De regata rosa na academia

História real, sem tirar nem por.

Quarta à noite. Moleque de seus dezesseis anos fazendo abdominais na academia, de shorts preto, tênis de corrida Nike e camiseta regata rosa choque, daquelas dry fit.

Um dos instrutores do local chega perto, braços arqueados típicos de quem se exercita com frequência, já com sorriso jocoso se formando antes mesmo de soltar o primeiro a:

– Tá de rosinha hoje então, né. Olha só, fulano, ó a camiseta dele. – falou alto o suficiente para que todos na proximidade, interessados ou não na conversa, escutassem.

O outro instrutor, mais atarracado e musculoso, se aproxima.

– Ihhh, camiseta rosa. – falou em voz afeminada, rodopiando os quadris e alisando a própria cintura com as mãos.

O primeiro retoma a palavra, invadindo o espaço pessoal do moleque, que agora está de pé e não caminhou para trás:

– Vem cá, por que você vem de rosa, hein, você gosta é?

– Gosto. Acho que uma cor não define minha sexualidade. – respondeu em tom tranquilo.

Silêncio.

– Tá, sei. Mas pensa agora no seu filho então, se você tivesse um e ele fosse novinho, ia deixar ele usar rosa? Ia dar brinquedinho rosa de presente?

– Ia deixar ele usar as roupas que quisesse e brincar com qualquer coisa.

– Até de boneca?!

– Se ele quiser.

– De BO-NE-CA? E depois se ele virar gay, imagina seu filho virando gay. Como é que é fica?

– É, e aí, o que cê ia fazer com o filho gay, hein, bonitão? – bradou o instrutor atarracado e mais musculoso, nitidamente satisfeito.

– Não ligo, o meu filho vai ser o que ele quiser. – respondeu o garoto.

Não contentes, a trogo-dupla resolveu buscar uma terceira opinião de peso, um voto de minerva que decretasse o linchamento social da regata rosa. Vinha descendo pelas escadas um sujeito forte e tatuado com uniforme de jiu-jitsu, rumo à saída da academia. Perfeito.

– Vem cá, ciclano, corre aqui, a gente tá conversando e perguntamos pra ele se ia deixar o filho usar roupa rosa e brincar de boneca se quisesse. Diz aí, o que você ia fazer se seu moleque pedisse uma roupa rosa?

O jiu-jiteiro respondeu de bate-pronto:

– Cara, vou deixar meu filho escolher o que ele quiser da vida. Eu não tô nem aí se ele for gay, meu filho eu quero do lado e pronto.

E saiu andando, deixando no rastro um par de expressões um tanto confusas nos instrutores. Incertos sobre como terminar o papo diante da nítida falta de apoio popular, ladraram:

– Só sei que eu não saio por aí de camisetinha rosa choque. HAHAHAHA

– É, nem eu!! Aqui tem frescura não.

Os dois se congratularam com um forte e animado aperto de mão, entrelaçando os dedos e usando a força dos braços para provocar um choque bruto entre o tórax de um e outro, caminhando então em direções opostas, felizes com a testosterona exalada diante do macacote imberbe.

O moleque deu de ombros e seguiu fazendo seus abdominais.

* * *

Tá, até entendo todo o lance de zoação entre homens ser super divertido. O ponto é que as piadinhas corriqueiras podem esconder medos profundos, tão enraizados que nem nos damos conta.

Falo, antes de mais nada, por mim mesmo.

Faz uns dois anos tomei um tremendo baque, saindo de uma sessão de cinema, ao notar o quão acostumado estava em falar besteiras como "deixa de ser gay". De lá pra cá evito fazer piadas cujo efeito cômico passa por colocar em xeque a sexualidade do outro. 

Olhando pra trás, vejo que o software foi tão bem instalado que automaticamente considerei, na maior parte de minha vida, qualquer coisa, comportamento ou ideia "não-afrescalhada" melhor, mais atraente.

Isso não está nos meus genes, não é Darwin. Fui educado assim.

Em larga medida, procurei me construir como um homem potente e não-fresco.

Rir da dupla que acha uma regata rosa coisa de gay é fácil.

Difícil é reconhecer que o comportamento deles apenas expressa algo comum em nossa formação como homens: a fragilidade.

Cena de "Una pistola en cada mano", que saiu aqui como "O que os homens falam"

Precisamos constantemente afirmar aquilo que não somos.

Paranóicos, cada homem foge da regata rosa que merece.

Obsessivos, perseguimos símbolos que atestem nossa virilidade. Vigor físico, intelectual, financeiro, profissional, sexual, moral, emocional... não importa.  A gente aposta onde acredita ter mais chances de vencer.

O resultado é uma masculinidade tensa, sob constante ameaça e em eterna, ainda que silenciosa, competição com o macho ao lado.

E esse, senhoras e senhores, é o sexo forte.


ps.: fica uma sugestão de filme pra seguir a conversa, a espirituosa comédia "Una pistola en cada mano", que retrata oito homens em crise questionando suas identidades masculinas. Imperdível.


publicado em 22 de Dezembro de 2014, 03:06
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Guilherme Nascimento Valadares

Editor-chefe do PapodeHomem, co-fundador d'o lugar. Membro do Comitê #ElesporElas, da ONU Mulheres. Professor do programa CEB (Cultivating Emotional Balance). Oferece cursos de equilíbrio emocional.


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