Por trás dos arrastões do Rio

Adolescentes não saem em disparada nas areias a roubar celulares usados só por necessidade

O Rio tá batendo quarenta graus. Vem chegando a onda paradisíaca de calor e turismo na Zona Sul e, junto, a temporada de arrastões correndo soltos nas praias e ruas ali da região. Galera relaxada, os olhos chegam a ver a areia derreter de tanto sol que as retinas refletem, atmosfera propícia pra surpresas.

A maioria dos assaltantes é menor de idade.

Não perguntei pra nenhum deles os seus porquês de tanto esforço para levar um celular ultrapassado. Não é fácil chegar à Zona Sul de ônibus ou trem: vá lá suas três horas atravessando o trânsito da Barra ou esperando o trem, fazendo baldeações pro metrô. Além disso, há o risco de ser apreendido ou linchado e também de sair de lá sem nada na mão. Ainda assim, eles vão.

Arrisco especular algumas das motivações que ouviríamos por aí e seriam repetidas por nós, nossos familiares, amigos, companheiros de ponto de ônibus: sensação de impunidade, falta de oportunidades, falha do sistema educacional, índole, oportunismo.

Cogito ainda a possibilidade de uma outra razão pra aventura que acaba por traumatizar tantas outras pessoas: a vontade de ocupar um lugar de destaque, o poder sugerido pelo ato que, dentro de devidos arranjos sociais, é de coragem. É um grito por atenção.

Pode ser também um meio de construção do sujeito: o fazer-se autor de uma ação importante. O tecer-se pelos seus próprios atos. Fazemos isso todo o tempo, afinal, quando decidimos agir de certos modos para que possamos nos definir assim ou assado por meio deles. Produzo mais do que é esperado de mim no trabalho porque quero ser definido como um profissional competente, já que isso é um valor no arranjo social que estou inserido.

E a onda traz também outros crimes. Junto dos arrastões, ressurgem os justiceiros.

Espero que não vejamos se repetir a cena do início de 2014, quando um assaltante foi amarrado a um poste e violentado por outras pessoas. Mas já há grupos se organizando para fazer justiça com as próprias mãos por lá.

Entendo o medo e a revolta que engaja alguns. Mas compreendo que são frutos de um meio no qual não enxergamos uns aos outros, assim como os próprios assaltantes e todos nós, que estamos nesse barco da conversa.

A cegueira tende a separar a cidade em dois pólos que insistem em não querer se reconhecer um no outro. Um lado sobrevive da projeção que faz de si sobre o seu oposto e da ilusão de superioridade que isso pode trazer. E vice-versa.

A polícia, no meio disso, não sabe bem como se posiciona. A arma não mão é ainda um outro estilo de poder com o qual precisam lidar. Novas decisões da justiça proíbem apreensão de menores exceto em casos de flagrante. Muitos dos praças que estão ali no momento do crime vivem ao lado de quem detém. E a instituição, pressionada por diversos vetores – clamores populares, leis e suas próprias vicissitudes – segue matando.

As polícias civil e militar do estado de São Paulo mataram, entre janeiro e agosto deste ano, 571 pessoas em abordagens. Esse número é pouco mais que 12x o número de latrocínios (roubo seguido de morte) que ocorreram em Salvador no mesmo período, 45. Na cidade de São Paulo, de janeiro a julho, foram 66 de latrocínio, 22% a menos que em 2014.

Mas no mesmo jornal que noticia números de mortes e arrastões constantes, a gente se depara com a notícia de que há três internos da Fundação Casa tão na final da Olimpíada de Matemática, um campeonato para estudantes do ensino básico que premia com mérito e bolsas de estudo aqueles que conseguem resolver os desafios propostos.

A conquista é resultado do trabalho de gente que se dispõe a se colocar no lugar daqueles menores que buscam afirmação como sujeitos dentro de seus arranjos sociais a qualquer custo e lhes propõe outro método de fazê-lo. Isso demanda empatia, compaixão e compreensão social de todos os lados. Precisa estar aberto quem acolhe e quem é acolhido.

Não é fácil e nem rápido. Não vai dar conta de solucionar a situação de quem está caminhando pelas praias do Rio nessas tardes. Mas é um caminho possível que já se mostra eficiente quando posto em prática.

Difícil apontar soluções imediatas, mas suponho que não presumir uma guerra de opostos já seja um começo.


publicado em 22 de Setembro de 2015, 16:49
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Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.


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