Porque a filosofia "No Pain No Gain" atrapalha mais do que ajuda

A filosofia de treinos extremos pode afastar algumas pessoas das atividades físicas

Antes de qualquer coisa, preciso dizer que eu reconheço minha culpa. Por muito tempo acreditei nisso e perpetuei esse tipo de engano. Não tenho orgulho e, mais ainda, me arrependo demais de – em algum ponto – ter disseminado tal ideia que hoje considero tão prejudicial.

Minhas honestas desculpas.

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Não precisamos ir longe para reconhecer um novo padrão. Qualquer academia que ofereça musculação pode confirmar uma tendência crescente. Homens e mulheres com físicos cada vez mais impressionantes, treinando de forma cada vez mais intensa. A distância que separa o treinamento de atletas profissionais e entusiastas amadores está cada vez menor.

De antemão, deixo claro que acredito que todo tipo de disciplina e dedicação, mesmo que extrema, é benéfica quando serve um propósito claro e em caso de real necessidade desse tipo de esforço. Eu, pessoalmente, não consigo trabalhar na linha do meio, só ajo efetivamente quando me exponho a extremos.

No entanto, compreendo isso como um traço muito pessoal, que de forma alguma se aplica a qualquer pessoa. Tal pressão só pode ser considerada positiva se acontecer sozinha, cada um comprometido com os próprios objetivos e princípios, sem que isso signifique esmagar o bem estar dos que se aventuram pela primeira vez em um novo ambiente.

As frases modernas de motivação para marombeiros de plantão caminham na linha "Go Hard or Go Home", "No Pain, No Gain", "Shut up and train"; frases agressivas, que criam uma aura de seriedade e dedicação para quem pratica a atividade. Até antigos termos foram revisados, já que agora não é mais permitido dizer que "malha", ir à academia levantar pesos repetidas vezes passou a ser é categorizado como "treino".

Eu entendo a importância de trazer seriedade ao ato, mas desenvolvo meu raciocínio reforçando um ponto: nem tudo na vida é simples como parece. Dizer que "não malha, treina" pode soar bonito, mas é uma sofisticação grosseira de algo que na maioria das vezes não corresponde à realidade.

Se você é um atleta, fisiculturista ou apenas dedicado entusiasta, praticando com conhecimento e disciplina, buscando desenvolver habilidades, com metas e objetivos claros, é compreensível que você diga que está num treinamento. Infelizmente, forçar a cultura do "estou num treinamento" para quem não tem interesse em tanta seriedade, cria um peso desnecessário.

O fato é que a maioria das pessoas que frequentam uma academia não fazem nada além de malhar, no sentido claro do português informal, praticar uma atividade física para fortalecer os músculos. Não possuem um plano de progresso, um modelo alimentar ou mesmo motivos para seguir um.

Para o público geral, se pudessem pular este passo e apenas conseguir os ganhos, seria mais que perfeito, e não existe nada de errado nisso. Não existe nenhuma cláusula que obrigue uma pessoa a gostar de frequentar uma academia, muito menos tolerar dor e desconforto para obter os melhores resultados dos treinamentos de alto nível. Expor quem apenas espera uma melhora na qualidade de vida aos extremos do treinamento é, no mínimo, cruel.

Toda essa linha de agressividade cria uma dicotomia clara, uma divisão entre os praticantes super sérios que vivem para treinar e carregam marmitas na mochila para 9 refeições ao dia, e as pessoas que não estão dispostas a fazer isso e, aparentemente, não são dignas de usufruir dos resultados. Mais ainda, essa divisão marginaliza – obviamente dentro do ambiente – qualquer pessoa que não se mostre inclinada a imergir no estilo de vida. Qualquer um que frequente uma academia pode citar os apelidos ofensivos que chamam as pessoas que não se dedicam tanto quanto eles.

Se você nunca pisou numa academia, está acima do peso e apenas quer praticar uma atividade física para não morrer antes dos 50 anos, corre o risco de ser convencido que o único caminho é treinar com o máximo de intensidade. Dor extrema durante execução passou de algo específico para quem busca aumentar o desempenho, para pré-requisito básico de qualquer um que queira praticar exercícios.

Compreendo que os estudos mais recentes demonstrem que treinamento de alta intensidade são o que existe de mais eficiente para perda de peso e alguns outros objetivos. Mas, infelizmente, esses estudos não relevam um ponto básico: o fator psicológico de quem é submetido ao treinamento.

Na vida real, longe dos laboratórios e experimentos, pouco importa se um protocolo de treinamento proporciona resultados melhores em metade do tempo, quando o procedimento é tão doloroso e repulsivo que muda o foco do treinamento, a pessoa, não consegue se manter no programa pelo tempo necessário.

É muito mais apropriado um método que valorize a consistência do treino a longo prazo, proporcionando resultados menores por mais tempo, com maior garantia de que o praticante não desista, do que simplesmente focar em resultados rápidos sem considerar as impressões de quem é submetido ao processo. Muitas vezes, a falha está em observar quem está ou não apto a tolerar determinados protocolos

Pelo meu envolvimento tão próximo com o mundo das atividades físicas, frequentemente recebo reclamações de conhecidos sobre a dificuldade de simplesmente frequentar uma academia para manutenção da saúde. Conheço pessoas que sofrem crise de ansiedade sempre que pensam em sair para se exercitar, por medo das cobranças excessivas e do ambiente hostil.

A motivação para escrever esse texto surgiu de uma conversa com um amigo, que entendeu a necessidade de se exercitar e foi buscar uma academia. O amigo em questão voltou dizendo que passou 5 minutos perguntando os preços, mas decidiu que não voltaria lá, mesmo descobrindo que era mais barato do que o esperado.

O que podemos observar com a maioria dos casos de desistência é a constante crítica ao modelo extremista e ao ambiente sufocante de competição e julgamento.

É difícil para quem está treinando há anos, possui objetivos ambiciosos e investe grande parte da sua vida na conquista de uma meta, aceitar que outras pessoas participam do seu ambiente com vontades e interesses menores ou completamente diferentes. Para eles, soa como uma ofensa alguém não seguir sua rígida doutrina. Reconheço, me encaixo claramente neste cenário, demorei anos para entender e aceitar o outro lado.

Entre meus amigos de treino mais próximos, comer arroz branco no meio de semana é um dos pecados mais graves que se pode cometer. Para o outro grupo, os sedentários, não comer arroz com feijão no almoço não chega nem a ser uma opção, de tão bizarro que soa. Com um formato dividido por extremos, academias se tornam cada vez mais restritivas, e pessoas que de fato deveriam praticar exercícios são deixadas de lado, enfrentando uma forte barreira de entrada.

Falo diretamente sobre musculação, mas observo há anos o mesmo acontecendo nas artes marciais e outras atividades. Não existe mais a opção de ser casual, de fazer algo pela saúde e aproveitamento da experiência; ou você pratica para ser o melhor, ou é melhor nem tentar. A aura de competição extrema está presente em quase tudo, nos mais variados cenários.

Por muito tempo acreditei que os métodos de treino estavam mais avançados e os resultados cada vez melhores. No entanto, hoje vejo que algo diferente acontece, uma seleção artificial de praticantes, com uma barreira de adesão cada vez mais rígida, onde as pessoas que não se enquadram nestes padrões acabam sendo expelidas para fora do jogo.

Por fim, vivemos no período histórico onde mais sofremos cobranças sociais, onde tudo exige um forte peso e comprometimento. Saímos cansados do trabalho, onde somos frequente alvo de críticas, questionamentos e cobranças. Uma grande parte também frequenta escola ou faculdade, onde a exigência por excelência não costuma ser menor. E agora, quando buscamos uma atividade para estimular o corpo e botar a mente no lugar, nos deparamos com cobranças ainda mais excessivas e doutrinas que muitas vezes não dialogam com nossos interesses.

Dentro desse cenário, não me admira que os problemas envolvendo obesidade e sedentarismo aumentem na mesma medida que a repulsa das pessoas por exercícios físicos.

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Nota do autor: curiosamente, a quantidade de pessoas que praticam atividades físicas também cresce, formando essa divisão clara onde existe apenas as opções dedicação completa ou total desprezo.


publicado em 20 de Abril de 2015, 00:05
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Alberto Brandão

É analista de sistemas, estudante de física e escritor colunista do Papo de Homem. Escreve sobre tudo o que acha interessante no Mnenyie, e também produz uma newsletter semanal, a Caos (Con)textual, com textos exclusivos e curadoria de conteúdo. Ficaria honrado em ser seu amigo no Facebook e conversar com você por email.


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