— Senhor?
— Pois não?
— Adão está retornando Sua ligação. Ele está na linha nove.
— Pode passar.
— Alô?
— Tudo. O Senhor me ligou?
— Isso. Eu fiquei sabendo que você andou falando sobre Mim.
— Oi? Como assim?
— Vocês não estavam jogando futebol aí embaixo?
— Sim. Estamos fazendo um campeonato.
— E seu time ganhou?
— Bom, na verdade…
— Eu ouvi dizer que vocês perderam todas as partidas.
— Bem…
— De quanto seu time perdeu?
— Não lembro.
— Eu tenho os resultados aqui. Quer uma ajuda?
— Não precisa. Não quero dar trabalho.
— Imagine, não é trabalho algum. Os números estão aqui na Minha mesa. O primeiro jogo foi contra os macacos e vocês perderam de sete a um. O segundo jogo foi contra um combinado de leões, tigres e leopardos. Esses vocês perderam de três a zero. Foi isso mesmo?
— Bem… sim.
— Certo. Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— Quem eram os jogadores do seu time?
— Além de mim?
— Isso.
— Três toupeiras, dois tatus… que mais? Uma capivara, uma girafa… quantos têm aí?
— Contando com você, oito.
— Três toupeiras, girafa… ah, sim! Um rinoceronte e dois cachorros.
— Eu estava no seu time?
— Não.
— Então, por que você andou falando para todo mundo aí embaixo que perdeu os jogos porque Eu não ajudei?
— Eu falei isso?
— Sim.
— Não me lembro. Posso ter deixado isso escapar em uma conversa, mas realmente não lembro.
— Adão, pelo que fiquei sabendo, você falou isso pelo menos cinco vezes depois de cada jogo.
— Foi?
— Foi. Caso ajude você a se lembrar, a frase exata foi “nós jogamos bem, mas infelizmente Deus não ajudou”.
— Ah.
— Posso fazer uma pergunta?
— Sim.
— Por que mesmo Eu deveria ter ajudado seu time a ganhar?
— Bom… porque eu me esforcei. Eu corri bastante e tentei marcar gols.
— Bom, Eu acredito que os outros times também fizeram isso.
— É. Talvez.
— Então você não perdeu porque os outros times foram melhores? Você perdeu apenas porque Eu não ajudei?
— Bem, não foi isso que eu quis…
— Olhe, Eu estou vendo um lance do jogo aqui. Você entrou correndo na área, sozinho e pronto para chutar para o gol. Só que, ao invés de chutar o coco, você chutou o chão, caiu de boca no gramado e rolou uns cinco metros.
— Bem…
— E depois de levantar, você começou a gritar com a hiena que estava apitando o jogo, berrando que ela devia ter marcado pênalti.
— Bom, a pancada foi feia.
— E aí você tomou cartão amarelo.
— Sim. Foi injusto.
— E continuou discutindo com a hiena. Aliás, você perdeu tanto tempo batendo boca com ela que o outro time foi lá e fez mais um gol.
— Foi roubado.
— Ah, foi? Então a hora que você chutou o chão foi falta em você? A hiena deveria ter marcado pênalti e expulsado o chão?
— Bom…
— Tem um lance aqui no jogo com os leões. A capivara é a goleira do seu time, certo?
— Isso.
— Certo. O leão cruzou o coco na área. Ao invés de marcar o tigre que está ali esperando o coco, você subiu para tirar o coco, mas acabou batendo na capivara que estava pulando também. Ela caiu para um lado, você caiu para o outro, e o coco caiu no pé do tigre, que só empurrou o coco para dentro do gol.
— Olhe…
— Adão, não é preciso ser onisciente para saber que coco na pequena área é do goleiro. Tem mais alguns lances aqui… você perdeu dois pênaltis e, na partida contra os leões, marcou um gol contra com três minutos de jogo.
— Eu tentei tirar o coco da área.
— Sim. E conseguiu. Você tirou o coco da área e colocou dentro do próprio gol.
— Bom…
— Mas você não vai sair por aí dizendo que jogou mal. Admitir que o outro time jogou melhor, então, nem pensar. É mais fácil sair por aí dizendo que Eu não ajudei.
— Mas o Senhor podia ter dado uma ajuda, mesmo. No jogo contra os macacos nós tomamos quatro gols em seis minutos. Se o Senhor tivesse dado uma mãozinha só nesses seis minutos, nada disso teria acontecido.
— Mãozinha? O que você queria que eu fizesse?
— Sei lá. Um raio. Um dilúvio. Qualquer coisa que parasse o jogo.
— Então, deixe ver se Eu entendi. Vocês jogaram mal, foram goleados e a culpa é Minha, porque Eu não fiquei jogando relâmpagos no campo?
— Na verdade, nós não jogamos mal. É que nesses seis minutos…
— Adão, eu criei o mundo em seis dias. O céu, a terra, os mares. Os animais e as plantas. Criei tudo. Até você. Quer dizer, tudo não, porque Eu não tenho nada a ver com esse esquema tático do seu time. Isso aí é coisa sua. Mas Meu ponto é: Eu criei tudo em seis dias. Você sabe disso.
— Sim. E no sétimo dia o Senhor descansou.
— Isso. E vocês deixaram o time dos macacos, em seis minutos, fazer mais do que eu fiz em seis dias. Eu não conseguiria fazer quatro gols em seis minutos.
— Sim.
— Quer dizer, se eu estivesse jogando contra o seu time, talvez Eu conseguisse. Mas meu ponto é: nenhum time joga tão bem assim. Mas, deixe-Me adivinhar: como seu time é imbatível e não pode perder nunca, essa tragédia só aconteceu porque Eu ajudei o time dos macacos.
— Ajudou?
— Bom, se você diz que seu time perdeu porque Eu não ajudei, é normal concluir que o outro time ganhou porque Eu ajudei. Como se Eu gostasse mais de um time que do outro.
— Ah. Entendi. O senhor estava sendo sarcástico.
— Adão, me responda uma coisa. Você já chegou a considerar que perdeu apenas porque seu time é ruim?
— Nós não somos tão ruins. Chutamos seis ou sete vezes a gol.
— Você sabe quantas vezes o time dos macacos chutou?
— Não faço ideia.
— Eu faço. Tenho todos os dados aqui. Chutes a gol, posse de coco, passes corretos… Eu tenho aqui na minha frente o número de vezes que eles chutaram a gol.
— Quantas foram? Umas dez?
— Setenta e nove.
— Mesmo?
— Isso. Passe certos. Time dos macacos: trezentos e vinte um. Time do Adão: cinco. Nenhum deles foi seu. Tenho aqui posse de coco, também… Não, espere. Este número deve estar errado.
— Como assim?
— Aqui diz que o time dos macacos teve 123% de posse de coco. Esse número deve estar errado.
— Sim, com certeza.
— Se bem que como é contra o seu time, é capaz de estar certo. Eu vou mandar alguém checar isso de qualquer maneira.
— Bom, nós não estávamos num dia bom. Mas a gente tentou. Entramos dispostos a ganhar, mas a infelicidade de tomar um gol de coco parado logo no começo. Aí tentamos a reação, mas infelizmente Deus não aj… epa. Esquece.
— Oi? Deus o quê?
— Nada.
— O que você ia falar? Deus o quê?
— Nada! Não falei nada!
— Você ia falar.
— Não, não. Não ia. Estava só pensando alto.
— Adão…
— Certo. Desculpe. Eu estava falando sem pensar. Desculpe. Escapou.
— Você está tão acostumado a colocar a culpa em Mim que nem percebe mais quando faz isso. Diga uma coisa: o que você fez hoje de manhã?
— Hoje? Nada. Fiquei conversando com o time. Vamos ter um jogo com as toupeiras amanhã.
— E sobre o que vocês conversaram?
— Nada demais.
— Aposto que vocês ficaram reclamando que a vida é injusta, que o resultado foi injusto, que vocês mereciam mais, mas Eu não ajudei.
— Talvez.
— Sabe o que o time das toupeiras está fazendo desde que o Sol nasceu?
— Não.
— Treinando.
— Ah.
— E vocês aí, reclamando. E colocando a culpa em Mim. Talvez seja por isso que vocês perderam dois jogos. E vão perder o terceiro. Não porque eu tenha algo a ver com isso. Mesmo porque Eu não estou nem aí para futebol. Vocês perderam porque jogaram mal. E porque estão mais preocupados em encontrar desculpas para as derrotas que trabalhar para ganhar o próximo jogo.
— Entendi.
— Aliás, sabe o que a serpente andou espalhando?
— Não.
— Que vocês entregaram o jogo.
— Como assim?
— Que vocês tomaram quatro gols em seis minutos porque entregaram o jogo. Que você deixou os macacos ganharem em troca deles ajudarem você a limpar o Paraíso.
— Não, isso é loucura.
— Existem animais que adoram teorias da conspiração. Eles acreditaram nisso, também porque nunca viram um time tomar quatro gols em seis minutos.
— Não, nós perdemos o jogo porque… porque…
— Porque vocês jogaram mal.
— Bem… sim.
— É tão difícil assim assumir isso?
— Não.
— Certo. E agora, o que você vai falar a próxima vez que perder?
— Inventar uma desculpa que não envolva o nome do Senhor?
— Chega. Cansei. Eu estou mandando uns anjos aí embaixo para jogar futebol com você. E, depois deste jogo, você pode sair por aí dizendo que levou uma surra porque “Deus não ajudou”.
— Surra? Como assim, surra? Eles vão jogar com espadas de fogo?
— Adão… Meu Paraíso, minhas regras. Mas isso pode ser evitado se você pode começar a assumir os próprios erros e trabalhar para corrigi-los.
— Certo.
— Posso dar dois conselhos?
— Sim.
— O primeiro é: você ainda vai perder muito e ganhar muito nessa vida. Eu criei tudo que você está vendo, mas o resto é com você. Cada fracasso será seu e cada vitória será sua. Eu não vou influenciar em nenhum dos dois. Mas sabe o que Eu espero de você?
— Que eu ganhe das toupeiras?
— Não. Eu espero apenas que você tenha força para transformar cada derrota em vitória. Nada Me deixará mais orgulhoso que perceber que você tem forças para se levantar sempre que cair. Não gaste sua fé torcendo para Mim. Tenha fé em você.
— Entendi.
— Que bom.
— Qual o segundo conselho?
— Você tem uma girafa no time. É o animal mais alto do Paraíso. Que tal colocar essa girafa como centroavante e ficar cruzando o coco para ela na área?
— Boa ideia.
— Pense nisso. É só um toque.
— Certo. Obrigado.
— Boa sorte no jogo com as toupeiras.
— Obrigado. Tchau.
— Adeus.
Desligaram. Deus nem assistiu ao jogo do time de Adão contra as toupeiras — porque Ele realmente não se importa muito com futebol. Mas ficou sabendo o placar depois: o time de Adão havia ganhado por dois a zero. Dois gols da girafa. Dois gols de cabeça.
Deus ficou feliz. Mas logo ficou sabendo que Adão estava falando para todos que a vitória havia acontecido porque “obedecemos ao que professor falou e Deus nos ajudou, mas o campeonato ainda está na metade, estamos pensando no próximo jogo e se Deus quiser vamos conseguir mais uma vitória”.
E a situação era ainda pior do que Deus imaginava: do outro lado, as toupeiras reclamavam que “a arbitragem favoreceu o outro time e, apesar de jogarmos bem, Deus não ajudou nosso time hoje”.
Foi a primeira vez que Deus ficou realmente furioso. Estava disposto a não apenas cancelar o campeonato, mas sim a chutar todo mundo para fora do Paraíso. Mas os anjos conseguiram acalmá-Lo, dizendo que isso daria problemas, que teriam que conversar com a serpente para romper o contrato, e ninguém ainda tinha mexido na maçã…
Deus se acalmou, mas não desistiu. Ligou para um anjo que acompanhava os jogos e perguntou quantas espécies de animais existiam no Paraíso.
— Umas mil e quinhentas.
— E quantas dessas jogam futebol?
— Todas.
— E quantas dessas falam, depois dos jogos, que ganharam ou perderam porque Eu ajudei ou não ajudei?
— Todas.
— Então, partir de agora, o Paraíso vai viver um tempo sem futebol. Um dia sem futebol para cada espécie que fala isso. Você disse que são mil e quinhentas espécies e todas fazem isso. Então serão mil e quinhentos dias entre um campeonato e outro.
— Certo.
Deus desligou pensou no castigo. Mil e quinhentos dias sem futebol até que parassem de usar seu nome para justificar os resultados da partida. Isso ensinaria uma lição. Sorriu. Não era preciso expulsar os animais do Paraíso.
Mesmo porque havia mais de uma maneira de fazer o Paraíso acabar. Determinar que é preciso esperar quatro longos anos entre uma Copa e outra é apenas uma delas.
Uma das maiores.
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