Por que fui para o interior do Amazonas

Mês passado fui para o Amazonas, passei por Manaus e fiquei alguns dias ancorado próximo a Maués, no interior do Estado, durante a Festa do Guaraná.

O que me fez sair de São Paulo, atravessar o país e me meter no interior? Não sei dizer ao certo. Claro que teve a oportunidade de ir conferir a tradicional Festa do Guaraná junto com jornalistas de todo o Brasil. Mas não era isso que me atraía. Não foi isso que me fez embarcar em um avião.

Costumo viajar com uma frequência até decente para quem não tem muitos recursos. Às vezes é por trabalho, outras por diversão e algumas raras vezes por conta de alguma obrigação qualquer. Mas nunca são esses os reais motivos que me fazem sair de casa, ir até um aeroporto longínquo e passar horas trancado numa coisa feita de toneladas de aço sobrevoando lugares que nem imagino como sejam. Não é que eu saiba os reais motivos, mas tenho algumas pistas. No caso dessa viagem, acho que descobri tudo.

Chegando no rio Solimões (os outros barcos faziam parte do nosso comboio).

Começa aqui em São Paulo. Acordo cedo e arrumo uma mala de mão que dure alguns dias, de quatro a cinco. Camisetas, jeans, cuecas e um kit de limpeza pessoal completo. Regra número um para viagens: só leve o que consiga carregar.

Nada de rodinhas. Bagagem é para se carregar, como homens muito maiores que nós fizeram em tempos idos e continuam fazendo. Nada mais ridículo em um aeroporto do que homens crescidos, trajando ternos sob medida, concentrados nos importantes e-mails em seus Blackberrys e puxando uma malinha quadradinha com rodinhas. Não tem desculpa. Já fiz viagens longas para o exterior carregando minhas malas. Rodinhas: não.

Enquanto esperava os idiotas que gostam de ficar fazendo fila no embarque entrarem no avião, comecei a pensar no que diabos eu estava fazendo. Ia atravessar o país e me meter no interior de um estado que conheço pouco. Não sabia como ia chegar e nem o que faria lá. Por alguns momentos cheguei a considerar a hipótese de desistir da coisa toda, parecia não haver uma razão decente para continuar.

Percebi que a falta de razão era o suficiente. A vida é entediante e longa demais para não tentar. Engoli a apreensão adolescente que se apoderava de mim e entrei no avião. Após alguns comprimidos de Dramin, dormi as quase cinco horas de viagem.

Nosso barco (esquerda) e outro da Ambev, ancorados próximo a Maués.

Queima de fogos em Maués.

Quando o portão de desembarque se abre no aeroporto de Manaus, a primeira coisa que se sente é um calor opressor misturado com a alta umidade. Era noite, quase onze horas, mas estava quente como se houvesse fileiras e fileiras de fornos ligados e abertos na rua expelindo massas calorentas para o alto. É quase inacreditável o calor que faz nessa região. Até mesmo para mim, que cresci no interior do Pará e me considero acostumado a lidar com climas insanos.

Por quase meia hora só me preocupei com o calor. Ficava me perguntando como aguentei praticamente a minha vida inteira um clima similar. Resolvi desencanar, suar, ficar limpando a testa a todo o momento e carregar uma garrafa de água e uma toalha para onde quer que fosse.

Regra número dois para viagens: adapte-se silenciosamente e sem medo. Nada de ficar reclamando de hora em hora, de cara feia, de cinismo. Aceite a região do mundo onde estás. Se faz frio congelante ou calor capaz de derreter peças de roupa, lide com isso. Adaptar é muito importante. É aceitar que não há muito que se fazer – o quê? ficar trancado em ambientes refrigerados, banhar-se de protetor solar, repelente e andar com um ventiladorzinho? quantos anos tu tens? doze? – e procurar maneiras de continuar.

Vista de Maués do nosso barco.

Enquanto olhava a vista do hotel, que dava para um enorme Rio Negro, percebi que havia algo errado. Dava para ver uma pequena ilha verde no centro do leito do rio. Um rio gigantesco, que em alguns momentos é capaz de emular a vastidão de um mar, parecia estar seco bem no meio. Comecei a perguntar e logo soube que a região está passando pela pior seca já registrada na história. Seca tão grande que pessoas começavam a andar no leito desses rios só porque, bem, conseguiam.

Uma seca que fez canais fundos e cobertos por densa vegetação nas laterais virarem uma espécie de cenário apocalíptico. O barco que me levaria até Maués chegou por esse rio. Ancorou a quase um quilômetro da beira. Só um bote conseguia passar pelos trinta centímetros de profundidade das margens e te levar até o barco, mais lá pro meio do rio. Era como estar em um filme. Era uma sensação inacreditável. Uma melancolia parecia tomar conta do enorme rio. O pouco de água que havia era suficiente para barcos navegarem, mas com muito cuidado.

O trajeto até Maués durou por volta de quinze horas. Como saímos no começo da noite, me programei para pegar o nascer do Sol no dia seguinte. Acordei antes do despertador tocar e fui para o terceiro andar do barco, uma embarcação de de luxo para água doce, com umas duas dezenas de camarotes com banheiros, cozinheiro próprio e jacuzzi no topo, e fiquei ali esperando a escuridão desaparecer.

Quando o Sol nasceu, já estávamos sobre o rio Solimões. Ficamos nele por um pequeno período e depois desembocamos no Maués-açu, o rio que nos levaria até Maués. Comparado ao Rio Negro, o Solimões parecia estar completamente cheio: a água chegava até as margens e não se via as ilhas verdes em seu leito. Mas com um pouco de atenção dava para ver que o estrago tinha chegado ali também: a água batia nas margens, mas lá embaixo. Uma margem que media dois ou três metros de altura a partir da água, agora tinha dez ou até quinze metros.

Mesmo com o rio seco, o Sol consegue ser inacreditável.

Maués é uma cidadezinha típica do interior da região. O guaraná movimenta tanto financeiramente quanto culturalmente a região e em Maués concentram-se grandes e médios produtores, assim como fábricas e fazendas da Ambev, que produz o clássico Guaraná Antarctica.

A Festa do Guaraná ocorre todo ano no auge da colheita, quando os produtores já conseguem projetar como vai ser a safra do ano e dizer se, afinal de contas, aquele foi um bom ano ou não. São três dias de festa, nos quais grupos de dança e teatro da cidade encenam longas peças sobre a lenda do guaraná. As peças são maçantes, como é de se esperar da produção histórica de cidade do interior.

Mas como dançam os atores. Nossa. Soube com o fotógrafo que nos acompanhava que a personagem principal da peça é interpretada pela mesma mulher há anos. Essa mulher dança e interpreta como se não houvesse amanhã. Se assisti aos longos ciclos de danças das peças foi por causa dela. Era algo que destoava de todos, seus movimentos apresentavam uma firmeza e leveza que parece impossível de se atingir quando se dança. No rosto dela, por baixo de uma camada grossa de maquiagem, dava para ver o leve ranger de dentes que ela fazia. Poucas mulheres dançam como ela, posso afirmar.

A mulher que dançava como nenhuma outra mulher já dançou (segurando a criança).

A mulher que dançava como nenhuma outra mulher já dançou.

A festa em si sofre de uma esquizofrenia característica dessas comemorações: bandas locais tocam covers estranhos, depois entra um DJ que consegue ir de forró a psy em uma troca de faixa e aí vem uma banda local tradicional que entoa cantos antigos em cima de uma batucada insana, uma banda de rock sobe no palco e faz mais covers, seguida de uma banda de forró. Tudo natural e misturado.

Como a festa é montada na beira do rio, fica-se o tempo todo pisando na areia e alternando a vista entre os palcos e a escuridão do rio atrás de nós.

No segundo dia de festa eu já nem queria mais ver shows ou andar por lá. Resolvi ficar no barco e, de longe, apenas escutar as bandas tocando. Como o barco estava abastecido com cervejas e refrigerantes, adotei um pequeno cooler e levei para o lado da jacuzzi. Apenas o céu amazônico acima e ao meu redor. A música podia ser ruim, mas o momento era bom.

Foi por isso que fiz essa viagem, para me encontrar no meio da maior selva do mundo dentro de um barco tomando cerveja na jacuzzi durante a maior seca que a região já sofreu. Um momento que não deve ter durado nem uma hora. Mas que até hoje, escrevendo este texto, consigo relembrar nos menores detalhes e sensações.

Cenário em que contemplei toda a minha insignificância perante o universo.

Quando tu te encontras sozinho no meio de algo vasto, não há muitas opções a não ser aproveitar e meditar conforme o que se sente. E assim o fiz.


publicado em 29 de Dezembro de 2010, 09:10
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Renmero R.

Renmero R. é artista marcial acidental e também pode ser encontrado ocasionalmente em http://renme.ro.


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