Aquela restrição estava matando-o. Porque só depois da meia-noite? Porque o Papai Noel não escolhia um horário melhor? Num cansaço sentido, emburrou no sofá, de frente pro relógio. O tio gordo gritava, seus primos suavam as camisetas correndo desenfreadamente pela casa. Todos bem vestidos. “Final de ano pede roupa nova”, disse a mãe. Ele, do fundo do coração, esperava que o bom velhinho trouxesse tudo, menos uma roupa nova.

Com toda aquela barulheira, ele se mantinha concentrado. Seus três anos recém chegados juravam que aquele relógio estava andando mais devagar que o habitual. Cabia uma vida inteira entre o “tic” e o “tac”.

“Venham para a lavanderia, senão o Papai Noel não chega”, disse a mãe. E lá se foi a pirralhada toda. Dois ou três minutinhos de distração e eles poderiam voltar a para a sala. Debaixo da árvore, em meio a muitos e muitos embrulhos coloridos, estava aquela caixa grande, bem embalada e com um belo laço. Rasgou a embalagem com força e foi delirantemente feliz.

Era o primeiro presente de natal da sua vida.

***

Não conseguia respirar direito. Ela já havia aceitado. Todo mundo sabia que ela queria. Era só ir com o rosto em direção ao dela e…

Bom, tudo é muito fácil depois que você já fez. Desejava estar com os braços amarrados atrás do corpo, assim talvez soubesse onde colocá-los nesse momento tão constrangedor.

Os joelhos estavam moles, a moça um pouco impaciente, sorrindo em consolo, meio que achando graça daquela ingenuidade boba e sincera. “Patético, mas bonitinho”, ela pensava.

Trident de menta, vídeo na Internet, conversas com os amigos mais experientes, selinho na prima. Havia feito a lição de casa. Respirou fundo. Não sabia se fechava os olhos antes de tocar os lábios da donzela ou depois. Porque havia de ser tão dificil, meu Deus? Resolveu fechar os olhos antes, em pról do romantismo. Não haveria de falhar.

Finalmente os lábios se encontraram. Ele estava orgulhoso por ter largado o fardo número um da existência juvenil. Ela achava graça por ter tido que se abaixar quase meio metro para fazer com que aquele tapado conseguisse finalmente achar sua boca.

Não foi dos melhores, mas saiu o primeiro beijo.

***

Juntou dinheiro por muito tempo. Tornou-se um PHD em economia pessoal. Economizava no McDonalds (batata grande nem pensar), na escolha motel, na compra das roupas e no presente do dia das mães.

“Nogueira, a documentação saiu?”

“Só semana que vem, meu jovem”

Ligava diariamente. Tinha vontade de falar que ele mesmo poderia pintar um documento com tinta guache, se necessário. Podia imprimí-lo na HP Deskjet 660C da sua casa.

Mas o dia finalmente chegou. Entrou na concessionária com aquele ar fajuto e maquiado que só um adolescente tentando impressionar consegue fazer. Se alguém lhe fizesse cócegas, todo o ar que mantinha o peito estufado sairia de uma vez só. Mas ele se manteve. Queria que parecesse natural.

“É esse, Nogueira?”

“Isso, filho. Pode entrar”

“Mas Nogueira, estou acelerando e o carro não sai do lugar. Nem tirei o carro daqui e já está com problema!”

“Solte o freio de mão”

Ficou vermelho, engatou a primeira e saiu. De carro novo.

Era, claro, o seu primeiro.

***

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“Esse menina vai brilhar na faculdade”. Escutava isso semanalmente, a cada dez alcançado, a cada pequena conquista, a cada dia. Estava cansada. O fardo era pesado, a expectativa alta e a vontade de sustentá-la diminuía a cada pensamento sincero que precisava deixar de canto para suprir o mar de vontade dos outros.

Dessa vez, não havia estudado. Há tempos não prestava atenção na aula. Nunca havia sentido essa sensação de não saber nada, de não desconfiar do conteúdo que seria cobrado. Como não sabia nada de nada, não precisava calcular quanto tempo tem para cada questão. Isso era libertador.

Nem tentou. O fracasso irremediável era doce. Ficou uns 10 minutos degustando a delícia de não ter expectativas. Dessa vez, não ficaria ansiosa pela nota. Não cobraria o professor. Nem ao menos participaria do insuportável grupo que discute as questões da prova no maldito recreio. Assinou seu nome na lista de presença e foi para casa.

— Como foi a prova, filha?

— Uma delícia, mãe, um tesão.

Largou a mãe na sala, com semblante de interrogação.

“!?”

Era a primeira vez que ignorava uma regra, que contrariava o mundo e cagava em cima de uma regra. Sorriu com o canto da boca. Subiu as escadas de alma lavada.

***

“Você começa no dia 3. Parabéns”. Fora a última de uma extensa série de entrevistas. Líder da equipe, gerente e gestor. Cativou um a um. Tentou dormir cedo no dia anterior, mas foi em vão. Rolava na cama. Quando se cobria, sentia calor. Quando deixava o cobertor de lado, sentia frio. A madrugada não passava.

Abriu os olhos esperando que pesassem, como os olhos de quem está prestes a cair no sono. Mas eles abriram leves e deram de cara com o relógio indicando que havia passado 7 minutos desde a última olhada.

Acordou de sobressalto, enfiou-se no chuveiro, mal regulou a temperatura. Lavou o que dava para lavar. Vestiu o que se tornaria seu uniforme pelos próximos anos. Camisa e calça social. A camisa teimava em sair de dentro da calça.

Chegou cedíssimo, ainda não havia ninguém no escritório. Pegou um café e ligou seu computador. Popups pipocavam na tela. Usar o mouse é para os fracos, pensou. Ele os fechava teclando ESC. Com maestria. Faltava apenas um. Esse vai até de mão trocada, na canhota. E ai aconteceu a tragédia. O dedinho, aquele maldito, esbarrou no copo plástico. Nenhuma tecla escapou ilesa ao batismo com café.

Ouviu a porta do escritório abrir. Seu chefe lhe apertou a mão, vigorosamente.

“Você é o novo estagiário, certo?”

“Sou sim.”

“Começou bem.”

Debutou bem no trabalho.

***

Boas ou ruins, planejadas ou não, são sensações que nunca mais serão sentidas. Passaremos a vida tentando sentir tudo novamente, mas será em vão. Surgirão presentes melhores, aparecerão outros empregos, compraremos outros carros, beijaremos outras bocas e desrespeitaremos novas regras. Mas nada disso fará com que nosso estômago pareça um saco com pedras de gelo.

Nada trará um êxtase igual.

Ao menos não como na primeira vez.

Eduardo Amuri

Autor do livro <a>Dinheiro Sem Medo</a>. Se interessa por nossa relação com o dinheiro e busca entender como a inteligência financeira pode ser utilizada para transformar nossas vidas. Além dos projetos relacionados à finanças