Todos os filmes que você já viu contam a mesma história

Tarantino assumiu que todos os seus filmes se passam no mesmo universo e essa pode ser uma conversa fascinante

Não tem nada mais gostoso do que poder dividir uma mesa pra dois com alguém que tem os olhos grudados nos seus enquanto discorre empolgadamente sobre as coisas mais aleatórias e improváveis do mundo.

Surge no rosto aquele sorriso elétrico da cumplicidade de quem está conversando e, de súbito, entra no mesmo raciocínio e compreende o que ninguém, na mesa ao lado, poderia. Porque aquela conversa é pra dois, de dois, que caminham juntos pelo caminho das bizarrices lógicas.

A gente vai encostando a barriga na mesa, trazendo o peito mais próximo do prato, apoiando o rosto sobre as mãos; ahams, uhuns, é isso!!! encorajam quem fala.

“Onde você trabalha?”, “Você gosta de ler?”, “Mora perto da Penha?” … não tem coisa mais chata

A energia do Oscar e a conversa torta que rola aqui na redação deram fusão ao debate quando vimos que Tarantino finalmente assumiu que todos os seus filmes se passam no mesmo universo.

Veja só: Vincent Vega, de Pulp Fiction, e Vic Vega, de cães de aluguel, são irmãos. A personagem de Uma Thurman em Pulp Fiction, quando descreve seu roteiro de programa de televisão a Vincent Vega, está contando, na verdade, a história de Kill Bill.

Acontece que fiquei sabendo que essa era uma teoria conspiratória digna de papo-bom-de-mesa-a-dois desde os tempos de dois mil e bolinha, quando eu tinha cinco anos e o Selton Mello resolveu se meter nessa história.

Explico.

O ator e diretor está num curta de anos atrás desenvolvendo essa conspiração com alguém que pode ou não pode ser Seu Jorge. Só que ele faz isso de modo bem, bem mais interessante do que faz a matéria ali de cima e do que eu mesma poderia fazer. Acontece que o menos-bonitinho-porém-mais-espertinho dos irmãos Mello faz conexões geniais até em relação aos pés dos personagens e como seus trejeitos são mantidos, mesmo com diferentes nomes e atores na interpretação.

E ainda é engraçado. Assista, por favor, para que possamos continuar.

Pois é. E muita gente deve lembrar ainda de como a Pixar também monta a caça aos seus easter eggs nos filmes: seus personagens animados aparecem em outros e outros filmes, num loop quase eterno de autoreferências, comprovando também que tudo acontece num só universo e não passa de uma só história contada do ponto de vista de diferentes protagonistas. Ó, só:

Isso acontece também nas mais diversas artes: literatura, música, games.

Alimentamos um universo metalinguístico de referências, e é assim que fazemos associações dos nossos conhecimentos pra gerar novas ideias. Partimos de coisas soltas que já sabemos, que se encontram em trouxinhas isoladas, e as ligamos a outras, num processo sem fim.

É claro que só podemos produzir a partir de nossas referências, e também o fez Tarantino, assim como Scorsese pareceu acreditar.

Dá pra ver nisso um pouco de Aristóteles e o silogismo, de dialética hegeliana, talvez. Mas, principalmente, a importância dos nossos papos, de nossas bizarrices lógicas que, num primeiro instante, parecem banais e sem propósito.

De certo ponto de vista, não poderíamos então dizer que absolutamente todas as histórias possíveis são uma só?

Porque, de certa forma, todo mundo conhece alguém que conhece alguém que conhece alguém. Todo mundo está nesse filme que, no momento, está sendo contado tendo Maria ou João como protagonistas, mas amanhã pode ser narrado tendo Marília como mocinha, que não conhece Maria e nem imagina que ela é prima da ex-namorada do seu colega de infância que mudou de escola.

Não?

Desculpe, falei demais. De certo achei que falasse com você que está sentado aí na outra ponta dessa mesa. Quem sabe tenhamos caminhado juntos por essa bizarrice lógica. Que tenha podido ao menos entreter.

Sabe, sou daquelas que se deslumbram fácil com a cultura das banalidades. Isso é, cultura inútil me interessa, e muito.


publicado em 22 de Fevereiro de 2016, 18:35
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Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.


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