Quando entrei no elevador, a primeira coisa que pensei, foi: "caralho, que tipo de pessoa mora em um prédio com ascensorista?". Obviamente, o tipo de gente que tem grana o suficiente para torrar com quilos de pó e litros uísque escocês.
O problema é que só quando chegamos ao vigésimo quinto andar, me lembro de que tenho medo de altura. "Espero que não queiram fazer nada perto da janela", penso, pouco antes de entrar no apartamento. "Mas também eu não vim até aqui para fazer nada…", concluo, tentando aliviar o nervosismo.
Fui com uma amiga de muito tempo e que tinha me convidado, meio especialista em me meter nessas roubadas, mas fazia alguns meses que não nos víamos. Na verdade, fazia alguns meses eu que tinha me afastado de toda aquela loucura. Seis meses, para ser mais precisa. Não muito, mas o suficiente para que eu conseguisse – ou pelo menos tentasse – encarar a sobriedade dos dias que se repetem.
Durante esse período, arranjei um emprego em uma cafeteria perto de casa. Não ganhava tanto quanto antes, mas dava para viver. Acordava cedo, corria no parque e tomava café da manhã, coisas impensáveis antigamente. À noite, escrevia. Vez ou outra ia a algum bar com os colegas de trabalho, que nem sonhavam como eu tinha ido para ali. Melhor assim.
Era só isso. Nada de porres. Nada de caos. Nada de garrafas sendo arremessadas no meio da noite. Vida comum, de gente comum. Era isso que eu achava que deveria fazer, e foi isso que eu fiz. No entanto, ainda assim, vez ou outra, caia no mesmo buraco de antes. Uma espécie de vazio, que nada preenchia totalmente. E isso acontecia mesmo quando estava sóbria; mesmo quando tudo parecia bem. Velhos hábitos não morrem, e a sanidade, às vezes, é mais traiçoeira do que a loucura.
Talvez por isso que eu tenha vindo até aqui. Além do mais, aquela era noite de dia das bruxas e achei que seria bom sair de casa com a minha antiga máscara. Se desse sorte, ela poderia até me render uma garrafa de Jack Daniels como prêmio para a melhor fantasia da noite.
Entro no apartamento e ele parece ser bem grande. A sala é comprida e varanda é do tamanho da minha casa. A festa está lotada. Mariana, a minha amiga, é a primeira que me vê e logo me puxa pelo braço, falando que vai me apresentar para um gringo bonitão que paga bem até pelo boquete. Quando chegamos até o cara, ele já está com duas outras meninas. Digo à Mari que é melhor deixar para lá, que têm mais gente por ali, que não precisa ser aquele, mas ela já está bêbada demais, sem noção demais. Então, prefiro não ver o que acontece depois e saio de fininho enquanto ela chega no trio.
Entre aquele monte de gente, alguns se agarravam em tudo quanto era lugar: no sofá, na varanda, na cozinha. Outros, cheiravam carreiras e mais carreiras de pó. Todos usavam máscara muitíssimo bem elaboradas. E eu me sentia em um filme do Kubrick. "Será que eles escondem segredos e monstros tão terríveis quantos os meus, por debaixo delas? Talvez todo mundo tenha uma identidade secreta", penso.
— Vai um teco?, diz uma loira bem gostosa, que se aproxima de mim com uma bandeja cheia de coca.
— Valeu, mas parei, digo meio seca, tentando lutar contra a vontade de ceder à loucura. "Essa noite, não", penso.
— Cara, eu te conheço de algum lugar. Você não é a…
— Sim, sou eu mesma!, respondo antes que ela possa dizer meu nome. Ou ex-nome, sei lá.
— Cara, que loucura! Já ouvi milhões de coisas sobre você. Pensei que nunca fosse te conhecer. Parou com a vida, né? Pô, manda um pouco aí… Pelos velhos tempos!
— Coisas ótimas, imagino! Na verdade, eu já tô de saída, tenho uma outra festa pra ir. Enfim, a gente se vê por ai.
"Dizem milhões de coisas sobre mim. Nenhum delas deve ser boa, obviamente. E fazer a social é uma merda. Quanto tempo a gente perde com isso? Aliás, que porra eu vim fazer aqui?", digo a mim mesma enquanto a loira se afasta, e cogito a ideia de pegar o meu casaco e ir embora. Mas apenas atravesso para o outro lado da sala."Essa noite, não", repito mentalmente."Nossa, quando eu virei essa pessoa careta?". No entanto, antes que eu possa concluir o pensamento ou chegar ao outro lado da sala, ouço:
— Ah, Batgirl, você continua sendo a minha preferida.
É o Coringa. Cliente antigo, velho conhecido. Ele sai de um dos quartos e vem em minha direção. Engraçado, depois de tanto tempo ele ainda insiste em me chamar assim. Batgirl. É, às vezes a máscara cai tão bem que fica difícil se desvencilhar. Deve ser isso.
Quando criança, meu pai me contava histórias de super-heróis para que eu dormisse. Mas, vez ou outra, o sono não vinha. Por isso comecei a criar meus próprios monstros, como maneira de fazer com que o velho voltasse para a beira da cama e fizesse com que algum herói aniquilasse impiedosamente os vilões que personificavam minha insônia. E ficava tudo bem. E eu finalmente podia dormir.
De certo modo, realmente acreditava que em algum canto dessa ou de outra cidade existia alguém que colocasse uma cueca por cima da roupa e salvasse as pessoas dessas coisas terríveis que acontecem durante a madrugada e nos fazem perder o sono. Entretanto, naquela época, com seis ou sete anos, ainda não entendia o que exatamente eram as tais "coisas terríveis", apenas imaginava que se tratavam de criaturas como as minhas, inventadas por aqueles que não conseguiam dormir e, porque não tinham pais que lhes contassem histórias, chamavam algum herói para acabar com suas insônias.
Acho que foi justamente isso que, anos depois, me obrigou a assumir uma identidade secreta – só para que ninguém conhecesse a verdadeira. Para pudesse, eu mesma, acabar com esses monstros. O problema é que tenho fracassado nesse papel também, sobretudo, em noites como essa. E encontrar o velho Coringa me fez lembrar de tudo isso.
A verdade é que, apesar da vida normal que insistia e me obrigava a levar, há vários dias não dormia. E, mesmo assim, mesmo fazendo tanto tempo que tudo já tinha acabado, ele ainda insistia em me chamar de Batgirl, obviamente não só pela máscara, mas talvez porque esperasse que eu o salvasse de alguma forma, como já havia salvado tantas outras vezes. No entanto, fazia tempo, também, que isso era uma causa perdida. Provavelmente, se eu estivesse bêbada o suficiente, lhe diria que se agora não posso salvar nem a mim mesma, como poderia salvar outra pessoa? Pelo menos, não com essa minha máscara velha que deixa à mostra a verdadeira identidade para esse monte de gente fantasiada, bêbada e fodida. Tudo isso é uma causa perdida: nós e todos os outros. Essa é a história que meu pai nunca havia me contado.
— Ah, Batgirl, porque você tá tão triste? Sorria!, insiste o Coringa de maquiagem borrada.
— É só um dia difícil, respondo, pensando que ao menos essa máscara pode me render o prêmio de melhor fantasia da noite. E, depois de recebê-lo, pode ser que os monstros morram com os efeitos antissépticos do álcool. Pode ser que, enfim, eu pare de levar tanta porrada e acerte uma merda de um golpe. Ou pelo menos que deixe de sentir todos esses que me atingem agora. Pode ser. Não custa tentar.
— Bom, talvez o Batman possa te salvar, diz irônico, apontando para o cara com uma cueca por cima da roupa, jogado no chão, com uma garrafa de vodka nas mãos.
— É, talvez, respondo, mesmo sabendo que o Batman não nos salva desse tipo de vilão.
— Você não vai beber nada?, ele continua.
— Hoje não.
— Senti sua falta, diz se aproximando mais.
Eu também senti, mas é claro que isso eu não digo. Apenas deixo que ele me beijei e me conduza para dentro do quarto em que estava antes. Não tinha ninguém lá dentro e eu fico imaginando o que ele estava fazendo sozinho ali, enquanto tanta gente ficava louca do lado de fora. Talvez o mesmo que eu. Tentando não sentir.
Ele tira a minha roupa, como nós velhos tempos; faz tudo exatamente do jeito que eu gosto. Por alguns minutos, os monstros morrem. Os meus e os dele.
Quando terminamos, ele pega a carteira.
— Continua o mesmo preço?
— Essa é por conta da casa, digo abotoando o sutiã.
— Ah. E a gente vai se ver de novo?
— Eu não sei.
Espero que sim, mas isso eu não digo. Quando saímos do quarto, a Mariana está do lado de fora. Nos puxa para uma foto em grupo. Todos de máscara, para que suas identidades secretas não sejam reveladas pelo flash do fotógrafo.
— Sorria, Batgirl!, grita alguém. E forço um sorriso amarelo. Depois, pego meu casaco e vou embora sem me despedir. Foda-se o prêmio de melhor fantasia da noite.
Acho que eles vão ficar bem sem mim, só ainda não tenho certeza se eu vou ficar bem se eles.
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