Desde que voltei a escrever para o PdH, a pia de minha cozinha se tornou palco de obras de arte moderna semanais e meu colchão ganhou novos furos de cigarro. Embora minha empregada doméstica não se alegre com isso às segundas-feiras de manhã, o cenário me remete a esta situação curiosa que acomete o homem em momentos diferentes da vida.
No fim de minha adolescência, as toalhas mofadas, o pudim de camisinhas embaixo da cama, as manchas de vinho nas camisetas e as viagens repentinas sem rumo definido levaram minha velhinha a me diagnosticar como portador da “Síndrome de Mendigo”.
Quando mais jovem, o contato com figuras extremas que circulam por aí há anos sem tomar banho, trocar de roupa, dar bom-dia ou demonstrar qualquer traço de ambição costumavam me despertar um impulso difícil de expressar, mas que se caracterizava pela sensação de que um dia eu estaria alí. Um dia eu desistiria.
Certo verão, enquanto meus amigos flertavam inescrupulosamente com as “patas de camelo” das garotas em bares forrados de caiçaras desconfiados, um dia me aproximei por acaso de uma figura dessas: seu nome era Wilson. Ele me propunha trocar alguns cigarros de cravo pelos meus de filtro vermelho. Seus pés ásperos e inchados deixavam claro que ele não precisava de carona e algumas cervejas trouxeram à tona seu passado de drogas, assaltos a joalherias e doenças venéreas. A dignidade presente nas rugas em volta de seus olhos acinzentados me levaram a encontrá-lo algumas vezes mais.
Nosso último encontro, apesar de breve, fatalmente afetaria minha perspectiva. Durante uma caminhada, na qual eu passaria perto da pequena ponte onde ele residia (embaixo), decidi dar meus chinelos ao pobre velho e seus pés, que lembravam muito duas peças de presunto cru.
Gritei por diversas vezes seu nome, sem sucesso. Ao insistir, ele apareceu despenteado e com uns shorts verdes que pareciam de uma criança. Olhava diretamente para meus olhos.
– Quê que é, caralho?
– Fique com meus chinelos.
– Vá se foder! Tô tentando meter até agora e sempre tem um palhaço curioso – disse ele enquanto olhava para a esquerda.
– Olha, não preciso de nada, tá bom?
Havia uma mulher negra aparentemente inconsciente deitada próximo a uma abertura no cimento.
De fato, a constatação é incômoda porque a conclusão é inevitável: as desistências não nos matam. Por carma ou escolha, os mendigos aparecem às vistas como seres não levados em conta, gozadores de uma liberdade que não buscamos.
Um retrato que põe em cheque a crença em aptidão, gostos, individualidade e nos desafia a encontrar aquilo que nos tira da cama diariamente, além da ambição. Por fim, sacamos uma nota e compramos nosso equilíbrio frágil, covardes demais para abrir mão do que não queremos de verdade. Até ali, eu era um palhaço curioso e covarde.
Macaco vê, macaco faz. A liberdade não é uma palavra válida se vislumbra a satisfação de necessidades (básicas ou não) em detrimento do acaso. A merda hoje fede mais, pois vivemos mais juntos em ambientes fechados, e os perfumes trazem fragrâncias diversas, mas redundantes.
Não se espante quando a grana estiver curta, suas coisas quebradas, o ambiente fedendo a melancia passada ou se você falhar. A síndrome de mendigo fica bem nítida nesse momento, depois que decide-se não mais gozar de pau mole, na tonelada de papéis que você guarda na bolsa, nas garrafas de cerveja vazias e no velório de suas metas. Ela não desaparece nunca, mostrando seu potencial em cada beijo matinal com bafo rançoso de sua mãe ou de seu upgrade, sua mulher.
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