agredidos e saímos do consultório.

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Mais adiante, a enfermeira atendente do raio-x deu o golpe final ao saber do ocorrido. Como se fosse uma professora ginasial, ela disse:

– Sabe o que você faz, quando te baterem? Você bate de volta. — e completou – afinal, você é um homem ou um saco de batata?

SACO DE BATATA? Oi? Como é? Foi isso mesmo que eu ouvi?

Enfermeira pergunta: "Você é um homem ou um saco de batata?"

Ficamos em choque. Aquela frase fez tudo finalmente fazer sentido. Está enraizado em nossa cultura. Na expressão popular mais cotidiana. A sociedade deu a letra há muito tempo: ou você é homem ou você apanha e ponto.

Qualquer pessoa que não seja homem, branco, hétero e cisgênero (alguém que se identifica com seu gênero de nascença) está sujeita a levar porrada por não portar essas características.

Em outras palavras, nossa sociedade aceita que toda a identidade que não se assemelha com a do opressor esteja fadada a ser oprimida. Existem corpos que são aceitos e estão em segurança. E outros corpos que são excluídos, renegados e que estão sangrando por aí aos olhos de todos e à luz do dia.

Se não bastasse toda essa violência a que somos submetidos nas ruas, ainda temos que lidar com a lgbtfobia dentro de casa e dentro de nós mesmos. Você sabia que de cada oito jovens que tentam se matar, sete são LGBTs?

Com esses números todos, combater a lgbtfobia deveria ser prioridade absoluta. O desafio de mudar uma cultura é gigantesco. Mas ao meu ver não existe outro caminho a não ser pela política pública. Em especial por:

(1) a criminalização da lgbtfobia, como já ocorre com o racismo por exemplo, e

(2) a ampliação do debate sobre identidade de gênero e orientação sexual nas escolas.

Básico, né? Mas não enquanto uma parcela significativa da sociedade se organiza para que essas legislações sejam aprovadas, uma outra parcela insiste em olhar pra tudo isso e não ver o quadro completo. Insistem em querer nos 'curar' como se fôssemos doentes.

E afirmam que a nossa motivação é transformar todas as pessoas do mundo em LGBTs – enquanto nós queremos apenas é que tenha espaço no mundo para nós LGBTs.

Voltamos pra minha casa naquele dia esgotados.

Ele não queria voltar pra casa dele e ter que encarar sua mãe e contar o que aconteceu. Fomos dormir, ou tentar dormir, abraçados e assustados. Aquela cena não saia da cabeça dele, que acordava a cada 15 minutos com pesadelos e, imediatamente, me pedia desculpas.

Então, eu apertava ele bem forte e olhava fundo dos olhos dele:

– Você não tem que pedir desculpas. Você é uma pessoa linda e amada por muita gente. Íntegro, ético, generoso, solidário, amigo, humano, divertido, inteligente. Você não fez nada de errado. Os perdidos são eles.

Ele então parou de se desculpar e me agradeceu. Mas antes de virar pro lado soltou a frase que me acompanha desde então e que me fez tornar esse relato público.

– E se o Bolsonaro ganhar?​

​* * *

O que fazer diante disso?

1. PROCURE SABER:

Esse texto não tem a pretensão de ser um panfleto eleitoral. Porém, hoje torna-se essencial atrelar o acontecimento que eu vivi com o risco eminente de entregar o comando do país a uma pessoa como Jair Bolsonaro.

Eu realmente prefiro acreditar que ele não é igual ao autor de todo esse tormento que narro aqui.

Ou seja, penso que o Bolsonaro não seria capaz de sair por aí agredindo LGBTs.

O problema é o que ele representa.

Nesse vídeo de 2010, vemos Bolsonaro afirmar que "quando o filho fica meio gayzinho, se ele leva um coro, muda o comportamento".

Em junho de 2011, em entrevista à revista Playboy, ele afirmou que prefere um filho morto a um herdeiro gay. "Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo", disse.

Em outro trecho, ele ainda acrescenta: "se um casal homossexual vier morar do meu lado, isso vai desvalorizar a minha casa! Se eles andarem de mão dada e derem beijinho, desvaloriza".

Em outra entrevista, ele simplesmente diz que ter filho gay é falta de porrada. "O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento dele. Olha, eu vejo muita gente por aí dizendo: ainda bem que eu levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem".

Enfim, é a violência do discurso dele que legitima a violência nas ruas. O número de crimes contra nós, LGBT, está crescendo por conta desse discurso, que também o ajudou a colocá-lo onde está.

O favoritismo dele nas pesquisas eleitorais mostra a quantidade de pessoas que concordam com ele. Mas também conheço algumas pessoas que se mostraram inclinadas a votar nele mas não pensam dessa forma ou não querem ser coniventes com essa situação. E é principalmente pra elas que fiz esse texto.

Se você é uma dessas pessoas, peço que reflita sobre tudo isso e entenda que nós só queremos ter liberdade para amar e ser o que somos. Mais nada! O Brasil tem 210 milhões de pessoas. Estima-se que 9 milhões são LGBTs. O seu voto no Bolsonaro ameaça a nossa sobrevivência.

2. PESQUISE:

Quer nos ajudar? Quer combater essa violência? Se compararmos com 2014, as candidaturas de pessoas abertamente LGBT cresceram 386,4%, chegando a 160. Vote em uma dessas candidaturas ou em outras que sejam comprometidas com os direitos da população LGBT.

Escolha pessoas que também nos representam e que defendam nossos interesses e nossas vidas. Procure o que diz seus candidatxs para cargos no executivo sobre nós. Mas principalmente, pesquise sobre as candidaturas para as quais você dará o seu voto em cargos legislativos – deputado estadual e federal.

Deixo aqui alguns links pra você tomar uma decisão de forma mais consciente: MeRepresenta, Vote LGBT, Bancada Ativista 50900, Erica Malunguinho, Bruno Maia, Douglas Belchior, Zé Gustavo 1819, Isa Penna, Sâmia Bomfim e tantxs outrxs.

* * *

Esse texto foi publicado originalmente no perfil do autor. Agradecemos a abertura e confiança do Gut em trazer essa necessária conversa para cá. 

Gut Simon

Músico, comunicador social e ativista. É um dos fundadores da Rede Minha Sampa e da Virada Política. E a mente por trás da websérie musical Lala Laiá e Cidade Acústica.