Quando acreditávamos em papai noel e outros mitos

Sobre as estranhezas do nosso corpo e o que pensávamos saber na infância.

A espera de uniforme, Ana examinava o pinguelinho do xixi. Nunca achava o buraco daquele trocinho. Fuçou mais e encontrou uma abertura para baixo da mangueirinha. Era meio grande, mas não era o furico do bumbum e, ai meu Deus, não tava ali antes, não! Como o rasgo tinha acontecido?

Ela não entendia nada, só sabia que precisava de uma solução rápida antes que suas entranhas começassem a escorrer pelo furo indevido.

— Manhêêêê!

Rafael às vezes se tocava. Nem sabia como tinha começado. Era gostoso, então ele continuava. Um dia ele continuou pra valer, tava aprendendo a fazer melhor. A mãe não chamou, o telefone não tocou, então ele só continuou. De repente, começa a sentir uma pressão e explode para fora de si uma gosma translúcida. Droga! O que era aquilo? Ele mexera demais no trocinho… Por que que ele não parou como das outras vezes? Agora tinha quebrado! Ou machucado, ou sabia lá o quê... Só sabia que deu errado e o pior de tudo era pensar numa desculpa para dar à mãe e ao pediatra.

Com a mochila nas costas e descabelada de sono, Gigi esperava o perueiro. Olhou para a mesinha onde ficavam as contas e viu um pacote de amostra grátis escrito “Gel lubrificante”. Ouviu a buzina, se olhou no espelho, agarrou o gel e correu para a perua. Antes de começar a Educação Física, espalhou o gel pelas mãos, amarrou o cabelo e correu para a quadra.

Dani e Gabriel ouviam sobre a importância de se proteger das DSTs no sexo oral e anal. Dani achava o sexo oral normal, afinal, durava uma hora, quase igual um filme. Mas sexo anal deveria ser coisa de milionário. Onde já se viu ficar um ano pelado na cama? Gabriel estapeou a cabeça da irmãzinha e esclareceu que sexo oral era o que se faz com a boca. Já o anal, ele não tinha tanta certeza, mas deveria ser ou pelo buraco do nariz ou pelo do ouvido.

Fernanda olhava com cara de reprovação para um casalzinho do colegial que se beijava. Era muito nova mas já sabia que o espermatozoide é uma sementinha que se junta com o óvulo formando um bebê. “Irresponsável essa menina”, pensava. “Ou ela ou seus pais. Eles não contaram pra ela que o espermatozoide ia sair da boca dele e parar na barriga dela?”

Ivan levantava os braços e passava os dedos pela axila e pelo peito. Era automático, imitava o comercial contra o câncer de mama. “Ao notar protuberâncias, procure seu médico”. Ao escorregar a mão pelo arredor do mamilo, o garoto engole seco. Tinha um caroço. Lembrou da moça da novela. Seus olhos marejaram. Imaginou-se careca, de lábios pálidos e procurando transplante. Tomou fôlego e, ensaiando as palavras, foi anunciar seu diagnóstico à mãe.

Carlos deixou escapar que viu um imã de motel colado no carro dos pais. Ficou surpreso. É que não sabia que os pais sabiam andar de moto. João fez chacota da ingenuidade do  colega e explicou que no motel todos andam pelado, fazem sexo de porta aberta, se deitam em qualquer lugar, “todo mundo fica lá ouvindo e vendo os outros…” Carlos não sabia se acreditava ou não, mas passou semanas encarando os motéis do caminho pra ver se alguma garagem abria e dava a ver parte da sem-vergonhice. Enquanto não tirava a dúvida, estava constantemente bravo com os pais. Onde já se viu?! Logo eles, que vivem dizendo que não pode isso, nem aquilo, que ele tem de seguir as regras e fazer as coisas certas, se revelarem tão falsos e pervertidos.

Carol sentiu algo escorrendo pelas partes. Era a menarca, ela sabia muito bem. Pegou um absorvente da mãe e foi ao banheiro. Se assustou quando viu que não havia mancha de sangue, só uma gosma melequenta e branca. Branquíssima. Era gozo, ela sabia e por justamente sabê-lo Carol entrou em pânico. Por que diabos saíram espermatozóides de dentro dela? Talvez fosse uma mutação. Era isso: se via menina por fora, mas por dentro era todo um homem. Já tinha ouvido falar disso. Que azar o dela, nunca mais teria uma vida normal. Ou sofreria com o preconceito e o nojo das pessoas, ou não contaria pra ninguém, lavaria as próprias calcinhas e não namoraria nunca mesmo. Escolheu a segunda opção e pronto.

Maria beijou um menino na festa. Não foi a primeira vez do beijo, mas foi inédito sentir a dureza dele pressionando as coxas dela. Aproveitou um pouco e foi embora depois. Não conseguiu dormir. Ele tinha ficado duro e se tivesse gozado também sem falar pra ela? E se os espermatozoides deles percorreram o shorts dela e atravessaram para a calcinha subindo pelas entranhas. A amiga confirmou que, de acordo com o ginecologista, o espermatozoide passa por tudo mesmo. O pior é que a mãe nunca acreditaria nessa história de virgem Maria. Foi à farmácia tentar resolver o problema.

***

Todos essas são histórias reais com os nomes preservados. Na infância, quando surge uma pergunta na cachola, a imaginação misturada com uma certa lógica primária cria logo alguma explicação. Algumas dessas dúvidas assustam, congelam o estômago e fazem pequenas vidas passarem inteiras diante de pequenos olhos. Com algumas conversas, muitas delas passam. Passam e deixam um sentimento de “como eu era bobo”. Outras ficam. Ficam pelo medo da pergunta em si já ser motivo de repressão. Ficam e atormentam durante anos.

Agora queremos saber: qual foi sua dúvida ou invencionice de infância?

Nos vemos nos comentários :)


publicado em 20 de Dezembro de 2016, 06:00
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Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro "Amulherar-se" . Atualmente também sou mestranda da ECA USP, pesquisando a comunicação da sexualidade nas redes e curso segunda graduação, em psicologia.


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