Qual é o compromisso que o Ministério Público assumiu conosco com a rejeição da PEC 37?

Na última terça-feira, dia 25 de junho, a Câmara dos Deputados rejeitou a Proposta de Emenda Constitucional nº 37, em uma das muitas respostas políticas dadas pelas instituições às manifestações recentes  que agora parecem mudar de perfil.

A bandeira da PEC 37 foi incorporada pelo movimento naquela fase em que se afirmava muito que “não era só por vinte centavos” e integrou os tais cinco pontos do Anonymous.

Aliás, me impressiona que dos tais cinco pontos três envolvam diretamente matéria penal. A eleição desses três pontos (incluída a besteira de incluir os crimes contra o patrimônio público no rol dos hediondos), aliada à rapidez com que se responde a eles, já é um baita assunto por si só.

Interessante notar que a era da informação operou transformações impressionantes no processo de convocar as pessoas para as ruas. Mas a desejada difusão da informação ainda não veio e isso ficou claro quando percebi que mesmo dentre os mais engajados, poucos sabiam bem o que era a PEC 37 e poucos se dedicaram a ler sobre a questão.

O encerramento da votação não quer dizer que se encerrou o assunto então cabe examiná-lo com calma agora.

O que é a PEC 37

A Proposta de Emenda Constitucional 37 é de autoria do Deputado Federal Lorival Mendes (PTdoB/MA), que, antes de ser eleito, era Delegado de Polícia. A profissão do Deputado é relevante quando analisarmos a briga institucional que está no fundo da confusão toda.

A PEC tem como objeto incluir no art. 144 da Constituição, que trata da segurança pública, o parágrafo décimo, que teria a seguinte redação:

art. 144 da Constituição

Então, se fosse aprovada a PEC 37, a investigação criminal seria exclusiva das polícias, salvo outras hipóteses nas quais a própria Constituição prevê o poder de investigar, como no caso das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI).

A PEC 37 então viria para corrigir um suposto “esquecimento” da Assembleia Constituinte de 88 e colocar a investigação nas mãos das polícias.

Então como é hoje?

Ainda que não exista regulamentação expressa e minuciosa sobre a questão, a realidade mostra que inúmeros órgãos exercem poderes de investigação. Desde os Policiais até órgãos da Receita Federal e Estadual, passando por particulares, como a Imprensa. Até mesmo cidadãos interessados estão amparados pelo Código de Processo Penal para juntar informações sobre um crime e encaminhá-las à Polícia (para investigação) ou para o MP (para propositura da ação penal).

Então, embora o inquérito policial seja o instrumento de investigação mais comum, a verdade é que não é o único nem há exclusividade de atuação por quem quer que seja.

E o Ministério Público nisso?

O Ministério Público vem crescendo em prestígio nos últimos tempos, não só pelas inúmeras atuações mas também pela força política e jurídica que exerce.

A Constituição o define como instituição permanente e função essencial à justiça, cabendo-lhe, de mais importante para este texto, a defesa do regime democrático, dos interesses difusos e coletivos - aqueles cuja titularização transcende o indivíduo, como o meio ambiente, os direitos dos consumidores, o patrimônio público, cultural e histórico (isso vai ser importante ao falarmos da disputa institucional) - e a propositura da ação penal.

A maioria dos argumentos a favor dos poderes investigativos do Ministério Público se articula no último ponto: “como pode a instituição ter o poder de ajuizar a ação penal sem que tenha poderes pra investigar?”

Os argumentos a favor da investigação pelo MP (contra a PEC 37)

Os defensores da investigação pelo MP se apoiam num argumento de muito prestígio no exterior, principalmente nos Estados Unidos: a teoria dos poderes implícitos.

O STF já acolheu a referida teoria para explicar a competência de algumas instituições públicas, conforme explica o Ministro Celso de Mello:

(...) os poderes implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no célebre caso McCulloch v. Maryland (1819), enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos. (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.797-2 – Distrito Federal).

Assim, se a Constituição deu ao MP a competência para ajuizar a ação penal, óbvio que nessa competência se insere também a de investigar. Do contrário, seria impossível concretizar a missão constitucional. Afinal, o sucesso da ação (que, dependendo da visão, se confunde com a condenação do réu) depende da instrução probatória. É a lógica do “quem pode mais, pode o menos”.

Com base nessa ideia, o STF já vinha decidindo favoravelmente à possibilidade de o MP investigar (HC 91613/MG e HC 84965/MG), embora o exame aprofundado da questão tenha ficado guardado pro julgamento do RE 593727/MG, em que se reconheceu repercussão geral sobre o tema.

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Ou seja, ainda que a PEC 37 tenha caído, tem água pra passar debaixo dessa ponte. O STF tanto pode, ao julgar o RE 593727/MG, decidir que pelas regras atuais o MP não pode investigar, pode decidir pela possibilidade de investigação, ou ainda adotar algum meio termo.

Os demais argumentos a favor praticamente dependem de se considerar como regra a incompetência ou corrupção de nossas polícias, e não os desenvolvo por respeito aos policiais que conheço. É daí que saem certos apelidos como “PEC da impunidade” ou o sensacional argumento de que “se o Maluf é a favor, eu tenho que ser contra”.

Além disso, consta que a PEC teria o apoio de autoridades que são alvo de investigações recentes do MP, o que embora faça certo sentido, não dá pra afirmar com certeza.

Os argumentos a favor da PEC 37 (contra a investigação pelo MP)

Os argumentos favoráveis à PEC 37 se articulam em dois pontos principais: a garantia que representa a divisão de funções no sistema acusatório e o perigo de se levar longe demais a ideia dos poderes implícitos.

Pra entender o argumento relacionado com o sistema acusatório, é bom lembrar do sistema inquisitorial. Nele, há uma mistura das funções de acusador, juiz e até defensor. Um bom exemplo foi o Tribunal da Santa Inquisição.

A divisão das funções é uma garantia para o cidadão, que muitas vezes não tem condições de fazer frente ao poder do Estado. Afinal, se é verdade que quem investiga acusa melhor, também pode ser verdade que quem quer acusar vai investigar conforme essa intenção.

Levando em conta o contexto recente de demanda popular pelo “endurecimento” contra a corrupção, pode parecer boa a ideia de estabelecer um sistema “mais” inquisitorial. Mas há uma preocupação legítima quanto aos abusos de um sistema estruturado de forma a colocar a acusação em uma posição de proeminência, ainda mais em um país no qual a corda costuma arrebentar do lado mais fraco.

É por isso que aqueles que são contrários à concentração da função de investigar e acusar afirmam que a investigação não é o meio que garante o exercício da ação penal. A investigação não deve ser conduzida para esse fim, mas no interesse da justiça e no esclarecimento da verdade. Ao MP basta ter a estrutura organizacional necessária e isso ele já tem.

Além disso, a ideia de poderes implícitos cria um ambiente de nebulosidade institucional que favorece o abuso. Afinal, quem viu um Promotor de Justiça investigar pequenos furtos? Será que não cabe regulação desse “poder implícito”? A seleção do que investigar deveria estar sujeita a algum controle.

Ao final, se o MP cresce nas suas atribuições e poderes, seria extremamente necessário aparelhar melhor a Defensoria Pública – que sequer existe em alguns estados – para que ela possa defender melhor os acusados. Do contrário, abrem-se as portas para condenações injustas, em processos em que não houve igualdade de armas entre acusação e defesa.

O quebra pau institucional

Muito do que se discute de forma exaltada sobre a questão está relacionada a três atores importantes na persecução criminal no Brasil:


  • Os Delegados de Polícia, interessados em manter a exclusividade da investigação;

  • o Ministério Público, defendendo o que lhe parece uma atribuição natural sua;

  • e a Defensoria Pública, que ainda luta para ter a atenção e a estrutura que a defesa dos desfavorecidos merece.

Editorial recente do Estadão aponta que a PEC 37 foi uma reação da classe dos Delegados ao que viram como uma invasão do Ministério Público nas suas atribuições. Faz sentido se lembrarmos que o autor da PEC 37 veio da classe. A tensão entre as duas instituições é grande e vem aumentando.

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Joaquim Barbosa sobre a PEC 37: “Acho péssima. A sociedade brasileira não merece uma coisa dessas”

Por um lado, pode ser bom ver tanta gente querendo investigar crimes. Mas, por outro, fica a desconfiança de que a luta por atribuições está, na verdade, relacionada com prestígio e poder. Afinal, me parece ingenuidade achar que esta ou aquela instituição está imune à corrupção e que basta trocá-la para que a impunidade se resolva.

No desenvolvimento desse debate, em 2007 foi aprovada a Lei nº. 11.448, que conferiu legitimidade à Defensoria Pública para a defesa dos interesses coletivos dos necessitados. Vendo isso como uma invasão, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público pediu ao STF a declaração de inconstitucionalidade desta lei (ADI 3943, ainda pendente de julgamento). Isso opôs Defensoria e MP no debate sobre a PEC 37.

O compromisso que o MP assumiu conosco

O traço marcante das manifestações foi a crise institucional que vivemos. Governos, partidos, políticos, ninguém foi poupado das críticas – nem mesmo o futebol. Por isso, quando o movimento abraçou uma causa de uma instituição, foi muito impactante. Ainda mais quando a Defensoria, destinada à defesa da população carente, vive momento de crise institucional, com a votação iminente de PECs e projetos de lei que a afetam diretamente.

Ainda que se diga que o apoio está ligado mesmo ao combate à corrupção, toda a tensão nos bastidores colocam o Ministério Público em um local muito delicado. Não só pretende ser o maior legitimado na defesa dos interesses coletivos, mas também quer acumular a função de investigar com a de acusar indiciados.

Com isso, o MP passa a ocupar posição de grande destaque no cenário institucional brasileiro, concentrando as principais demandas populares, desde o controle da criminalidade, passando pelo meio ambiente e as relações de consumo, até o patrimônio público e o controle da administração pública.

Não é pouca coisa.

Além disso, o brasileiro não parece que vai tolerar outra desilusão institucional. É de se esperar que essa briga não seja apenas reflexo de um orgulho institucional, pois agora os olhos da sociedade estarão voltados para os Promotores de Justiça.

Esse é o compromisso que o MP, querendo ou não, assumiu conosco.

Boa sorte.

Pra aprofundar


publicado em 04 de Julho de 2013, 21:02
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Tiago Xavier

Tiago Xavier é atleticano e bacharel em direito. Nessa ordem. Twitta pelo @tcxavier.


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