Era o meu primeiro enterro.

O velório tinha durado a noite inteira, e agora, se preparavam para levar o caixão.

Novamente meu pai me abraçou:

— Vovó está em um lugar melhor, ela foi para o céu. — Disse ele, tentando convencer mais a si mesmo do que a mim.

Ele era o único triste ali, com grandes olheiras da madrugada mal-dormida. Acabou me largando depois de um abraço apertado, e achegou-se da mãe morta.

Não havia muita gente na sala. Meu avô, no fundo, procurava conforto nos braços da melhor amiga de minha avó. Os dois, chocados pela morte súbita, se adaptavam à situação trocando afagos. Vovó, pálida e de expressão severa, tinha os olhos fechados a tudo; morreu nova, pouco menos de cinquenta.

Papai pegou em uma das alças do caixão, fazendo com que meu avô se desvencilhasse de sua acompanhante. Era uma senhora bem mais bonita que vovó.

Fui para perto de minha mãe e me segurei nela. Eu tinha oito anos e tudo era novo para mim; só conhecia enterros pela televisão. Seguimos o cortejo até o mausoléu da família.

Fez-se baixar o caixão, rezas foram ditas, poucas lágrimas escorridas. Antes que o grupo se dispersasse porém, meu avô chamou a todos:

— Por favor, um instante. — Ele disse, tirando o aparelho de surdez que usara por toda a vida, para depois exclamar, feliz como eu nunca o tinha visto:

— Eu não sou mais surdo!

Käthe Kollwitz (1867-1945)
Käthe Kollwitz (1867-1945)

II

Meu avô foi o caçula de uma família de dez filhos. Tinha dezesseis anos a menos que o primogênito. A diferença de idade entre o pai e ele era maior que a nossa própria. Aquela casa devia lhe parecer um asilo. Acabou sendo tachado de rebelde. Eu posso entender como se sentia.

O bisavô era um militar severo, um general. Jantava com toda a família em uma mesa de madeira de lei, os filhos engravatados, a mulher calada. Apenas ele podia falar. Os outros, só quando interpelados. A rotina até que funcionava bem. Com uma exceção.

Pouquíssimas vezes vi meu avô penteado. Ele me dizia, rindo, que era por causa da rigidez de seu pai: sempre foi o único que não se penteava para o jantar, nem chegava na hora ou de gravata.

Sua resistência apavorava o general. Depois de nove filhos normais, essas celeumas — como diria ele — poderiam trazer o fim da ordem familiar. Solucionaram o dilema com o exílio. Tão logo alcançou a idade — talvez até um pouco antes — meu avô foi mandado para estudar no interior, no Instituto Eletrotécnico de Capivara, a mais longínqua faculdade que puderam descobrir.

Esperava-se que ele estudasse, se casasse e fosse viver a sua vida, mas o rebelde frustrou a todos. Em alguns anos, meu avô, ainda solteiro, tinha se formado e estava prestes a voltar para a casa dos pais.

A possibilidade apavorou o velho general. O caçula era um câncer no seio familiar e devia ser mantido longe dele a todo custo. Outra solução fazia-se premente!

A década era a de trinta, quase quarenta, e o que se arranjou foi casamento. Graças a essas manobras que os militares conseguem, ele descobriu uma bela moça e juntou os dois. Antes que o rebelde pudesse se rebelar, estava casado.

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Gioconda, minha avó, apesar de linda, não o satisfez. Ela era falante e extrovertida, mas tinha se casado com um homem fechado e introspectivo. Pior, a tagarelice dela chegava a incomodá-lo.

É dessa época que data sua surdez.

Käthe Kollwitz (1867-1945)
Käthe Kollwitz (1867-1945)

III

O velório agora é do meu avô e eu estou bem mais velho. Desta vez, irei ajudar a levar o caixão.

Em seu canto, a viúva está trocando palavras de conforto com meu pai. É a mesma senhora bem conservada que abraçava meu avô no velório de Gioconda. Eles se casaram no mês seguinte e, com o passar dos anos, meu pai aprendeu a gostar dela. Hoje, são companheiros de tristeza.

Olho para a expressão serena de meu avô. Tem os cabelos penteados, mas não é essa a imagem que levo dele; tento entendê-lo.

A morte de Gioconda mudou minha infância. Quando eu ia a casa de meu avô, ao invés de me deparar com sua expansividade, era outra mulher que eu encontrava. Uma que eu conhecia, que sempre frequentou a casa e me tratava bem, mas ainda assim estranha.

Porém, não tão estranha quanto a surdez de meu avô. Desde que eu me entendia por gente, ele não escutava uma palavra sequer. Mesmo com seus vários aparelhos auditivos, sempre apitando, era preciso gritar direto em seu tímpano para que ele ouvisse. E então, de repente…

Sua frase preferida durante esse período, com toda a sua carga de ironia, era: “Não precisa falar tão alto, meu neto, que eu não sou surdo.” Mas é impossível perder certos hábitos.

Eu, na verdade, sei apenas o fim da história e não o começo. Teria ele pensado nisso assim que a viu? Talvez. Pode ser também que sua surdez tenha se desenvolvido somente após alguns anos de tentativas de convivência. Quem sabe?

De qualquer modo, funcionou. Gioconda desistiu de falar com ele, deixando-o em paz em seu silêncio. Suas únicas oportunidades de ter uma conversa decente eram quando aparecíamos, e ela fazia questão de aproveitar.

A dúvida persiste.

Olhando para meu pai, tento imaginar como se sentiu.

Ele, porém, não me prende a atenção por muito tempo. Em seu canto, o mesmo que ocupara durante o velório de minha avó, a viúva tem um estremecimento e eu me viro para ela.

Desta vez, não há ninguém para se trocar carícias.

Ela está sozinha.

Käthe Kollwitz (1867-1945)
Käthe Kollwitz (1867-1945)

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Todas as ilustrações desse conto são da artista alemã Käthe Kollwitz (1867-1945).

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Käthe Kollwitz (1867-1945)
Käthe Kollwitz (1867-1945)

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu