Por que não fui para as ruas ontem

Nossa participação política aumentou, mas isso não quer dizer que entendemos melhor o que estamos fazendo

Enquanto escrevia ontem esse texto, escutava helicópteros, buzinas e foguetes. A manifestação foi grande em diversas cidades do Brasil. Talvez seja mais um dia histórico como foi 13 de junho de 2013.

Mas me pergunto: as pessoas são tão mais informadas do que eu para ter a capacidade de, com tanta certeza, ir para a rua vestindo uma camiseta do MoroBloco?

Acredito demais na força de grandes manifestações públicas.

Acho lindo ver a sociedade civil se relacionando com a política fora do período de eleições. Só acho que está faltando dedicação da nossa parte para investigar o que sabemos e o que não sabemos sobre nosso sistema político. Para entender contra ou a favor de que estamos nos manifestando.

Esse é um dos motivos pelos quais não fui às ruas ontem. Porque mesmo dedicando muitas horas de cada semana da minha vida estudando sobre a Política, confesso que ainda sei muito pouco. E acho uma responsabilidade muito grande me manifestar num dia como hoje sabendo pouco.

Tenho lido pessoas que admiro e acompanho (ativistas, jornalistas) e que, mais importante de tudo, dedicam suas vidas a decodificar tudo o que está acontecendo na política. Vejo que muitos estão se resguardando e deixando de se posicionar frente aos últimos acontecimentos políticos.

Da minha parte sinto que (talvez como eles), estou me segurando para não entrar nessa narrativa reducionista, dualista e fatalista. A narrativa é sedutora… envolve vilões, tem tramas novelescas e dignas de qualquer episódio de House of Cards. Mas é sobre o futuro do nosso país que estamos falando e talvez decidindo. Isso também me faz querer, ao invés de me manifestar, estudar mais e mais sobre a política. Essa narrativa unidimensional é outro motivo que me afastou das ruas ontem.

Fico pensando quantas pessoas sabem o que acontece e quem vai nos governar se de fato a Dilma sofrer um impeachment.

Fico pensando quantas pessoas entendem nosso sistema eleitoral e sabem que quando votam em um candidato não necessariamente estão apenas o elegendo mas também outros candidatos de seu partido.

Fico pensando quantas pessoas sabem o que foi a Operação Mãos Limpas e o que ela representou na Itália, que segundo consta inspira a nossa Operação Lava Jato.

Fico pensando quantas pessoas entendem o que faz parte das propostas de uma Reforma Política.

Fico pensando quantas pessoas sabem que o Brasil faz parte de 10% dos países que não permitem candidaturas avulsas (sem filiação a partido algum).

Busco me informar além da primeira página dos jornais ou dos artigos mais compartilhados. Tenho o cuidado de ler matérias em diferentes meios, os que se posicionam e os que não se posicionam. Vou atrás de quem é a pessoa por trás do texto. Leio a página do Congresso em Foco, da agência Pública. Acompanho de perto a mídia independente e fico feliz de que ela existe (aliás, sou doadora de uma dessas iniciativas, o Fluxo e aliás, aproveito para dizer acho que mais gente devia doar para o jornalismo investigativo). Mesmo assim ainda sinto que tem coisas que não sei e que são necessárias para entender a política de forma mais macro.

A cada curso ou encontro que vou (a Virada Política tem me ajudado a aprender mais e mais) vou desvendando um pedacinho dessa complexidade. Conversas com os "hackers da política" me ajudam muito. Entrar mais e mais nos meandros dos três poderes tem me ensinado enormemente, me ajudado a entender que um buraco na rua não é culpa da Dilma e que desenhar um projeto de lei ou uma política pública não são coisas tão simples assim.

Jogo da Política, projeto atual da vida, me joga na cara perguntas como "você sabe qual o orçamento da cidade de São Paulo e quanto se gasta com o pagamento da dívida pública?" ou "quem define os projetos de lei que serão votados na Câmara dos Vereadores e o que acontece com um projeto que não é aprovado?".

Pouca gente sabe (isso não saiu na grande mídia aqui no Brasil), mas nosso país caiu, entre 2014 e 2015, de 44º país mais democrático para 51º, de acordo com o Democracy Index, uma pesquisa realizada todos os anos pela Intelligence Unit do The Economist. Isso se deve principalmente ao índice que mede nossa Cultura Política. Acho isso muito temerário.

A queda nesse índice foi brusca: de uma nota 6,25 passamos para a nota 3,75. Essa queda me parece ainda mais perigosa quando observo que não só a Cultura Política do país piorou como a Participação aumentou. Ou seja, temos mais participação e menos cultura.

 

A nossa democracia é jovem — não vamos fortalecer a democracia se não tivermos cidadãos mais preparados para a discussão política que vai além dos fatos. Mas para isso precisamos ser propositivos, acreditar em alguma coisa que tem o poder de mudar as coisas e trabalhar para isso. Nos últimos tempos, tendo o privilégio de conhecer tanta gente maravilhosa que faz mais do que fala, consigo (sim, com um certo esforço) manter meu otimismo.

Por tudo isso meus pensamentos no dia de hoje vão para todas aquelas pessoas que conheço (tenho a sorte de ter muitas ao meu redor) e que dedicam suas vidas diárias para elucidar as questões da política e desenhar um país com uma cultura política da qual nos orgulhemos. Aqueles que escolhem uma causa e nela se aprofundam, entendem o ecossistema em volta dela, estudam sua complexidade e a partir daí não apenas se manifestam levantando uma bandeira mas têm propostas concretas.

Outro dia perguntei para um ativista quanto tempo tinha passado pesquisando sobre a bandeira do Voto Distrital antes de lançar uma campanha. Ele contou então que o grupo havia ficado pelo menos um ano só estudando e entendendo o funcionamento do sistema eleitoral para então lançarem um movimento. Um ano. Só estudando e decodificando o sistema.

Espero que quem foi às ruas ontem entenda que não se transforma pontualmente. Que esse ir às ruas os instigue a viver a política além do que é político-partidário.

Amanhã ainda teremos Eduardo Cunha na Presidência da Câmara, uma bancada evangélica decidindo nossas leis, dados que deveriam se tornar públicos mas que não são revelados, entre muitas outras coisas que desenham nosso cenário social e político além do Lava Jato. Desejo que as pessoas que se manifestaram ontem não sejam apenas "rebeldes sem causa" — posicionando-se apenas contra algo — mas também revolucionária — a favor de algo. Para dar um exemplo que deixa claro do que estou falando: ser pró-transparência já seria algo bastante construtivo. A Lei do Acesso à Informação já está aí para nos ajudar. A política precisa da gente todos os dias.

Termino aqui levantando a bandeira que me move e me motiva: a educação política.

Muito do que está acontecendo hoje é pela falta do entendimento da complexidade do que é a política. Sem uma educação cívica, política, democrática, acho difícil evoluirmos a democracia e sermos cidadãos com uma consciência política plena. Sempre penso no agora com um olhar para o futuro. Não é para menos que a frase que resolvi tatuar no meu corpo diz que "o futuro já está aqui, só não está bem distribuído ainda."

Ah, também não fui para as ruas porque estou nas ruas todos os dias (como bem me lembrou uma amiga para quem pedi que lesse o texto antes de publicá-lo).

Como disse a poeta Wislawa Szymborska, “somos filhos da época, e a época é política”. Sejamos políticos.


Nota da autora: obrigado a Caio Tendolini por me ajudar na edição desse texto.

Nota do editor: texto originalmente publicado ontem no Medium. Adaptado temporalmente para fazer sentido a republicação hoje.


publicado em 14 de Março de 2016, 10:34
File

Carla Mayumi

Ativista e pesquisadora de educação, sócia das empresas de pesquisa Box1824 e TalkInc., cocriadora do estudo "Sonho Brasileiro" e do "Sonho Brasileiro da Política".


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura