Quando perdoei meu descontrole emocional

O jogo do Brasil, o karaokê, a peça de teatro e o medo

13 de junho de 2006. Copa do Mundo da Alemanha, Brasil e Croácia. A expectativa de ver o quadrado mágico entrar em campo era demais. Sabem como é, copa do mundo. As pessoas ficam mais felizes. Só falam disso. Todos os problemas desaparecem.

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Quando criança, eu era mais pobre do que sou hoje. Dona Luiza, assim como uma quantidade absurda de mães solteiras, tinha que trabalhar todas as horas possíveis pra garantir o sustento de casa. Minha irmã, para ajudar, fazia o mesmo. Como eramos apenas nós três, a tendência era que eu passasse a maior parte do tempo sozinho.

Para minha sorte, havia uma vizinha que cuidava de mim. Não consigo dizer babá, mas era basicamente isso. Minha mãe acordava na madrugada, me levava pra casa dela e ia trabalhar. Eu ficava lá o dia inteiro. No fim do mês ela dava uma ‘ajuda de custo’, algo equivalente à 50 ou 100 reais nos dias de hoje. 

Oficialmente eu fiquei com essa "babá" até meus 9 anos. Depois minha mãe não conseguiu mais pagar e eu comecei a ficar em casa sozinho. Algumas vezes passava o dia na rua jogando bola, mas na maior parte do tempo eu acabava indo pra casa dela. Eu havia sido criado ali, não conseguia me desligar e nem ela deixava de me acolher por causa de dinheiro.

Quando eu estava com uns 10 anos descobrimos que ela tinha câncer.

Foi triste, foi feio.

Chegou uma hora que eu não aguentava mais ver alguém que eu amava tanto sofrendo e, como faço com tudo que é importante na minha vida, me distanciei.

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3 de Setembro de 2014. O meu namoro de três anos acaba. Depois de irmos ao karaokê com alguns amigos, minha ex-namorada, por motivos que até hoje eu não entendi direito, disse que não dava mais. Eu fiquei estático com a notícia, fui pra casa, dormi e, quando acordei no outro dia, ele surgiu.

O medo.

Eu senti um medo absurdo, medo de ficar sozinho, medo de que ela não voltasse, medo de perder o que era o sentido da minha vida. Nós tínhamos planos, ora bolas. Como assim, acabou? Me desesperei.

Eu não sei como é para outras pessoas, mas pra mim o medo é um sentimento soberano, egoísta e devorador. Ele não gosta de dividir espaço. Ele ocupava todo o meu corpo, toda a minha alma, todo o meu ser. Não havia espaço pra qualquer outro tipo de sentimento. Nenhum tipo de alegria, nenhum tipo de dor. Só o medo. O medo e só.

Ainda há dias em que ele aparece. O medo. E são dias que eu não consigo fazer nada, ou faço mal. Dias improdutivos no trabalho, dias que eu não quero conversar com ninguém. Eu me distancio.

Há algumas semanas ele veio. Eu fiquei 14 dias sem me comunicar direito. 14 dias sem mandar um oi para minhas melhores amigas, nem uma mensagem. Duas semanas em que minha comunicação foi basicamente ‘bom dia’ pra minha mãe e algumas palavras trocadas com meu chefe na empresa em que trabalho.

Como eu disse, quando ele vem é só ele. Só o medo. O medo e só.

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08 de abril de 2017. Eu estava na rua quando uma amiga me chamou pra ver uma peça. O teatro, construído com containers, fica num espaço público que foi ocupado na Luz. Bem no meio da cracolândia. Ingresso barato, comidas boas com a política de ‘pague o quanto você achar que vale’. Estava bem cheio. 

A peça, “Luis Antônio Gabriela”, conta a história de uma transexual, do nascimento à morte. Uma peça real, muito real. Passei por uma mistura bem intensa de sentimentos. Dor, ódio, dó. Alegria em poucos momentos. Mas quando acabou eu fiquei triste. Muito triste. Um estado de melancolia quase catatônico. As pessoas ao redor choraram, se abraçaram, falaram sobre o quanto a peça é forte, etc.

Eu não. Eu fiquei ali, quieto. Triste. Distante.

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13 de junho de 2006. Copa do Mundo da Alemanha, Brasil e Croácia. A expectativa de ver o quadrado mágico entrar em campo era demais. Sabem como é, copa do mundo. As pessoas ficam mais felizes. Todos os problemas parecem desaparecer.

Kaká fez o gol no fim do primeiro tempo. Eu corri, gritei, soltei fogos, abracei os amigos. Como todo mundo deve ter feito no momento. Mas não foi normal. Não deveria ser, pelo menos.

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13 de junho de 2006, mais cedo. Acordei, ansioso pelo jogo e pelo churrasco. Eu amo churrascos. Desci pra tomar café e recebo a notícia.

“A tia Lada morreu”.

Lada. Imaculada. Esse era o nome da vizinha que cuidou de mim durante boa parte da minha vida. Eu não disse nada. Tomei meu café. Subi pro meu quarto, fiquei lá deitado até a hora do jogo. Vi minha mãe saindo pra ir no velório.

Eu?

Troquei de roupa e fui pra casa de uns amigos assistir a seleção.

Não me tome por frio ou insensível. Eu senti. Cada fibra do meu corpo, cada célula nervosa, cada... Eu senti. A mulher que tomou conta de mim 11 dos meus 12 anos. Uma das pessoas que eu mais amava. Uma segunda mãe pra mim. Eu senti. Eu não consegui lidar com aquilo. Eu não consegui me expressar, não consegui demonstrar nada. Mas doeu, de diversas maneiras. Doeu por dentro.

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8 de abril de 2017. “O amor deve ser compartilhado, não acumulado. Eu não acumulo o amor. Ele vaza”.

Essa frase (ou algo parecido com isso) foi dita na peça “Luis Antônio Gabriela”, num momento lindo. Foi uma das poucas vezes em que eu senti uma espécie de alívio durante a apresentação. Tanto pela personagem, quanto pelo que aquela frase poderia significar pra mim.

Foi como aceitar que nem todo sentimento pode ser controlado. E entender que cada um lida de uma maneira com isso. Desde o medo no término de namoro à tristeza com os tapas na cara que uma peça pode dar.

O amor vaza.

Os sentimentos vazam. De formas diferentes.

As vezes eles vazam para fora, para outras pessoas, quando você exterioriza tudo o que sente. Quando chora, abraça, grita.

Mas em outras, você se distancia. Porque algumas vezes ele apenas vaza.

Para dentro. 


publicado em 17 de Abril de 2017, 17:40
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Felipe Santos

Felipe Santos é um músico amador, leitor ávido de HQ's, estudante de economia, amante de batatas e pagode anos 90 nas horas vagas.


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