Ao contrário do que aconteceu com Alice, ela tinha a plena certeza de estar sonhando.

Nada ao redor indicava isso, mas ela sabia que nada daquilo era real. No bar, as pessoas andavam espremidas, erguendo garrafas de cerveja pro alto e infectando todo o ambiente com suas risadas lindas e mesquinhas. Tudo era sóbrio demais para um sonho, mas ainda sim – ainda assim – ela sabia.

Sentou-se à mesa. Amigos contavam histórias, distribuíam cigarros. Uma mesa cheia e falante. Quem não gosta disso? Ela nem ligava. Não participava do festejo. Não prestou um mínimo de atenção sequer na conversa que não existia na realidade que ela estava acostumada a viver e de onde estava determinada a fugir. Ela se perdeu naquele sorriso.

Tinha os olhos tão negros que refletia qualquer coisa em qualquer ambiente, menos suas intenções. Olhos grandes e amparados por femininas maçãs douradas que protegiam aquele narizinho empinado e enfezado. Era assim que ela era. Sempre foi. E assim ela se fazia no tal sonho. Era como ela queria aparecer praquele sorriso. Levantou-se e foi sonhar.

Créditos: Anton.

O rapaz de camisa listrada estava com a vista perdida pra janela, num determinado ponto que escapava da multidão que se apertava pra passar de lá pra cá, entre berros e cantorias. “Que tanto festejam? Não veem que é apenas um sonho?”. Ele também sabia ser parte do inconsciente e isso o incomodava. Queria tomar as rédeas. Foi o que fez quando se armou e fixou o sorriso nos tais olhos negros. Esperou calmamente ela se levantar, toda curiosa de tudo, esperou ela se aproximar, arrumando os cabelos despretensiosamente num prendedorzinho enfeitado de flor e esperou ela sorrir também. Aí quem começou a sonhar foi ele.

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Ela queria ser durona, queria mostrar que sabia o fim de tudo, que acordaria antes mesmo do ápice do sonho acontecer. No entanto, foi tomada por aquele sorriso bobo de garoto convencido e não queria mais voltar. Pra nada. Não queria sair daquele bar quente e abafado nunca mais. Não sem ele. E ele? Ele não sabia de mais nada. Se antes era nada mais que uma personagem pronta para se anuviar num acordar qualquer, podia agora ser eterno naquele vaporoso conto noturno.

Ela dizia e desdizia sobre sua vida, sobre os dissabores daquela realidade que não condizia mais com seu querer. Não chegava a assumir que estava se jogando de cabeça naquele universo nascente, mas deixava transparecer toda sua excitação em conhecer tudo de novo. Ele, parte daquele simulacro, estava atado aos cabelos dela, nos cadarços do tênis azul que ela adorava calçar, seus olhos estavam magnetizados no pescoço dela, nos ombros dela. Tinha completa noção de que estava perfeitamente livre, mas se fazia acreditar que era ela a prendê-lo e não a si próprio.

A companhia era tão boa que ela esqueceu o acordar. Perdeu o dia de trabalho, perdeu o metrô lotado, não ouviu nos fones de ouvido a música cubana que tinham lhe indicado dias antes. E ele?

Como haveria de ser, o rapaz de camisa listrada – antes tão efêmero quanto aquele sonho – se sentiu tão vivo que percebeu o coração pulando uma batida, enterrado naqueles olhos negros.

Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados