Eu me lembro bem de quando ganhei meu primeiro carro, um Chevrolet ônix 1.4 prata, com máscara negra nos faróis e chave canivete. Meu pai me deu. Nas semanas seguintes consegui sentir simultaneamente alegria por ter ganhado e inquietação com os futuros gastos com combustível, medo de que fosse roubado, cansaço com o esforço para deixá-lo limpo, raiva por terem arranhado a pintura, satisfação de poder pegar a estrada.
Cinco anos depois, lá estava eu vendendo o carro. Estava insatisfeito. Passei a andar de aplicativo. Parei de pagar estacionamento e de me preocupar com seguro/impostos/combustível/revisões. Bom, né? A não ser quando lembro da liberdade de pegar no volante, de passar a marcha, do porta-malas quando vou ao supermercado, de poder ouvir música alta enquanto dirijo, aí dá vontade de ter um possante de novo.
Sempre fui atido a indecisões.
Tinha 12 anos quando analisei de perto um cadáver. Encontrei um cachorro morto à beira da rua, cheio de larvas e vermes. Parei para olhar com atenção curiosa. O cheiro incomodava, senti nojo. Talvez não devesse ficar ali. Fiquei, a curiosidade foi maior. Peguei uma vareta para expor o que acontecia no interior do animal, mas hesitei. A mistura de sentimentos e o mistério emocional me fizeram parar. Indeciso, segui para casa e me esqueci do acontecido.
Fui lembrar desse fato muito anos mais tarde, já adulto, quando terminei de ler o livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez. Não que o livro se relacione com cadáveres, mas por causa da sensação agridoce no peito parecida com a que sentira na infância.
Estou me referindo àqueles sentimentos simultâneos, auto excludentes e misteriosos de fascínio e repulsa, tipo quando a gente tem uma coceirinha onde um mosquito picou e não sabemos se coçar é gostoso ou dolorido. Ou quando a gente assiste a um filme de terror e não sabe se fecha ou olhos ou espia por entre os dedos.
Para quem nunca teve o prazer dessa leitura, o livro conta a história da cidade de Macondo, palco para a trajetória e peripécias de sete gerações da família Buendía. E só.
Não se tem muitos fogos de artifício. É uma repetição de nomes (García Márquez fez questão de dar nomes parecidos aos personagens e seus filhos, de tal modo que começamos a nos confundir sobre quem estamos lendo) que faz a gente ter vontade de esquematizar a árvore genealógica da família.
Na primeira metade do livro, fiquei em dúvida sobre onde realmente o livro iria chegar. Senti aquela velha conhecida mistura de sentimentos. Quase parei de ler por isso. Não sabia se continuar lendo era gostoso ou chato. Continuei, a curiosidade foi maior. Valeu ter continuado. A genialidade do livro está justamente em espelhar a vida com riqueza de insignificâncias, como se tudo fosse na verdade um castelinho de areia à espera da primeira onda.
A diferença entre os dois episódios em minha vida foi que no último resolvi ficar e olhar de perto o que estava acontecendo.
Acontecendo comigo, é claro.
Percebi que minha vida inteira é um combinado dicotômico desagradável. Parece que sempre que estou feliz existe uma pitada de tristeza, ou o contrário. Há quem me diga “isso é a vida, meu amigo”, e eu acredito nisso.
Li em algum lugar que um sábio certa vez se referiu à experiência de vida como um grande campo de carniça.
Achei pesado, mas bonito.
Isso nunca mais saiu de minha cabeça. Em suas palavras, num campo de carniça “nascimento, vida e morte ocorrem. É um lugar para morrer e um lugar para nascer, igualmente, ao mesmo tempo”. A vida da gente é completamente sem significado, suja, malcheirosa, miserável e perfeitamente potente, alegre, pulsante, viva. Tudo isso simultaneamente, como um gigantesco e maravilhoso mangue.
Eu insisto em querer que as coisas sejam apenas de um jeito e que nunca se acabem, mas talvez seja justo isso que tira a graça da vida. Melhor seria se eu conseguisse olhar o mundo com mais abertura, notar que a pungência de variadas formas de vida, toda uma multiplicidade de seres se reproduzindo, evoluindo, vivendo e morrendo, tudo acontecendo junto…
A gente fica muito limitado se for exigente e esperar que as coisas aconteçam de uma maneira e não de outra, como se criássemos uma realidade parcial especialmente para nos satisfazer. Melhor seria se conseguíssemos analisar negatividades, riquezas, restrições, prazeres, dores, sucessos, fracassos, tudo acontecendo de uma só vez. Veríamos a poesia.
Um poema específico de Manoel de Barros me soa assim:
“O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.”
A vida, assim como um campo de carniça, me coisa, me rã e me árvore também, Manoel. Me carro, me cachorro, me livro. Ela me fascina a ponto de eu sentir tantas e tantas coisas que não tenho palavras para definir.
E, tal como um poeta aberto e livre, só me resta inventar significados para que as palavras se tornem verbos e sirvam ao seu propósito de comunicar.
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