Por que as pessoas ainda bebem e dirigem?

Me lembro perfeitamente do meu aniversário de 18 anos. Na cabeça do adolescente de classe média que fui, aquele era o dia em que finalmente eu poderia tirar minha carta de motorista, aposentar meu RG falso e tomar um porre sem me preocupar com o segurança da balada.

Hoje percebo o quão assustadora é essa combinação de expectativas. Os estímulos à ingestão de álcool ao qual somos submetidos, isoladamente, já merecem atenção. Mas quando eles acompanham quase que automaticamente a avidez por automóveis, as consequências se mostram ainda mais desastrosas.

Somos regidos pelo consumo. A gente aprende desde muito cedo que devemos não só acumular poder, mas exibi-lo. E no contexto em que vivemos, o poder se representa principalmente nos bens materiais. Em roupas, brinquedos e, mais tarde, nos carros.

Justin Bieber e seu carrão espelhado
Justin Bieber e seu carrão espelhado

Buscamos também, desde muito jovens, uma liberdade com a qual não sabemos lidar. Sonhamos com a possibilidade de ir e voltar dos lugares que quisermos, na hora que bem entendermos, simplesmente “porque podemos”. Queremos deixar de ser questionados e de responder aos outros, como se isso nos fizesse livres.

E em meio a isso tudo, somos muito pouco incentivados a olhar para o lado, a nos preocupar com o outro, a pensar coletivamente. Crescemos egoístas e limitados.

Alguns anos depois, decidi produzir -- com três grandes amigos -- um documentário sobre as causas e os efeitos da embriaguez no trânsito. Era uma época de grande atenção da mídia em relação ao assunto. Acidentes trágicos eram pauta recorrente em telejornais, revistas e rodas de conversa, e a chamada "Lei Seca" era a discussão da vez no país.

Passei a conviver diariamente com a realidade de famílias vitimadas por essas tragédias, com suas dores e revoltas. Logo eu, que frequentemente dirigia alcoolizado e acordava no dia seguinte sem lembrar como tinha voltado para casa, mas afirmava com a maior arrogância do mundo que estava apto a guiar o carro.

Era muito fácil falar. Nunca perdi ninguém dessa forma. Sempre vi meu pai dirigir após algumas doses de uísque nos jantares de família, ou muitas latas de cerveja nos churrascos com os amigos. Minha turma nunca deu muita importância para os perigos dessa prática. E nenhum hábito vai embora de vez, sem esforço. Muito menos sem exemplos.

Olhar nos olhos daquelas pessoas, ouvir seus desabafos e testemunhar sua força para transformar o luto em ações foi um tapa na minha cara. Tive que segurar o choro durante algumas entrevistas. Não só pela tristeza dos depoimentos, mas por perceber intimamente que eu ajudava a manter um costume que, além de imbecil, é fatal.

Nunca mais consegui pegar no volante após ingerir qualquer gota de bebida alcoólica.

A questão do álcool no Brasil é um problema de saúde pública. Trata-se da segunda maior causa de morte entre os jovens do país. Ocupamos a 5ª posição mundial em recordes de ocorrências no trânsito e, por ano, o SUS gasta cerca de 8 bilhões de reais com as vítimas desses casos (todos os dados foram obtidos quando fizemos o documentário, por meio do Mauricio Januzzi da OAB, de relatórios do Ministério Publico e de pesquisas acadêmicas que estudaram o tema). Mais que números chocantes, são pessoas que perdem suas vidas por causa de um costume ignorante.

Confesso que é frustrante ver que muito pouco mudou nesses quase três anos que se passaram desde então. O texto precário da lei foi revisto de forma muito tímida e, na prática, ela continua se mostrando ineficaz.

Link YouTube | A lembrança da última noite...

Link YouTube | ... pode ser bem diferente do que aconteceu na realidade

Apesar de a Justiça aceitar, desde dezembro de 2012, outras provas além do exame do bafômetro para configurar embriaguez, o limite de alcoolemia (presença de álcool no sangue) ainda não foi alterado para a “taxa zero”, como propunham o Ministério Público e movimentos como o Não Foi Acidente e o Viva Vitão.

Idealizados por pessoas que perderam familiares e amigos em tragédias do tipo, essas associações lutam para acabar com as brechas legais que permitem que motoristas irresponsáveis respondam apenas administrativamente por crimes bem mais sérios, que deveriam ser julgados no âmbito penal.

A fiscalização ainda é feita de modo quase inexpressivo, sem planejamento. Existem inúmeras formas de burlar as famosas blitz policiais, por meio de aplicativos e sites na internet, nos quais os próprios motoristas informam, em tempo real, os locais onde as patrulhas ocorrem. É o despreparo do poder público sendo perpetuado pela inconsequência do cidadão.

Escuto muita gente que conheço contar, frequentemente, que foi pega bêbada em operações policiais e não teve nem a carteira apreendida. Gente que, no final de semana seguinte, sai de novo com o carro pra beber.

As campanhas de reeducação -- tanto de iniciativa pública como privada -- têm se mostrado falhas e episódicas. O tema é muito pouco abordado nas escolas. Os mocinhos das novelas ainda vão embora dos bares com seus carros potentes. E o transporte público, que deveria ser uma das pautas sociais mais importantes, ainda não é prioridade nas agendas políticas.

Esses fatores, unidos, são os grandes responsáveis por raciocínios do tipo “ah, mas vou beber pouco”, “se eu perceber que não tem jeito mesmo, pego um táxi”, ou então “nunca aconteceu nada, dirijo até melhor quanto estou bêbado”. Ninguém deveria cogitar se expor a esse perigo. Mais que isso: ninguém deveria cogitar expor os outros a esse perigo.

Mas o mais triste é ver as pessoas deixando a discussão de lado e ligando muito pouco para o que ela representa. Ouço constantemente que a causa é nobre, que agir assim é errado, mas que “não rola ir sem carro”.

Acontece que, sem mudança de atitude, essa situação não vai melhorar nunca. Afinal, mudar a cultura de um povo só é possível por meio de um conjunto de esforços mútuos que pedem, inevitavelmente, que repensemos e refaçamos nossos comportamentos.

Eu poderia terminar esse texto de inúmeras formas, mas faço questão de concluí-lo dividindo o que aprendi com meus entrevistados, envolvidos de corpo e alma no projeto de transformar o trânsito em um ambiente mais seguro.

Link YouTube | O documentário feito, "Direção Incerta: uma discussão sobre embriaguez no trânsito" Vale muito a pena ver a discussão formada, os depoimentos e bons apontamentos de solução para a profunda mudança de cultura na questão do álcool e direção 

O Manuel Fernandes, tio e cunhado de duas vítimas, diz no documentário que “a ferida tem que estar sempre aberta, porque quando a gente não esquece, evita que as pessoas façam de novo”. O pessoal do Viva Vitão, movimento liderado por amigos do Vitor Gurman (atropelado por uma motorista embriagada), tem como lema “não espere perder um amigo pra mudar sua atitude”.

Mas o Rafael Baltresca, fundador do Não Foi Acidente (que encontrou forças pra lutar pela causa, mesmo com a vida dilacerada pela combinação de álcool e trânsito), falou uma das coisas mais sensatas em meio a toda essa insensatez: “é fácil entender e sentir quando acontece com a gente, e bem complicado quando acontece longe. Mas é muito melhor mudar pelo amor do que mudar pela dor”.

Eu escolhi o amor.

E você, vai escolher qual dos dois?


publicado em 04 de Abril de 2014, 07:00
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Felipe Elias

Jornalista e produtor. Nasceu no interior, cresceu no litoral e hoje vive em São Paulo. Sempre em busca de respostas, mas viciado em perguntas. Não sabe fugir de discussões - nem com os outros nem consigo mesmo. Sofre por antecipação, puxa conversa no ônibus e gosta de novela. Mas, principalmente, não perde a esperança no mundo e nas pessoas.


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