Picolé de limão e a desconfiança constante dos homens

Entre amarga realidade de "a mulher que não tem um segundo de paz" e o "pô agora tudo é culpa dos homens", existem muitas histórias e conversas necessárias. Não é sobre criticar cegamente os homens, é sobre entender de onde parte a crise da confiança. Só assim é possível construir uma realidade diferente.

A história de hoje começa assim: 

Um casal, já casado, tem uma filha. Aos finais de semana o pai tem compromissos esportivos com seu time local e a princípio isso não era problema, tudo andava bem. A filha já contava seis anos quando a mãe, por ocasião de uma visita da irmã que morava fora, pediu que o pai cancelasse os compromissos esportivos para cuidar da menina durante um final de semana. Um pouco a contragosto o homem aceitou a missão: em um sábado, ficaria com a filha e faria um picnic com ela numa reserva natural. 

Ao fim do dia o pai chega em casa sem a filha. Ele tirou um cochilo no picnic e a criança se perdeu no mato, os bombeiros foram acionados e, na manhã do dia seguinte, localizaram a criança.


Existe uma crise de confiança em relação aos homens e todos sentimos isso. 

Particularmente ninguém gosta disso, nem lucra com isso. É desgastante para as mulheres e mães que sentem que nunca podem confiar plenamente, por que se o fizerem, algo tão terrível como perder sua filha numa reserva florestal pode acontecer. Os homens também detestam essa crise porque “agora tudo é culpa do homem”. 

A imagem não está boa pro time dos meninos. Quando falamos sobre transformar as masculinidades, não é sobre recuperar a reputação masculina e sim para frear todos os efeitos que essa crise gera de ruim para as mulheres, crianças e também para os próprios homens.

Se existe interesse em recuperar algum tipo de confiança é essencial ter um olhar franco sobre os episódios da vida privada que justificam e reforçam as críticas.

Ai que entra o Picolé de Limão

Picolé de limão: um retrato ácido de cotidianos

Picolé de limão não é uma metáfora muito misteriosa. É o nome de um dos quadros do podcast “Não Inviabilize”, comandado por Déia Freitas. As pessoas escrevem contando suas histórias da vida real e Déia narra para o público, trocando nomes, mantendo anonimato.

Picolé de limão é o quadro das histórias ácidas; Amor nas redes, das românticas; Pimenta no dos outros, das sensuais.


 

Eu vou fazer uma conta muito rápida: das 50 últimas histórias publicadas, 40 eram picolés de limão.

O quadro tem sido um fenômeno e vem ganhando popularidade. Um dos pontos altos do podcast é a narração de Déia, que antes de preparar a contação, entrevistas as pessoas e traz para o roteiro algumas averiguações e outros detalhes muito vivos.

O podcast dá voz a vida de brasileiros de cidades pequenas, nos subúrbios, com boletos vencidos, em ônibus lotados, quartos conjugados, nome no Serasa e problemas de encanamento. É possível enxergar o chão de caquinhos em um quintal, só ouvindo a histórias.  

Bato nesse ponto pra dizer que sim, são relatos a partir do ponto de vista de apenas uma das partes, mas não são ficções, são realidades com contrapontos e nuances e que também carregam ponderações da apresentadora que questiona, quando deve, aquele que conta o causo. 

O que isso tem a ver com a crise de confiança nos homens?

Eu vou estragar algumas das histórias — além do pai que dormiu ao passar o dia com a filha, permitindo que ela se perdesse na reserva florestal — para fazer essa análise:

Uma moça conheceu um rapaz no aplicativo durante a pandemia, com uma filha recém nascida, o homem contou que perdeu a esposa para a COVID-19. Um namoro começa rapidamente, ele divide o cuidado da criança com a  nova parceira. Um mês depois, bate á porta uma outra mulher, a mãe da criança — que nunca esteve morta. A esposa do "viúvo" seguia casada e ficou três meses isolada do marido e da filha porque trabalhava na linha de frente  da COVID e não queria infectá-los.

Outro rapaz vai passar o mês na praia com a namorada. Todo fim da tarde ele diz que precisa subir a serra para cuidar da mãe adoentada. Ele volta no dia seguinte, ali pelo fim da manhã. Um dia andando pela praia, enquanto esperava o namorado chegar, ela o encontra sentado em outro quiosque, rodeado por uma família. Mais especificamente, a esposa e as duas filhas que ele nunca mencionou ter. Ao invés de cuidar da suporta mãe senil, ele voltava para o apartamento de veraneio da família oficial, com quem ele passava as noites e as manhãs.

Num outro cenário, um casal tem um filho com uma doença rara. O salário dos dois somados era pouco. O marido dizia ganhar pouco mais de um salário mínimo. Com esforço, a mãe espremia um orçamento para bancar um convênio particular e tratar o filho. Tudo muda quando esta mãe descobre notas fiscais que indicavam que a inocente coleção de carrinhos em miniatura exposta na cristaleira da sala custava milhares de reais. O marido  mentia o próprio salário para não contribuir tanto com a casa e com o convênio do filho, assim lhe sobrava uma reserva para investir na coleção de carrinhos.

Outro marido, em véspera de ser pai, gasta o dinheiro da poupança do bebe, cujo destino seria a cadeira de amamentação da mãe, para patrocinar a vestimenta do seu time de futebol do condomínio.

Meia dúzia de histórias diferentes contam sobre mulheres que descobriram infidelidades do companheiro no contexto em que este foi internado por COVID-19. Seja porque o telefone de um ficou com a parceira, seja porque a outra, sem notícias, passa a procurá-lo em sua casa, seja porque este homem vem a falecer e duas famílias aparecem no funeral. 

Não é sobre “homem não presta”. É sobre a complexidade das relações

Das histórias "ácidas", muitas envolvem traições e a maior parte dessas traições são cometidas pelos homens. Isso acontece em arranjos de relacionamentos héterossexuais ou LGBTQIAP+: como na história em que a esposa entra em trabalho de parto após tomar o susto de ver seu marido transando com seu irmão, ou quando um namorado pede 5 mil ao outro para o conserto de um cano no banheiro, passa dois anos sem pagar a dívida alegando falta de condições e, sem que o outro saiba, compra tênis de grife um iPhone de última geração.

No entanto, vamos deixar claro, o podcast não é sobre linchar homens. Lá se encontram também histórias de mulheres que agiram de maneira mentirosa ou antiética:

Tem a da esposa que desviava o dinheiro do seguro do carro para fazer seus tratamentos estéticos e deixou o marido com uma dívida de mais de 40 mil, quando o carro foi roubado sem estar quitado; a jovem que roubava tênis e notebook de valor dos outros moradores da república da sua namorada; ou a garota que ao ver seu novo namorado com uma suposta esposa e filhos na noite de natal, destruiu a moto dele com um pé de cabra, para, no almoço do dia seguinte, descobrir que na verdade era o irmão gêmeo dele com sua respectiva família.

Os casos são variados, mas o volume de histórias que envolvem as mentiras escabrosas e traições masculinas desvela uma realidade cruel que justifica essa falta de confiança inspirada por comportamentos masculinos. 

Não que traições, egoísmos e falta de cuidado sejam uma revelação inédita feita pelo podcast. Na era das nossas avós, as avós delas já esperariam comportamentos do tipo e ainda diriam “é coisa de homem”.

Algumas das histórias do podcast inclusive são de avós  que contam causos que aconteceram consigo há 50 anos ou senhoras que, este ano, sofreram tentativas de extorsão de alguém que jurou amá-las. 

O que o podcast traz de diferente é, talvez, a sinceridade por trás da vergonha, d’o quê vão pensar, que só consegue vir à tona com a garantia de anonimato. O que entre colegas se traduz em “achamos melhor terminar”, pode esconder o fato que um namorado usou o nome do outro para fazer dívidas. Isso vem à tona no picolé de limão quando o endividado escreve sua história pedindo conselhos sobre como reaver o prejuízo.

Além disso, o retrato realista em relação ao contexto financeiro e social das pessoas, bem demarcando no podcast, costuma ser ausente na maior parte das narrativas novelescas e cinematográficas.

E o que aprendemos com isso?

Que o buraco é muito profundo. Que as exceções não são tão raras assim. Que algo que parece um absurdo, uma trairagem de outro mundo, na verdade é frequente e atinge muita gente. 

Assim como quando uma pessoa toma coragem de contar sua histórias de violência doméstica, frequentemente se descobre que outras mulheres a sua volta passaram por algo semelhante, o podcast também desencadeia esse fio de relatos sobre traições, displicências e violências - às vezes psicológicas, e frequentemente patrimoniais. 

Se queremos (e aqui no PDH essa é a intenção) pensar na transformação masculina em direção a um comportamento mais ético, responsável e equânime, é preciso olhar para dados de pesquisas oficiais (que não é ponto aqui), mas também olhar com atenção para esse fio de relatos que começam a vir à tona e que dão cenário, circunstância, contexto para o retrato das faltas que os homens seguem cometendo. 

Reforçamos aqui que a intenção não é apontar dedos ou criar uma relação de vilões X mocinhas. O ponto é trazer a luz do debate conversas difíceis para entender o abismo que temos que enfrentar no caminho pela equidade. 

Tantas vezes os homens ao nosso redor demonstram incômodos com essa falta de confiança, com a sensação de que os homens estão sendo criticados, que a masculinidade está sendo colocada em cheque. Eu posso entender o desconforto masculino diante disso, mas queria aqui pedir um olhar empático de vocês, colegas homens aliados, para entender um ponto essencial:

Nas histórias (e na vida real), parte-se de um estado inicial de confiabilidade entre duas pessoas. Muitas vezes, mesmo diante dos primeiros indícios de problema, o movimento é desacreditar “imagina, ele não faria isso”. A crítica ao masculino, a crise da confiabilidade masculina a que me referi ao longo desse texto surge por um processo de seguidas quebras dessa confiança. E então a recuperação de uma confiança quebrada, naturalmente é dificultosa

Convido, vocês queridos aliados, à empatia de entender que a desconfiança está fundamentada por atos frequentes, individuais e coletivos. E que reconstruir um senso de confiança para o masculino como um todo, passa por um intenso processo de responsabilização dos, enfrentando desconfortos, reflexões, mudando comportamentos individuais e coletivos.

É um trabalho árduo, vai levar tempo. Mas acredito que vale a pena para todos e todas. 


publicado em 08 de Junho de 2022, 17:04
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Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro "Amulherar-se" . Atualmente também sou mestranda da ECA USP, pesquisando a comunicação da sexualidade nas redes e curso segunda graduação, em psicologia.


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