Era Maceió. Ele ficou parado na porta da única discoteca que parecia mais ou menos aberta naquela noite de setembro. Um forró. Por um lado, agradeceu ter encontrado um motivo para não entrar. Por outro, culpou-se por estar, mais uma vez, sob a sombra da mulher que havia transformado seu joelho em pudim dois anos antes. Lá estava ela desmontada em dezenas de quadrados de papel enrugados colados em um painel na esquina.

Local + DDD + roaming ilimitado. Campanha de celular agora, beibe?

Obrigar-se a esquecer paixão que não morreu, mas foi embora, é difícil. Agora imagine se ela é modelo publicitária. A situação fica um pouco mais, digamos, angustiante e perversa. Tipo claustrofobia a céu aberto. Má.

E é claro que seus amigos estavam se lixando. Já havia passado muito tempo, ninguém aguentava mais as lamúrias, por favor. Portanto, ele ficou sozinho ali, olhando assombrado para o rosto gigante de cachê farto da ex-namorada enquanto os amigos se jogavam nos sorrisos e abraços fáceis e fúteis. Ele lá, sob um olhar inclemente e humilhante. Parecia que, a qualquer momento, ela poderia ganhar vida e engoli-lo como uma aspirina. Que lástima.

Por todos os lados e em todas as placas. Ok, só em uma. Mas ela estava lá.

A carreira de modelo veio por acaso da mesma forma que ela nasceu bonita, filha de pais atarracados e desprovidos de qualquer brilho estético. Havia topado posar para umas fotos, aí uma coisa levou a outra, acabou fazendo bicos de modelo, no meio do caminho terminou o namoro e obviamente ficou com o fotógrafo. Mas não namorou o sujeito, preferindo um diretor de comerciais que achava que era artista que passou a fazer filmes que se pareciam filmes publicitários de pasta de dente – os piores de todos e todos sabemos disso.

Um sorriso imóvel, que ele conhecia em todas suas formas e contextos e trejeitos e dedos que passavam bagunçando o cabelo e exibindo as unhas bem feitas. O brilho nos olhos, escondido por toda aquela luz de publicidade, filtros de publicidade, tratamentos de imagem de publicidade, ainda estava lá. O brilho de sempre, o lápis e o rímel de sempre. Droga. Dois anos contando o calendário pelas campanhas que ela estrelava. Xampu, carro, pasta de dente numa clara jogada do namorado diretor, loja de departamentos e agora celular. Só havia alívio na praia, mas mesmo lá ele temia que um avião a trouxesse voando para avisar os banhistas dos perigos do mar ou para falar de protetor solar. Conseguir dormir era a melhor parte do dia, e a viagem para Maceió foi a última cartada do pacote Galera, Vamos Tirar o Rodrigo da Fossa.

E aí, como tudo nessa vida, veio um verão, dois, 7 baladas em que ele acordou no dia seguinte sem reconhecer a garota com quem (presume que) transou, 14 porres homéricos, felizes e indolores com amigos no bar de sempre, um show do Velhas Virgens, 21 sopas preferidas da mamãe servidas malandra e paulatinamente ao longo dos meses para não parecer que ela queria mimar seu coração partido, 28 dias em que o videogame era passatempo melhor do que qualquer par de coxas e, aí sim, a justiça foi feita. Ele a esqueceu para sempre.

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Não existe outdoor em São Paulo

Mas nós sabemos que o processo só teve final feliz porque na verdade ele se mudou para São Paulo. E, nós sabemos, não existe outdoor em SP.

E aí, como tudo nessa vida, veio a próxima. Ainda mais linda que a ex, e diferente como lager difere de ale. Fermentação alta. Alta e estilosa. Era publicitária, e pra ele tudo bem. Mesmo. Até porque não entendia direito o que ela fazia. Preferia camuflar sua ignorância com comentários evasivos do tipo “tomara que a ativação dê certo”. E ela ia a shows de rock e gostava de cerveja de isopor de porta de estádio. Mulher tipo A.

No íntimo, ele apenas sorria para esse saco de infinitas ironias que lhe salpicavam como cogumelos de primavera. Sofreu por quem estava de um lado da câmera e reencontrou a felicidade dos cafés da manhã aos domingos na padaria no lado de cá das lentes (e sempre com pão na chapa na canoa, sem miolo).

E assim eles levaram o outono, andando de bicicleta no parque, tomando vinho e cerveja em lugares charmosos, combinando viagens e deixando um rastro de clichês apaixonados na calçada. A Lei Cidade Limpa tinha feito alguém plenamente feliz.

Porque ela tinha a boca da Lana Del Rey. O mundo e seus outdoors que explodissem.

Uma exemplificação ilustrada do drama

Mas foram justamente os lábios generosos dela que estamparam uma nova campanha de enxaguante bucal sem álcool. Viralização rápida e contenção de gastos foram os argumentos que deu para explicar por que inverteu papéis e virou ela mesma modelo publicitária. “Eu ouviria os piores jingles dos seus lindos lábios”, ele falou certa vez, um tanto bêbado. Achou que tinha apavorado. E, por incrível que pareça, ela gostou, apresentou a ideia ao diretor de criação da agência, que fez pouco e disse que era algo cru e ainda inocente mas dias depois apresentou uma nova ideia genial usando exatamente o mesmo argumento.

E ele não ligou quando ela disse que estava tomando uma cerveja com o pessoal do trabalho. E no dia seguinte também. E no outro e no outro. Só foi ligar quando era já tarde e ela terminou tudo como quem apaga a luz.

O sorriso dela continuou percorrendo as redes sociais. E não adiantava bloquear, excluir e seguir toda a lenga-lenga da cartilha d’O Amor nos Tempos da Internet. Alguma coisa ainda arde nesse mundo de merthiolate azul e listerine sem álcool. Porque há muito ela deixara de ser um perfil no Facebook. Agora é um rosto que é base e protetor ao mesmo tempo. E ao mesmo tempo é lindo, dolorido e compartilhado.

Felipe van Deursen

<a>Felipe van Deursen</a> é editor na Superinteressante e colunista da revista Nova. Já se apaixonou por uma modelo de chiclete