Prisão Os Outros

A prisão não é se importar com Os Outros, mas não perceber que podemos escolher quais Outros nos importam.

O inferno são os outros, dizem por aí, mas raramente acrescentam que os outros são também o paraíso e o purgatório, tudo ao mesmo tempo.

São os outros que compram a última mussarela de búfala na delicatessen, que nos cortam no trânsito, que nos roubam a promoção no escritório, que nos estupram.

Mas também são os outros que nos amam, que acham que somos lindas, que nos estendem a mão, que validam nosso diploma, que pagam nossos salários, que operam nosso câncer.

Não há como fugir dos suplícios e delícias de compartilhar uma pedra rodopiante com sete bilhões de outras pessoas tão únicas e tão egocêntricas quanto nós — egoístas ao ponto de se importarem mais com elas mesmas do que conosco!

Estamos acorrentadas à Prisão Os Outros não quando nos importamos com as opiniões de quem nos rodeia, mas quando não percebemos que podemos escolher quem nos rodeia.

 

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Pessoas que não ligam para a opinião de ninguém

Talvez seja um dos piores elogios que recebo:

"Ai, Alex, um dia quero ser assim que nem você, não ligar para a opinião de ninguém!"

Mas uma pessoa que não liga para a opinião de ninguém é uma sociopata, imersa em seus próprios problemas e necessidades, cega e surda a todas as pessoas à sua volta.

Eu não sou assim (espero!) e não acho desejável que ninguém seja.

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Não temos a escolha de não nos importarmos com a opinião das outras pessoas.

Mas temos a escolha de nos importarmos com a opinião de quais pessoas.

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Existem outras tribos

A evolução nos fez seres gregários.

Se havia de fato pessoas que não ligavam para a opinião de ninguém, elas ou foram expulsas de suas tribos ou saíram por vontade própria, e morreram sozinhas, no meio do mato, sem deixar descendentes — provavelmente muito felizes.

Somos todas descendentes das pessoas que ficaram na tribo, que seguiam suas regras, que ajudavam umas às outras mesmo quando não tinham vontade, que morriam de medo de não estar adequadas à normalidade vigente, que faziam de tudo para pertencer ao grupo.

Por isso, uma das tarefas mais difíceis na vida de qualquer pessoa é ir contra as expectativas do nosso grupo.

Nunca será fácil anunciar para nossa família heteronormativa que somos gays, ou para nossa família de médicas que vamos cursar Geografia. Se já é difícil sair publicamente de um grupo de amigas de infância no WhatsApp, o que dirá então de sair publicamente de uma igreja, abandonar uma graduação, terminar um relacionamento, assumir a homossexualidade, fazer transição de gênero!

Dizer “não” às pessoas que nos cercam, às pessoas que nos viram crescer, às pessoas que rezam, estudam, transam conosco, vai contra os nossos mais profundos e arraigados instintos gregários, instintos selecionados por um milhão de anos de evolução, instintos responsáveis por nos tornar a espécie dominante desse planeta.

Não é fácil negar esses instintos, mas é possível.

E, se não quisermos ser escravas das expectativas do nosso grupo, é necessário.

Hoje em dia, a opção não é mais ou aceitarmos as regras da nossa tribo ou morrermos sozinhas no mato.

Existem outras tribos.

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Quem são meus ídolos

Há muitos anos, eu odiava sair de casa todo dia de manhã, de barba feita e fantasiado de executivo, para trabalhar o dia inteiro vendendo minha energia vital para realizar os projetos de outras pessoas.

Mas eu pensava:

“O errado deve ser eu. Afinal, todo mundo faz isso. Se essas pessoas conseguem, eu também consigo.”

E lá ia eu me torturar mais um pouco.

Um dia, uma pequena mudança de foco fez toda a diferença.

Em vez de olhar para as pessoas que já tinham se acostumado a tolerar as torturas que ainda me atormentavam, desviei minha mirada para as pessoas que viviam vidas diferentes, mais livres, mais abertas, mais bonitas, e pensei:

“Se elas conseguem, eu também consigo!”

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Não existe lugar onde possamos fazer o que quisermos

Quando trabalhei em uma empresa de investimentos em internet, o código de vestuário me oprimia: a chefa olhava feio até para barba por fazer. Finalmente, larguei tudo e fui fazer doutorado em literatura, pensando que lá poderia me vestir como quisesse.

Mas não era verdade.

O moço que ia de terno, gravata, sobretudo e pasta 007 (uma roupa perfeitamente adequada à minha empresa anterior!) era visto como um esquisitão. Um sujeito que um dia apareceu com uma camisa Lacoste foi zoado por uns seis meses. A moça que às vezes usava salto alto, cor-de-rosa e estampas de oncinha ganhou o apelido nada elogioso de Barbie.

Tanto a empresa de investimentos quanto o doutorado em literatura tinham códigos de vestuário severos, cuja infração acarretava penas sociais imediatas.

Com uma crucial diferença: o código de vestuário da empresa de investimentos me oprimia todos os dias, e o código de vestuário do doutorado em literatura nunca me incomodou.

Esse mítico lugar “onde podemos fazer o que quisermos” simplesmente não existe. É uma fábula que contamos para nós mesmas, para podermos tolerar os lugares que nos oprimem com as suas regras.

Mas não precisamos nem tolerar os lugares que nos oprimem com suas regras, nem nos perder em uma busca fútil pelo paraíso mítico da liberdade total sem regra alguma.

Podemos buscar lugares onde as regras não nos oprimam.

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Nem todas as pessoas vão nos amar

Existem poucas atitudes mais vaidosas do que autorizar a própria biografia.

São sempre pessoas públicas que já enfrentaram escândalos, ataques e polêmicas, e que parecem pensar:

“Ah, Beltrana me odiava porque não me conhecia; Fulana fez campanha pra me destruir porque não entendeu minha mensagem.”

Afinal, ninguém que realmente as conheça, ninguém que realmente as entenda, poderia odiá-las, confrontá-las, atacá-las.

Só essa certeza tão vaidosa justifica autorizar uma biografia e entregar todos seus arquivos ao escrutínio de uma outra pessoa.

A vaidade é acreditar que se a biógrafa ler todas as cartas, consultar todos os documentos, falar com todas as amigas, então, será impossível não amar a biografada.

A vaidade é não perceber que ninguém está ou esteve ou estará a altura dessa presunção. Que ninguém é ou foi ou será amada por todas.

As pessoas que não nos entendem, e que talvez nos odeiem, não é porque não nos conhecem direito ou porque não ouviram com cuidado nossa mensagem, e nem mesmo porque são canalhas ou mal-intencionadas.

Mas sim porque são outras pessoas, que fizeram outras escolhas, que tem outras prioridades, que viveram outras vidas.

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Cultivar a excentricidade

A filha de uma de minhas melhores amigas iria fazer aniversário e, por isso, perguntei a outra amiga:

“Eu não entendo nada de criança. Tem problema se eu der um vale-presente?”

E a amiga colocou uma mão carinhosa em meu ombro e respondeu:

“Imagina. Vindo de você, não tem problema nenhum!”

Mas esqueci de dar o vale-presente.

* * *

Ser artista é sofrer em público para o benefício das outras pessoas e se abrir ao seu julgamento — às vezes impiedoso, muitas vezes surpreendentemente generoso.

Se perguntamos a uma turma de jardim de infância, quem é artista, todos os braços se levantam. Ao longo dos anos, os braços vão minguando. Lá pela sexta série, as autodeclaradas artistas são apenas uma ou duas, levantando o braço de maneira bem hesitante, olhando em volta, temendo o julgamento de seus pares, não querendo nunca se tornar as esquisitas da turma.

Mas ocupar esse lugar da pessoa excêntrica e fora-do-padrão, pode ser salvador: ele nos permite transgredir as regras com uma liberdade que teria custado socialmente muito caro às outras pessoas.

* * *

Cultivar uma reputação de excentricidade foi uma das melhores coisas que fiz por mim mesmo.

Na adolescência, o peso das regras de conformidade social da minha escola teria me esmagado. Ser excêntrico, ser artista, ser esquisitão, salvou minha vida e minha sanidade.

Continua salvando até hoje.

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Quem desejamos atrair?

Ao invés de me modificar pra atrair gente que não gosta da pessoa que me construí para ser, eu sempre preferi me expor — e, então, receber e amar as pessoas que se atraem pela minha construção.

* * *

Na escola, eu me oferecia para fazer massagens nos pezinhos das meninas, elogiava quando apareciam com a unha feita, demonstrava reparar.

Sim, algumas não gostavam da atenção – e eu, naturalmente, por respeito e por cautela, nunca mais fazia comentários do gênero.

Algumas deviam me chamar de mil nomes pelas costas – mas e daí?

O importante é que algumas outras se aproximavam, curiosas, instigadas, fascinadas, puxando assunto: “nunca vi menino achar pé bonito”, “gosto tanto de carinho na solinha”, “ninguém reparou na minha tornozeleira nova, acredita?”, “como é que você fez massagem no pé da Lívia e ainda não fez no meu?”, etc.

E assim começaram praticamente todas as experiências sexuais da minha adolescência.

Minhas amigas e amigos, ao mesmo tempo em que zoavam, também tentavam me alertar:

“Mas, Alex, vale mesmo a pena pagar de maluco pra todas as meninas da escola só pra beijar o pé de três ou quatro?”

E eu respondia:

“Claro. Tem quinhentas meninas na nossa escola. Se todas se interessassem por mim, seria um pesadelo! Eu não teria tempo de fazer mais nada. Melhor eu me mostrar como eu sou e atrair só aquelas poucas que ficam atiçadas e curiosas, que têm as mesmas taras, que gostam tanto de ter seus pés lambidos como eu gosto de lambê-los.”

(Naturalmente, eu sou muito mais que uma pessoa que gosta de pés e qualquer mulher é muito mais do que um par de pés, ou um par de qualquer coisa, mas essa era apenas a primeira fagulha de interesse que dava ignição à paquera.)

Eu não quero todas as mulheres do mundo: quero apenas, dentre as que me querem, aquelas que eu também quero de volta.

Muita gente me acha esquisito? Claro. Essa é a ideia. Sou esquisito mesmo.

(Em um mundo tão canalha, a maior esquisitice seria não ser esquisito.)

Nada pode ser mais libertador do que se livrar da ilusão de que existe algo que possamos fazer para sermos amadas e desejadas por todas as pessoas.

Não tenho medo de rejeição. Ser rejeitado pelas pessoas certas só faz bem: me poupa o trabalho de ativamente espantá-las.

Eu me revelo justamente para descobrir quem vai bailar comigo e quem vai se encostar na parede.

Vale a pena afastar mil bois pra atrair uma única leoa.

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Uma questão de números

Uma amiga, depois da separação, entrou na fase de querer transar com uma pessoa diferente por noite. Mas, depois de algumas semanas, ela me confidenciou:

“Só tem homem canalha nessa cidade!”

E eu respondi:

“Olha, é uma questão de números. Nada contra transar com um homem diferente por noite, mas o rigor do seu processo seletivo vai ter que ser necessariamente baixo.”

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Procurando por filé mignon na peixaria

Outra amiga, uma variação da mesma queixa:

“Toda noite, eu saio com as amigas, dançamos, nos divertimos, eu encontro caras, às vezes levo um pra casa na hora da xepa, mas, porra, tudo canalha!”

E eu respondi:

“Nada contra pessoas que saem para dançar e transam com as pessoas que conhecem na pista de dança, mas parece, pelo que você mesma diz, que não são esses caras que você quer. Só que o mundo está cheio de gente. Quem gosta de pessoas esportistas, pode paquerar na academia, na praia. Quem gosta de pessoas leitoras, na biblioteca, na livraria.”

E completei:

“Senão, é como ir todo dia na mesma peixaria, pedir sempre filé mignon e depois reclamar que não tem filé mignon nessa cidade!”

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Não existe gosto unânime

Quando uma pessoa diz que, se não fizer uma tal coisa que normalmente não faria (seja se depilar ou fazer escova ou se barbear, etc), não vai conseguir atrair ninguém, ela está confirmando uma ideia muito perigosa: que as pessoas são homogêneas em seus gostos e que existem expectativas tão unânimes que quem não as preencham vão purgar uma solteirice eterna.

Só que não é verdade.

Se quisermos uma pessoa diferente por noite, aí sim talvez seja uma boa tática seguir o gosto médio.

Mas não é isso que a maioria de nós quer.

Em média, a pessoa brasileira têm doze parceiras sexuais ao longo da vida, um número razoavelmente pequeno, que podemos selecionar com cuidado, cautela, carinho.

Doze pessoas incríveis, doze pessoas tesudas, doze pessoas com quem vale a pena compartilhar nossa intimidade, ainda mais ao longo de toda uma vida, essas pessoas nós conseguimos encontrar em qualquer cidadezinha.

Sem precisar nos moldar ao pretenso gosto homogêneo de uma maioria que nem mesmo existe.

Sem precisar fazer nada que não queremos fazer.

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As vantagens estratégicas de não depilar

A indústria da depilação ganha a vida nos convencendo que todas as pessoas gostam de pessoas depiladas... mas será que é verdade?

Por que acreditamos tão facilmente em quem diz que somos fedidas e logo depois tenta nos vender sabonete?

De acordo com minhas amigas que não depilam, não depilar tem uma grande vantagem estratégica na hora da paquera.

Quando um homem dá em cima delas, ele nem sabe ainda, mas já passou em um disputadíssimo vestibular: ele provou que não é o tipo de cara que jamais daria em cima de uma mulher só porque ela tem a perna e as axilas peludas.

Talvez mais importante, também evita decepções futuras.

Se fossem depiladas, talvez acabassem saindo com caras que só toleram mulheres depiladas e aí, algumas semanas depois, quando eles soltassem algum comentário ofensivo contra mulheres não-depiladas (“olha só, parece uma macaca, essas mulheres não tem respeito próprio, não?”), elas ficariam revoltadas de ter perdido tempo com gente tão babaca.

Mantendo-se cuidadosamente não-depiladas, elas nunca correm esse risco.

Não precisar gastar dinheiro nem passar dor é bônus.

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A única maneira de descobrir quem gosta de cabelo azul

Se eu não pinto o cabelo de azul só por medo de que ninguém vai se interessar por mim se eu tiver o cabelo azul, então posso acabar saindo, namorando, casando, vivendo uma vida inteira com uma outra pessoa que também gostaria de ter pintado o cabelo de azul.

E ficaremos lá, as duas, na cama, de madrugada, olhando uma para a outra e pensando:

“Pôxa, e se eu tivesse pintado o cabelo de azul, hein? Será que não encontraria alguém legal que me amaria pelos meus cabelos azuis?”

* * *

Pintar o cabelo de azul, para quem quer pintar o cabelo de azul, já é uma recompensa por si só.

Mas, além disso, também traz uma outra vantagem estratégica: ter cabelo azul é a única maneira garantida de atrair pessoas que gostam de pessoas de cabelo azul.

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Na roleta da vida, só temos nós mesmas para arriscar.

Sim, arriscamos sofrer rejeições. Algumas pessoas de quem até gostávamos vão dizer:

“Cruzes, nunca levaria alguém de cabelo azul para conhecer vovó!”

Mas também arriscamos o grande prêmio:

Ser a pessoa de cabelo azul que sempre quisemos ser e, ainda por cima, namorar uma pessoa incrível que adora nosso cabelo azul tanto quanto nós.

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Qual é o nosso público?

Qualquer produtor de televisão pode confirmar: um programa para a TV aberta, que precise atingir um público de dezenas de milhões, é um produto bem diferente de um programa de TV a cabo, que será um sucesso absoluto se atingir poucos milhões.

Para o primeiro programa, é preciso continuamente aparar arestas (tem gente que se ofende com beijo gay?, então não pode ter beijo gay, etc) até que sobra um produto final razoavelmente homogêneo, pasteurizado, seguro, sem personalidade, que se anulou até não sobrar quase nada.

Já o segundo programa, por ter expectativas mais reduzidas, pode ousar mais, sabendo que cada ousadia tem seu custo-benefício (um beijo gay tem o custo de afastar o público homofóbico e o benefício de atrair o público LGBT e simpatizantes) até que sobra um produto final que certamente não agradará ao grande público, mas que agradará muitíssimo o público para o qual foi produzido.

O grande paradoxo do nosso comportamento sexual é sermos um programa de TV a cabo que passa às quartas-feiras de madrugada, mas agirmos como se passássemos no horário nobre da TV aberta.

Nossa ansiedade por ser amadas e nosso pânico de ficar sozinhas é tamanho que nos comportamos como se precisássemos atrair sete bilhões de pessoas, mas, na verdade, só precisamos atrair uma dúzia para ter uma vida inteira de relacionamentos plenos e satisfatórios.

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Desapegar de pessoas

Não faz muito tempo, eu acumulava pessoas. E dizia para mim mesmo:

“Todo mundo tem uma história.”

Mas aí, frequentemente, alguém fazia um comentário outrofóbico, mesquinho, fofoqueiro, e eu se pegava fingindo rir, às vezes até fazendo comentários similares pra não se sentir deslocado, ao mesmo tempo em que tinha vergonha de mim mesmo e de minha carência. E pensava:

“O que estou fazendo aqui?”

Então, comecei a desenvolver um trabalho constante de se desapegar de pessoas. Nada de brigar, riscar da agenda, trocar de mal: apenas um sutil afastar-se.

Um belo dia, anos depois, cercado de pessoas que admirava e que tinham tudo a ver comigo, percebi há quanto tempo não me fazia a velha pergunta, “o que estou fazendo aqui?”

Ultimamente, o que me pegava pensando era:

“Por que demorei tanto para estar aqui?”

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Só quem rema contra sabe a força da correnteza

Quando estamos remando a favor da corrente, descendo o rio, sendo tudo aquilo que a sociedade espera de nós, a viagem é tranquila e agradável, o mundo parece livre e florido, a vida não exige esforço algum.

Às vezes, algumas amigas criadoras de caso reclamam da correnteza, denunciam que o rio é caudaloso e violento, mas nós nem entendemos direito o que querem dizer:

“Gente, o rio é tão tranquilo, tão gostoso de navegar, será que não são vocês que estão vendo coisas?”

Um belo dia, entretanto, deixamos de ser uma ou mais daquelas coisas que a sociedade espera que sejamos. Pode ser um desvio pequeno ou grande, incidental ou ontológico, pode ser uma decisão de momento, pode ser revelarmos ao mundo aquilo que sempre fomos: abandonar celular, abraçar o ateísmo, tornar-se feminista, decidir não procriar, sair do armário.

De repente, a corrente não está mais nos levando para onde queremos ir: ela continua, como sempre, nos levando em direção a um emprego em tempo integral, mas agora queremos ser atrizes de teatro infantil. Para chegarmos ao nosso novo objetivo, para sermos quem queremos ser, teremos que remar contra a correnteza.

Nesse momento, quando enfiamos o remo na água para remar contra a corrente, é que percebemos tudo aquilo não percebíamos antes: que aquele rio que parecia tão agradável e tranquilo na verdade é forte, caudaloso, intolerante.

Um rio que é tão violento quanto são violentas as margens estreitas que o limitam.

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Muitas vezes sou acusado de ficar “reafirmando” meu estilo de vida, como se estivesse me gabando, como se fosse inseguro, como se quisesse convencer as outras pessoas.

Mas a correnteza é forte, inapelável, constante: ela está sempre nos levando rumo ao padrão que a sociedade exige de nós, tentando nos transformar em pais e mães de família, trabalhadoras, consumidoras, monogâmicas, heterossexuais, conservadoras.

Ninguém é tão transgressora que não aceite grande parte dessas obrigatoriedades sociais: mesmo quando transgredimos algumas, acabamos aceitando a maioria das outras.

Somos todas, em diferentes graus, transgressoras e conformistas.

Mas, se quisermos transgredir em qualquer coisa, teremos que remar contra a corrente.

Ser quem queremos ser é uma luta diária, um exercício sissifeano de remar contra a corrente durante toda nossa vida; de parar e descansar e ser arrastada para trás e então remar tudo de novo; de manter o olho cravado em nosso objetivo, seja ele qual for; de recusar todas as coações e cooptações e seduções que surgirem ao longo do trajeto; de articular sempre quem somos e quem desejamos ser — e, então, e essa é a parte mais difícil, é um exercício de efetivamente sermos essa pessoa.

Quem está remando contra a corrente precisa se autoafirmar: é necessário articularmos sempre o nosso objetivo — justamente para não nos desviarmos dele.

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Notas de leitura

O livro Teoria da classe ociosa (1899), do economista norte-americano Thorstein Veblen, sobre as dinâmicas sociais que fazem com que nos importemos tanto com a opinião das outras pessoas, foi uma das grandes inspirações para "as prisões" e é um dos meus livros favoritos de todos os tempos, uma análise perceptiva e subversiva, quase sempre dolorosamente engraçada, do mundo em que ainda vivemos até hoje. Em português, uma versão resumida pode ser encontrada na coleção “Os pensadores”, figurinha fácil em qualquer biblioteca.

Um trecho:

“Somente indivíduos de temperamento aberrante podem continuar mantendo sua autoestima diante da desaprovação de seus pares. Exceções aparentes a essa regra são as pessoas de fortes convicções religiosas. Mas essas exceções aparentes na verdade não são exceções, pois essas pessoas geralmente dependem da aprovação putativa de alguma testemunha sobrenatural dos seus atos.”

A frase “o inferno são os outros” é do personagem Joseph — que, irresistível mencionar, é um canalha carioca — na peça Entre quatro paredes (1944), de Jean-Paul Sartre, às vezes encenada no Brasil com o título original Huis clos. Não é, de modo algum, uma citação pessoal de Sartre. Joseph não estava sendo metafórico: a peça acontece no inferno, onde três pessoas estão presas em um quarto e são, literalmente, a tortura eterna umas das outras.

Quem disse que “egoísta é a pessoa que se importa mais com ela mesmo do que comigo” foi Ambrose Bierce, o escritor que melhor soube morrer, em seu delicioso Dicionário do Diabo (1906). Algumas seleções do dicionário (em português) ou a obra completa (em inglês). Um dia, se eu tiver coragem, morro como ele.

Quem ia de sala de aula em sala de aula perguntando quem eram as artistas era Gordon Mackenzie, citado por Tom Kelley no artigo: Everyone was an artist in kindergarden.

A pesquisa que diz que as pessoas brasileiras, em média, transam com doze pessoas ao longo da vida foi realizada pelo instituto Tendencias Digitales em 2010, sob encomenda do Grupo Diários America (GDA), do qual faz parte o jornal O Globo. A metodologia da pesquisa é toda furada, mas o número verdadeiro deve ser próximo.

A subseção “Desapegar de pessoas” é uma paráfrase resumida do texto de mesmo título, escrito por Claudia Regina e publicado no blog que mantemos juntos, menos.vc.

A metáfora de Bertolt Brecht sobre a violência do rio pode ser encontrada, com ligeira diferença, no poema “Sobre a violência(circa 1933-38), disponível no livro Poemas 1913-1956, publicado pela Editora 34.

A Prisão Os Outros originalmente incluiria um longo excursus sobre nossa obssessão por higiene corporal (incluindo aí a depilação) e sobre como ela é influenciada por nossa ainda maior obsessão pelo que os outros vão pensar de nós, de nosso cheiro, de nossos pêlos. Acabei não incluindo, pois seria um desvio do tema principal, mas não posso deixar de recomendar alguns dos livros que li sobre o assunto, para quem quiser se entranhar nessa espinhosa questão.

Em ordem decrescente de interesse:

 

 

As ilustrações desse texto são pinturas do artista norte-americano Franz Kline (1910-62).

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Três avisos importantes sobre meus textos

Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios. (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas e Ação de graças pelos privilégios recebidos);

Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);

E são sempre todos rigorosamente ficcionais. (Ou não: Alex Castro não existe, só o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)

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O encontro “As Prisões”

Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.

Agora, estou conduzindo o encontro "As Prisões" no Rio de Janeiro e em São Paulo. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.

O encontro "As Prisões" é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 17 horas.

O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.

Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.

Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.

Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso,veja aqui.

Os próximos textos da série As Prisões serão enviadas primeiro, com exclusividade, às pessoas assinantes do meu newsletter e, então, publicadas aqui no PapodeHomem. Confira as que já foram publicadas.

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publicado em 14 de Julho de 2015, 00:05
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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