Por que assistir ao documentário "O começo da vida"?

Estreia hoje, com entrada gratuita, em 24 salas de cinema pelo Brasil um documentário necessário sobre a relação de pais, mães, educadores, escolas e da sociedade em geral com nossas crianças

Já faz tempo, mas eu não esqueço. Eu, que sou professora de educação infantil, tinha um aluno com alguma dificuldade de se relacionar, de conversar, até de se comunicar. Numa reunião, sugeri para o pai que ele brincasse mais com o filho. Todos os dias, um pouco: um jogo, uma música, um toque, um colo, uma conversa, o que fosse. Entre assustado e um pouco indignado, o pai me disse: "Mas eu brinco com ele todos os dias! Eu sempre compro aquelas revistinhas que têm joguinhos. E ele sempre rabisca tudo!".

A criança sobre a qual a gente falava tinha três anos de idade. Mal tinha completado mil dias de existência na Terra e precisava de tanta coisa mais simples e acessíveis do que um jogo da velha num gibi… Esta é só uma das respostas para a pergunta do título deste texto: a gente precisa assistir ao filme O começo da vida, principalmente, porque a gente não sabe nada do que acontece quando a vida começa.

Link Youtube - Trailer

Não estou desmerecendo este pai. Estou falando que a gente não sabe nada. E, quando digo "a gente", digo isso dos pais, sim, coitados, que aprendem isso na marra. Falo das escolas, que têm tantos números em mente antes de olhar para as pessoas; das professoras, perdidas entre expectativas e realidades; dos pesquisadores, isolados em seus centros universitários; dos neurocientistas, que tantas vezes olham para a vida como se ela fosse restrita a conjuntos de neurônios, células, átomos…

Voltando àquela história ali do começo, aquele pai não era uma pessoa desamparada, analfabeta, com sérias disfunções, com inúmeros problemas ou que não sabia viver em sociedade. Estou falando de um perfil de pai que trabalha muitas horas por dia, que é estudado, que ganha um salário provavelmente bom para colocar seu filho numa escola cara, que chega em casa antes das sete para dar o jantar, que passa na banca de jornal e compra um gibi para ver o filho acertar. Digo tudo isso para explicar que falo de um pai que representa uma parcela da nossa sociedade que tem acesso à informação. Um pai e uma sociedade que não sabem nada.

O filme vai buscar realidades muito distintas para encontrar o mesmo problema.

O maior ganho que a gente tem com uma empresa como a Maria Farinha Filmes produzindo filmes lindos (Criança, a alma do negócio, Muito além do peso, Território do Brincar, Tarja Branca) é que a gente agora pode falar com boa parte das pessoas sobre coisas que não eram ditas antes. Temos exemplos, perguntas, respostas e um meio para as pessoas saírem do cinema com um mar de questões sobre a infância.

Numa sociedade que preza tanto pelo sucesso, olhar para as crianças é um fracasso. Nada mais fracassado do que trocar fraldas, olhar brincadeiras, atentar para a resolução de brigas estapafúrdias, evitar acidentes, zelar por joaninhas, cuidar de bebês e, simplesmente, amar. Na sociedade do sucesso, quem fica em casa, fracassa. Quem precisa lidar com o erro, oferecer seu amor, ensinar a olhar, a perder e a tentar de novo é tido como um perdedor. Uma perdedora, para ser assim mais exata, já que estas funções todas estão historicamente muito bem colocadas nas costas das mulheres.

"O planeta não precisa de mais pessoas bem sucedidas. O planeta precisa desesperadamente de mais pacificadores, curadores, restauradores, contadores de histórias e amantes de todos os tipos."

Em tempos que nos dizemos tão racionais, que alívio ver na tela uma vida pulsante, olhar de perto este crescimento incontrolável desafiando quaisquer regras matemáticas, lógicas e exatas inventadas e ainda nem imaginadas. Que prazer olhar para alguns detalhes cotidianos dos primeiros mil dias destas crianças.

Para quem não gosta de enrolação, este é um filme muito bom: cheio de dados sérios pra entender o que realmente importa. Uma boa amostra de outras culturas e realidades, com muita gente diferente dizendo a mesma coisa. Para quem adora um filme fofo, que deleite tantos exemplos reais! Uma obra-prima muito bem executada pela diretora Estela Renner, sempre muito cuidadosa e precisa (não perca os filmes anteriores dela).

Uma criança descobrindo o mundo é uma das coisas mais belas que existem.

Por que assistir ao filme?

Se você é mãe, vai ver seu papel representado daquele jeito todo que já sabe: necessário, visceral, cheio de contradições. Vai ver ali na tela seus dramas, medos e todas as pressões que te consomem. Se você é pai, vai olhar a construção do amor que nasce junto com seu bebê: que bom saber que você tem um lugar precioso. Se você é pai e mãe, se na sua família só tem pais (ou só tem mães) você vai adorar ver um monte de especialistas comentando que o amor nasce dentro da gente, que o vínculo diário é a maior importância desta história toda e que o cultivo deste amor basta.

Se você é professor, educador, se você lida com crianças diariamente, se é com eles que você passa grande parte dos seus dias: você vai lembrar que seu trabalho diário vai além do que pregam os currículos das escolas, o referencial nacional, seus chefes diretos, as novas modas na área da educação e aquelas coisas todas tão ultrapassadas. Você vai lembrar que a essência do seu trabalho é a relação construída com seus alunos, com seus tutorados, sobrinhos, afilhados, com aqueles com quem você redescobre o tempo e para quem você generosamente oferece sua presença (que privilégio!).

Se você representa uma instituição, se você coordena uma escola, é diretor, supervisor, orientador: espero que este filme amplie sua visão, te mostre como aqueles que te cercam são, sempre, muito mais do que números. Quero, muito, que seus olhos esqueçam um pouco as planilhas, desejo que você veja as potencialidades que uma vida bem cuidada têm a oferecer não só para você. Para a humanidade.

Se você não tem filhos, não tem sobrinhos, não é professor, não dirige uma escola: este filme é exatamente seu. Porque conta nas linhas e nas entrelinhas que o começo da vida precisa ser aceito na sociedade para a gente começar a aliviar mães, pais, cuidadores, instituições e crianças. A gente precisa começar a olhar para os filhos dos outros para melhorar o nosso futuro e começar a aceitar as crianças, seus dias longos e todo estes cuidados necessários dentro dos nossos padrões malucos de sociedade.

Isso tudo é tão bonito. Por que não aproveitar mais?

Estreia hoje

Hoje, dia 5 de maio, O começo da vida estreia em 24 salas de cinema no Brasil. E de hoje até o dia 8 de maio, a entrada para ver o filme é gratuita. Imperdível. Se você não tem acesso a uma sala de cinema aí perto, você pode baixar o filme na plataforma VideoCamp e ainda oferecer uma exibição seguida de debate abrindo as portas da sua casa. Dá uma olhada. A gente recomenda.


publicado em 05 de Maio de 2016, 15:13
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Isabella Ianelli

Pedagoga interessada em arte e educação. Escreve no blog Isabellices e responde por @isabellaianelli no Twitter.


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