No último domingo foi dia dos pais e é possível que você tenha presenteado o 'velho' com um novo celular. É igualmente possível que agora você tenha se colocado na missão de tirar as dúvidas de funcionamento do aparelho. Assim como é possível que a essa altura você já esteja achando que cometeu um tremendo erro a cada vez que ele pergunta como mexer no zap zap!
Da mesma forma, é possível que você também já tenha se colocado na situação de presentear uma criança com um desses aparelhos eletrônicos. Nesse caso, é bastante verossímil (eu mesmo já presenciei!) imaginar que antes mesmo que você pudesse pegar o manual (alguém ainda faz isso?), ela já esteja entretida assistindo Galinha Pintadinha no Netflix.
Piadinhas à parte, esse é um exemplo claro em que você se pergunta: será que as crianças de hoje em dia são gênios e os idosos lentos demais?
A hipótese pode parecer absurda, mas foi exatamente essa mesma dúvida que os pesquisadores tiveram quando pararam para analisar os resultados de testes de QI realizados no último século e descobriram que a média de pontuação da população subiu consistentemente, muito!
Foi então que elaboraram o Efeito Flynn.
Efeito Flynn
Em 1982, um filósofo e psicólogo da Universidade de Otago, na Nova Zelândia, chamado James Flynn observou e analisou os testes de QI realizados ao longo do último século e reparou uma coisa interessante. Para atingir o objetivo do teste de sempre obter uma média de 100 pontos entre os respondentes, era preciso que o nível de dificuldade subisse cada vez mais, assim, os questionários foram atualizados, em média, a cada 25 anos.
Em outras palavras, Flynn percebeu que se um americano médio fizesse o primeiro teste de QI criado ele faria 130 pontos, pontuação atribuída a pessoas geniais. Da mesma forma, se o teste atual fosse aplicado com um americano médio daquela época, sua pontuação seria de 70, literalmente um resultado esperado de deficientes intelectuais.
Tudo isso fez com que Flynn chegasse à conclusão de que o Quociente de Inteligência da população tem aumentando, em média, 3 pontos por década. E apesar do cientista ressaltar que ele não foi o primeiro a notar este padrão, tampouco quem o batizou assim: até hoje, é dado a este crescimento o nome de Efeito Flynn.
Mas o cientista não parou aí. Ele não se convenceu simplesmente de que todos nós seríamos geniais no começo do século 20, assim como não ousou concluir que qualquer pessoa nascida em 1930 tem menor desenvolvimento cognitivo. A partir disso surgiram várias hipóteses para explicar o porquê desse resultado acontecer.
Hipóteses
Em primeiro lugar é preciso dizer que apesar do aumento ser notado em todas as fases do teste, umas aumentaram mais do que outras. Em áreas do conhecimento como aritmética e vocabulário, o aumento não é tão sensível quanto no que é chamado de Matrizes Progressivas de Raven, conforme mostra o gráfico.
Por Matrizes de Raven, podemos chamar aqueles testes de associações do tipo:
Esse aspecto é muito importante de ser notado porque ele diz respeito, sobretudo, à nossa capacidade de pensar em questões abstratas, compreender símbolos e fazer conexões que não têm uma âncora tão imediata com a realidade. Segundo Flynn, esta exigência do mundo moderno é o principal componente para que tenhamos resultados tão diferentes.
Isso pode ser representado quanto observamos os ícones utilizados até hoje em meios digitais para representar as coisas: envelope de carta quer dizer email; ponteiro quer dizer horas; telefone fixo quer dizer ligações; gravata quer dizer homem (ops!);
Para facilitar o processo de aprendizado das pessoas, ainda é preciso que os símbolos tenham um lastro com objetos físicos que elas conhecem, porém, a tendência é que, com o passar do tempo, essas referências sejam perdidas e nós vamos precisar explicar para as novas gerações que um dia, quando você queria falar com alguém, era preciso pegar um papel, uma caneta, escrever, colocar dentro de um envelope, lacrar, ir até uma agência dos correios, enviar e esperar muitos dias até que a mensagem chegasse a outra pessoa e por isso que envelope é o símbolo utilizado para representar essa troca de mensagens…
Já os símbolos novos que forem surgindo vão tanto ter menos ligação com a realidade física quanto o meio digital ganhar importância e autossuficiência em nossas vidas.
Estímulos
Resumidamente, Flynn acredita que tudo pode ser explicado pela diferença de estímulos que as pessoas recebem. Ele não concorda com a hipótese de que somos mais inteligentes do que antes, mas que os estímulos que recebemos hoje estão mais alinhados com o 'tipo de inteligência' que os testes de QI avaliam.
Começando pelo fator genético, ele aponta que uma nutrição mais rica e adequada pode ser determinante no desempenho de crianças nos testes. Um estudo realizado em 2005 na China mostrou que crianças que tinham déficit de um nutriente muito específico – o iodo – tinham pontuações mais baixas que crianças que não tinham essa deficiência. Se apenas um elemento é suficiente para apontar variação no resultado, imagine a nutrição completa.
Os estímulos continuam na fase escolar. Como sabemos, as pessoas têm passado cada vez mais tempo em escolas e universidades sendo expostas à educação formal que é sustentada no modelo científico e, como ele mesmo diz, não há ciência sem pensamento hipotético. Sendo assim, quanto mais anos de estudo temos, mas anos de treinamento e condicionamento do nosso cérebro para um desempenho melhor nas Matrizes de Raden.
Há também uma série de influências da família e dos amigos com o qual convivemos. É aquilo que os cientistas chamam de influências do ambiente. Segundo eles, estar num ambiente onde se lê mais livros ou ser estimulado a ler desde criança pelos pais é determinante na capacidade de abstração e conexão que nosso cérebro é capaz de ter. Além disso, existe a hipótese de que: como as famílias estão tendo menos filhos, as crianças têm convivido cada vez mais com adultos, fazendo com que elas pulem etapas, aumentem o vocabulário e adquiram conhecimento formal mais rápido.
Mas talvez o que resuma melhor a diferença de estímulo sejam as atividades profissionais. Estima-se que em 1900, somente 3% dos americanos tinham um emprego que fosse "cognitivamente exigente" e atualmente esse número subiu para 35%. Além disso, mesmo os empregos que existiam 100 anos atrás como banqueiro, fazendeiro, advogado, hoje exigem muito mais capacidade de raciocínio abstrato do que antes.
Ressalvas
Há, porém, argumentos mais céticos em relação aos testes de QI. Em primeiro lugar há a ressalva do que os cientistas chamaram de "Sabedoria do Teste". Isso acontece quando os indivíduos que estão sendo testados sabem que estão sendo testados e, portanto, não se importam de errar as questões. Isso faz com que eles sintam menos pressão e tenham melhor desempenho.
Fora isso, há um questionamento muito sério a respeito da efetividade do teste de QI para 'medir' a inteligência das pessoas. Já sabemos que o teste não serve para mensurar a inteligência individual (dependendo da modalidade do teste que você fizer, os resultados podem ser diferentes), mas numa média geral eles deveriam ser efetivos, afinal, eles foram criados, sobretudo, para orientar políticas públicas de educação.
Porém, o questionamento que fica é: se os testes de QI estão indicando que as pessoas estão ficando mais inteligentes, mas nós não vemos uma legião de gênios andando por aí, talvez o teste não seja mais eficaz.
Sobre isso, um cientista colega de Flynn chamado William Dickens, resumiu:
"Como poderia aumentar tanto, sem que a gente perceba todas essas pessoas super inteligentes andando por aí? Isso é um mistério. Mas as pessoas começaram a dizer que talvez existam pessoas mais brilhantes e elas estariam escondidas por causa da maneira como a ciência se tornou 'especializada' ao extremo. Eles estariam trabalhando em seus próprios campos de pesquisa, fazendo coisas incríveis, e agindo como pessoas normais e genuínas. Mas eles não são identificados como 'gênios'."
No fim, parece que tudo continua se tratando do que você acredita. Argumentos de ambas as partes não faltam. Ou você não é inteligente o suficiente pra perceber?
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A Tecla SAP é uma série de autoria de Breno França publicada quinzenalmente às quintas-feiras.
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