Ele trabalhava numa lojinha que vendia fones e capinhas de celular.

Saía da Vila Maria e descia até perto ali da Faria Lima, nos arredores, num espaço entre dois restaurantes por quilo que enchia de gente engravatada na hora do almoço, mas não daqueles com os caras ricos, esses comiam nas churrascarias caras e tal, mas naqueles quilinhos onde os assalariados se espremem em mesinhas sujas da refeição de quem passou por ali antes, que tem que pegar fila pra entrar, pra sentar, pra deixar a bandeja, pra pagar, pra sair. Sabe esses? Pois era desses. Entre dois desses aí tinha a lojinha onde ele trabalhava.

Ficava por ali desde o começo da manhã, pra já vender uns cabos e carregadores pra quem estivesse chegando pro dia de trabalho em algumas empresas.

Pois um dia o dono da lojinha passou mal e foi pra casa. Pediu pra ele ficar até às 20h, que era a hora em que diminuía o movimento do pessoal que saía mais tarde do trabalho, não aqueles ricos que comiam na churrascaria, esses debandavam dentro de carrões pretos e até de helicóptero vez ou outra. Mas eu tô falando dos que estão de terno, mas que vão pra casa de metrô, segurando uma pasta na mão, muitos de mochila nas costas mesmo, o sapato meio carcomido de ficar roçando na estrutura metálica do ônibus, sabe? Pois esses. Não os boy. Esses outros. Os trabalhadores. Os assalariados. Os que não são aqueles. Esses.

Pois é. E ele ficou lá. Vendeu uma capa de celular, jogou uns joguinhos no aparelho dele. Juntou as coisas pra ir embora quando deu a hora. Mas, na hora de apagar a luz, lembrou da sacola de baterias externas que tinha chegado aquela semana. Chama “power bank”, sabe qual é? Tá acabando a bateria do seu celular, mete o cabo nesse carregador extra e ele vai carregar o que tá acabando no seu telefone.

Um pessoal tava doido atrás disso e o dono da loja comprou uma dúzia pra ver se vendia. E tava vendendo pouco, porque o pessoal não tinha lá muita grana pra comprar. Eles queriam, viam um pessoal com mais dinheiro comprando, achavam que precisavam ter também, porque meteram na cabeça que profissional ocupado não pode passa ro dia com uma bateria só, tem que ter outra pra responder os e-mails importantes e cuidar das empresas. Mas eles eram pessoas do baixo escalão Não tinham lá muitos e-mails importantes, não cuidavam da empresa. Só cumpriam suas funções, faziam a roda girar. E recebiam um salário por isso. Pois eram eles que falavam muito em comprar um “power bank”, mas tinham pouca inclinação para efetivamente comprar um “power bank”.

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E o moleque ficou com receio de aquilo sumir de um dia para o outro e cair a culpa nele. Ele lembrou que o dono da lojinha levava a sacola com as baterias extras para casa no fim do dia. E resolveu fazer a mesma coisa.

Foi a pé até o metrô da linha amarela, pegou baldeação lotada na estação da luz e foi até o Carandiru. Lá, em frente ao Parque da Juventude, pegaria mais um ônibus até a Vila Maria. Notou que, em todo o trajeto, tinha muita gente daquelas que almoçavam perto do trabalho dele, ternos, gravatas, enfim, acho qe a gente já entendeu essa parte. Pessoas que trabalham lá, nas empresas pomposas, mas que moram pertinho da casa dele, que precisam pegar três conduções para chegar em casa no fim do dia.

Passou um busão que não era o dele. Todo mundo subiu e ele ficou sozinho para esperar o que levaria ele pra casa. Nisso uma viatura passou.

E perguntou o que ele tava fazendo ali.

Ele não usava gravata, né. Disse que era trabalhador, mas não parecia um, nos olhos dos outros. A viatura parou. Os homens desceram. As mãos dele na parede. a revista na mochila. As baterias. Os “power banks”. A explicação. a falta de nota. O celular do patrão desligado. o convite. “Vem com a gente”.

A mãe e a irmã esperando ele pro jantar.

Elas nunca mais teriam a companhia dele na mesa de novo. 

 

Obs.: Crônica originalmente publicada na Meio-Fio, edição #103.

Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados