“Ela tinha um beijo no canto da boca”. Ouviu isso num filme, mas não entendeu até que, sem sono, percebeu que carregava algo parecido: um arrepio na ponta dos dedos. Esses três aqui: anular, médio, indicador. Passa o dedão pelos três. Sente um arrepio na pontinha dos três. Mas não qualquer arrepio, um arrepio circular.

Não se atreveu a dizer pros amigos como foi o tal do encontro. Não sabia como medir. Médio, indicador, médio, anelar, médio. Talvez o encontro tivesse sido médio. Mas não cabia dizer. Se quisesse realmente contar, teria de descrever aquela sensação que sentia na ponta dos dedos e no canto daquele sorriso de canto que se abriu ao pensar.

Bom não se pode dizer que foi. Não. Havia uma clara falta do que falar. Na ponta daqueles três dedos conseguiria contar quantas coisas tinham em comum. Dava e sobrava. Uma, Duas. Indicador, médio.

Não fosse o maldito arrepio que carregava na ponta daqueles dedos, diria que o encontro fora ruim. No entanto, aquele detalhe fino estalava num tintilar que fazia tudo vibrar sinuoso. Não era qualquer arrepio. Era um arrepio torpe que escorria pelos dedos em mil fiozinhos teimosos e enrolados.

Passeavam, na frente de seus olhos, por cima de seus dedos, os fantasmas dos cachos da noite passada. Cachinhos bem fechados abraçavam as pontas dos dedos, tonteando. Giravam os dedos junto dos cabelos, o beijo revolteava, contornavam as pernas, as roupas rodaram. Pararam por parar. Para consentir. Os dedos dados com os cabelos caminharam pelo pescoço e se detiveram no rosto. As digitais podiam sentir o vibrar dos poros e das pálpebras. Foi ali que estalou um prazer mais grave. Uma urgência em sentir absolutamente tudo. Mergulhar os dedos nos sulcos da cara.

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Os corpos pesavam, um sobre o outro, mas pouco importava. Ali na ponta daqueles três dedos e na mão inteira, rebentava uma vontade de sentir profundamente. Não queria de nada repetir o rito sexual de enviar a mão pra qualquer banda da bunda. Seria um sacrilégio dos maiores convocar aqueles dedos pra algum trabalho bruto masturbatório, repetitivo, acelerado.

Nas profundezas de um rosto, entre o indicador e o médio, sentia a provocação cínica dos cílios. Entre os joelhos do médio e do anelar, evaporava a respiração junta dos cachos untados de saliva e suor. Na base do anelar, os lábios, os dentes, a língua passava. Indicador, médio, anelar. Não havia mais nada no mundo, nada além do êxtase daqueles dedos orbitando com os cachos pela bagunça que se insurgia na cabeça. Nada mais importava.

Pela primeira vez, as genitálias só existiam sem qualquer tarefa a cumprir. Distantes e livres, existiam à margem. Os dedos no centro, entre as bocas e os olhares. Mudos, se perguntavam se não seria transgressão de mais. Ali na ponta daqueles três dedos, aquele prazer quase que desproporcional se convertia na maior insubordinação sexual que já experimentara. Nada que valesse a pena explicar. E ninguém que quisesse ouvir.

Se o encontro fora bom ou ruim? Aquela sensação não caberia em resposta nenhuma. Não firmaram compromisso, nem prometeram sair outra vez. No entanto, redomado na ponta dos dedos e embalsamado em Jambu, aquele arrepio, tão maior que um gozo, viveria para sempre.

Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro <a href="https://www.amazon.com.br/Amulherar-se-repert%C3%B3rio-constru%C3%A7%C3%A3o-sexualidade-feminina-ebook/dp/B07GBSNST1">Amulherar-se" </a>. Atualmente também sou mestranda da ECA USP