Quando a gringa vai ao subúrbio carioca

Nada como o 465 Cascadura para vislumbrar o andar das gerações...

Moro no Brasil desde 1981, o ano do atentado ao Riocentro, quando militares tentavam provar que o país não estava pronto ainda para a democracia. Um morreu, o outro ficou gravemente ferido.

Me mudei de São Paulo para o Rio de Janeiro em 1995, tão assustada por histórias de assaltos e sequestros que circulava num carro blindado. Mas, como contei em Quando a gringa sobe um morro carioca, depois do divórcio minha vida mudou.

Hoje, acompanho a transformação do Rio no meu RioRealblog, andando de tudo menos carro blindado...

Esses cinco rapazes dançaram para 80 mil pessoas em Londres. Foto tirada em um banco da Praça Seca, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro.
Esses cinco rapazes dançaram para 80 mil pessoas em Londres. Foto tirada em um banco da Praça Seca, em Jacarepaguá, Rio de Janeiro.

Numa noite de julho de 1978, estava na hora de largar o divertimento com os amigos e voltar para casa — a casa de minha família brasileira no Itanhangá, lá para a Barra da Tijuca. Na época a Barra era tão deserta que essa família tinha dificuldade em manter uma empregada. As domésticas achavam a Barra muito longe.

Tomei um táxi até a praça onde ficava o ponto de ônibus. Chegando lá, o motorista trancou as portas. “O ônibus não chegou ainda,” ele disse. “Melhor você ficar aqui. É perigoso.”

Gelei, sem saber o que era pior: descer do táxi e esperar sozinha na praça mal iluminada, ou permanecer com o taxista. Ai, se meus pais, seguros na minha casa suburbana de Boston, soubessem onde eu me metera!

Resolvi utilizar minhas habilidades embriônicas de jornalista:

“Há quanto tempo que você trabalha como motorista de táxi?” perguntei, iniciando uma entrevista para ocupar a mente do meu possível agressor. Fiquei sabendo até os nomes dos filhos dele.

Pegava sempre o ônibus para a Barra dessa praça. Mas quando voltei a morar no Rio de Janeiro em 1995, eu nunca mais a encontrei. Não me lembro do nome do local, nem do número de ônibus, nem do que eu estava fazendo aquela noite com os amigos, nem onde estive com eles. Só me lembro da conversa com o motorista de táxi e do meu alívio quando o ônibus de fato chegou.

Os reflexos podem demorar...
Os reflexos podem demorar...

Em 1995, o Rio já mudava. O prefeito César Maia mexia no mapa com o Rio Cidade, criando engarrafamentos inesquecíveis.

Mas num dia de fim de setembro, quando subi no 465 Cascadura, nos fundos do Clube do Flamengo, tive um lampejo de sensação de que era ali que o motorista de táxi me contou a história da vida dele.

Hoje, a Barra continua muito longe, mas está repleta de prédios, shoppings, carros, e gente. Passando numa tarde de sexta-feira na Avenida Ayrton Senna, que em 1978 devia ser um pântano, tem-se a impressão de que é ali que se encontra a maior parte dos seis milhões de cariocas.

Andei em setembro último no 465 para a praça Seca, cruzando parte da Zona Oeste, e o trajeto foi um retrato do novo Brasil. Nada menos que duas hiper lojas da multinacional francesa de material de construção e de casa Leroy Merlin, no caminho. Novas áreas de lazer abertas e ocupadíssimas no pé da favela da Rocinha. Equipamento de construção, passarela nova, canteiros de metrô.

“Motorista!” grita uma passageira lá no fundo. “Para no ponto!”

“Acabou o ponto!” avisa ele.

Em São Conrado, perdura o motel Escort. Também a Villa Riso, o Golf Club, os voadores de parapente e asa-delta, e, ainda bem, a imponente Pedra da Gávea.

Angulos inusitados surgem.
Angulos inusitados surgem.

Lembro de minha conversa no dia anterior com um dos porteiros de meu prédio, em Ipanema. Empoleirado na esquadria, ele limpava os vidros do meu apartamento. “Antes, a favela era dividida, uma parte com cada facção,” ele contou, descrevendo onde mora. “Agora é tudo um, e da polícia” disse, trazendo os braços para junto enquanto se equilibrava.

Vejo a saída de um novo túnel cravada em concreto e rocha, já na Barra, depois de me deparar com uma placa: “Sorria, você está na Barra Olímpica”. Antigamente, a placa mandava sorrir, sem mencionar os Jogos Olímpicos.

A Barra é um lugar estranho, difícil de sorrir sem ser mandado. Condomínios de casas chiques se esbarram com shoppings e postos de gasolina, pois na época em que eu morava com minha família brasileira e as empregadas não queriam trabalhar aqui ninguém prestava atenção em zoneamento ou saneamento. A democracia brasileira evoluía apesar dos militares, e já era grande coisa agitar por eleições diretas para presidente; imagina se alguém se importava com os afazeres de prefeito e vereadores. Assim se fabrica um sistema lagunar de esgoto in natura.

Mas agora tudo muda, e a herança daquele passado convive com as aspirações de economia emergente, de forma bem olímpica. “É um choque,” diz minha colega de banco de ônibus, que subiu na altura da Rocinha e carrega no colo um bolo para a mãe, aniversariante. “Todo mundo tem carro na garagem lá em Pernambuco. É a Bolsa Família.” Lá na terra dela, acrescenta, o voto se vende. Bem, aqui também, de acordo com uma matéria da Veja, que trata justamente da Zona Oeste.

O que mais tem nessa cabeça?
O que mais tem nessa cabeça?

Diz a Veja que os milicianos conseguem fazer com que o voto não seja secreto. Não é por nada que o Exército veio nos ajudar com a eleição. O Globo relata pouco sobre tráfico eleitoral.

Enquanto isso, a pernambucana do bolo diz que vai de trem para o trabalho, e aprendeu a empurrar as pessoas como todo mundo faz. “Não são seres humanos, eles fedem,” ela descreve, abanando a mão por debaixo do nariz. “Uma vez um homem grande bloqueou a porta e não queria me deixar sair, dizendo que não fui educada com ele,” diz ela, ajeitando com um dedo os óculos de sol degradée. “Chutei a porta.” Nos trens, acrescenta, não há segurança — o que existe é só nas plataformas. E os trens de ar condicionado não fazem o trajeto dela.

Passamos pelos acessos ao Riocentro, que também perdura. Em 1981, os militares da bomba, lá estacionados num carro esportivo Puma, devem ter se sentido numa ilha, potentes. Hoje o centro de convenções e feiras está cravado no meio de prédios, favelas e muita construção relacionada com as Olimpíadas.

Em Jacarepaguá, na praça Seca, logo após a rua Albano, onde em 1978 estudei português nas manhãs dos dias em que saia com os amigos de noite para depois voltar à Barra de ônibus, me aguarda um grupo de jovens. Atrasei; a viagem no 465 durou quase três horas, em vez de duas, como eu havia previsto. No meu trajeto não existe uma das novas pistas dedicadas a ônibus articulados da prefeitura; eu poderia ter ido a São Paulo e já estar de volta ao Rio.

O amor pelo passinho.
O amor pelo passinho.

Mas os rapazes têm tempo disponível, como já me explicou o escritor Julio Ludemir, que trabalha com jovens há muito tempo e é quem organizou a Batalha do Passinho, no ano passado. Nas competições — de coreografias originais à batida da música funk — os jovens se tornaram estrelas fora de suas comunidades de origem. Diz Julio que é essa a primeira geração de brasileiros pobres que não precisou se focar exclusivamente no sustento familiar. Os meninos do passinho conseguiram ter tempo para pesquisar coreografias na internet, para dançar, e para postar no YouTube vídeos feitos nos seus telefones. Assim, formaram uma rede de jovens que dança o passinho. Todos se conhecem.

Há um mês, Julio levou para Londres dez rapazes para dançar junto a cadeirantes, no fechamento das Paralimpíadas (veja o vídeo a partir do 1:38:12), diante de um público de oitenta mil pessoas. São sete deles que irão conversar comigo.

O recôndito compartilhado.
O recôndito compartilhado.

Quando chego e encontro cinco dos rapazes sentados em um banco da praça, eles ostentam seus troféus: chinelos, bonés, mochila, tênis, todos de grifes esportivas.

Para poder dedicar boa parte da diária paralímpica às compras, comiam no McDonald’s. Experimentaram alguma coisa da cozinha local? “Muito apimentada,” reclama o Michel Souza, fazendo careta.

Alguns deles se misturaram com a população londrina, graças a um dos rapazes, que fala inglês. Não sabem o nome do lugar, mas perto do Big Ben e da “roda gigante” (o London Eye), havia gente dançando hip-hop. Munidos de pen-drive, os rapazes botaram para quebrar.

(Confira esses doisvídeos dos meninos dançando, filmados logo atrás da banca que fedia à urina.)

Tiveram que ensaiar durante boa parte das duas semanas que passaram na terra da Rainha. Apesar disso, deu para fazer algumas observações: “O ônibus não faz barulho!” diz um, fazendo um movimento com a mão para denotar suavidade. “Até a bicicleta para no sinal!” maravilha-se outro. “Os caixas eletrônicos ficam no meio da rua. E na parada de ônibus, diz quanto tempo o ônibus vai demorar para chegar,” acrescenta um terceiro, enquanto comemos uma pizza metade frango com catupiry, metade calabresa, numa lanchonete da praça. A massa é grossa e crocante, bem boa. Os meninos botam gordas linhas de ketchup, e todos tomamos sedentos goles do litro de Coca-Cola que pediram.

“Fica mais barato assim,” ensinara Fábio Almeida, 20 anos, mesmo sendo que eu os convidei. Chegam mais dois rapazes, que atrasaram mais do que eu.

“Cebolinha Do Bonde”, 22 anos, reparou que a máquina de refrigerante dá troco. “Aqui tu bota moeda e para conseguir a lata, tem que—” ele faz mímica de sacudir. Porém, ele conclui, no Brasil é mais liberal, pode-se beber na rua (o grupo diz que não bebe, nem fuma nem faz uso de drogas).

“O preço do carro tá mais barato lá,” interrompe Yuri “Mr. Passista”. “Entre ele e eu — ele aponta o “Granfino Maridão Mr.Passista” — “a gente compra um carro.”

"Tia, são seus filhos?"
"Tia, são seus filhos?"

“Tudo fecha às dez horas. Em Londres não há cheiro, cheiro de nada,” finaliza Cebolinha. “Quando cheguei de volta e senti o cheiro de fossa, me senti em casa.” Ele abre um sorriso amplo.

As casas às quais chegaram — algumas em favelas não pacificadas, outras sim — ainda enfrentam um longo caminho até que o Cebolinha estranhe a falta de fedor aqui. No momento, o Brasil está com um pé cá e outro lá. Os rapazes surfam a internet, inventam, rodopiam e o Cebolinha (que sonha ser dono de uma academia) vai aparecer como figurante dançante na nova novela das nove. Formaram um grupo, o Bonde do Passinho, e querem arrumar trabalho. “Prefiro dançar em palco,” diz Fabio.

Porém apenas um deles terminou os estudos: no fim de nossa pizza, sai briga na mesa em torno da questão de se é melhor estudar o inglês ou o espanhol. Qual é mais falado no mundo, querem saber de mim, para resolver a dúvida — sendo que o português deles ainda é falho. Quase todos largaram os estudos. Bem que a mãe do Cebolinha lutou, inscrevendo-o no turno noturno do colégio. Para poder ensaiar, ele simplesmente deixou de ir.

Vistas que se abrem.
Vistas que se abrem.

Enquanto pago a conta, ficam evidentes as léguas entre o público de oitenta mil que os assistiu em Londres, e o subúrbio carioca — e para qual lado os rapazes tendem a cair. Pois todos eles desfilam vagarosamente pela mesa do lado, ocupada por uma senhora e três meninas pré-adolescentes. Participam de uma troca de olhares, comentários, perguntas.

No meio do burburinho, fujo para o banheiro. Duas meninas me seguem. “Tia?” chamam, e abro a porta da baia, onde procurava um gancho para a bolsa, máquina fotográfica, etc. “Eles são seus filhos?”.

Até eu sair do banheiro, fechou-se o balanço. “São muito bebês,” declara a menina mais nova, e também a mais ousada, voltando com o quadril em ação à mesa da mãe, que sorri para mim.

Os rapazes me aguardam na calçada. A gente atravessa a rua, e nos fundos iluminados de uma banca de jornal, com cheiro forte de urina, eles demonstram a habilidade de que dispõem para fazer um show, batendo palmas e cantando, um deles apenas de chinelo. Foi assim que o passinho começou.

Orgulho de quem dança o passinho.
Orgulho de quem dança o passinho.

Os pés deles traçam acrobacias rápidas e impressionantes, que advêm do frevo, hiphop, break, capoeira e outras danças que pesquisaram na internet. Eu penso que o Brasil está mesmo com um pé cá, outro lá, e o mundo de hoje muda rápido demais: apenas entre 2009 e 2011, cinco milhões de brasileiros deixaram a pobreza, quase um Rio de Janeiro inteiro. Como tantos outros milhões nos últimos anos, essas pessoas entraram na economia formal, de trabalho, estudo e consumo.

Mas o passo da mudança social às vezes é terrivelmente devagar, e faltam outros milhões de professores, engenheiros, e médicos-- e alguns políticos empenhados para que ela aconteça.

Enquanto isso, um número crescente de ativistas urbanos diz que o futuro do Brasil reside nessa geração de jovens, o babyboom brasileiro, pois depois deles teremos uma preponderância de velhos. Espera-se deles liderança e visão.

O pedido é grande e o futuro está por se desdobrar. As certezas podemos procurar apenas no passado. A minha é de que meus pais, que não viajaram na juventude deles (minto, meu pai foi à Bélgica, a congelar os pés em 1944, na Batalha das Ardennes) trabalharam duramente para que eu pudesse ouvir a história de vida de um taxista em 1978, à noite numa praça do Rio de Janeiro. E que isso me levou à grande e inesperada oportunidade de estar aqui hoje, ouvindo as histórias desses sete rapazes-- e de especular sobre o futuro deles e de seus filhos, alguns dos quais já nasceram.

Para a próxima geração, só um passo.
Para a próxima geração, só um passo.

publicado em 01 de Dezembro de 2012, 09:17
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Julia Michaels

Norteamericana, Julia Michaels mora no Brasil há 30 anos. Desde agosto de 2010, cobre a transformação do Rio de Janeiro em inglês e português, de maneira construtiva e independente, no seu RioRealblog.


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