Quando uma de minhas radialistas favoritas, Shelagh Rodgers (pronuncia-se ‘Sheila’), anunciou ao vivo que iria abandonar seu show matutino para tirar um tempo para si, o jeito que ela usou para explicar o porquê daquilo me deixou uma impressão marcante.
Ela contou que, há muitos anos, um colega dela insiste em fazer viagens frequentes a uma cabana afastada ao norte da cidade, onde passa o tempo cortando lenha, lendo e caminhando com os cães. Quando perguntou a ele o porquê da importância desse ritual, ele disse, “bem… realmente gosto de quem eu sou quando estou por lá”.
Rogers explicou a saída dizendo que o show matutino era exatamente o oposto disso para ela: o trabalho requeria que acordasse às 3:30 da manhã, corresse para o estúdio e a forçava a entrar em “modo profissional” muitas horas antes do sol nascer. E ela não gostava de quem ela era enquanto fazia isso.
Quando ouvi essa explicação eu também estava sentado no trabalho, e percebi que definitivamente não gostava de quem eu era ali, naquele lugar. Não gostava de mim mesmo ao telefone com clientes, falando com empreiteiros ou em encontros pré-construção. Sem nenhuma ideia melhor naquele momento, imaginei que uma hora qualquer precisaria construir uma cabana ao norte para escapar regularmente, cortar lenha e ler em frente à lareira.
Aquele pensamento – eu gosto de quem eu sou enquanto estou fazendo o que estou fazendo? – tem me visitado algumas vezes por ano desde então, e finalmente começo a reconhecer quão crucial é essa questão. Precisamos nos questionar dessa forma perante tudo o que fazemos regularmente em nossas vidas. Se a resposta for “não”, então faz sentido perguntar como isso acabou se tornando parte regular do nosso estilo de vida, se é necessário ou realmente vale a pena.
É de se imaginar que, naturalmente, tenderíamos a nos focar em atividades que concedem esse sentimento de autoafirmação. Mas somos mais levados pelas expectativas, gratificações imediatas e pela inércia. Entre assistir um filme ruim pela terceira vez e ligar para um amigo, geralmente fazemos a primeira coisa. Não por que ela nos promete uma melhora na situação atual ou em nossa vida de modo geral, mas por que geralmente operamos a partir de incentivos imediatos: previsibilidade, facilidade, ausência de risco. A ideia de fazer algo simplesmente por que gostamos da pessoa que aquela coisa nos torna provavelmente nem entra em questão.
A pergunta “gosto de quem sou ao fazer isso?” é diferente da pergunta “gosto de fazer isso?”. Podemos encontrar alguma gratificação em discutir online, comer exageradamente ou ficar em casa nas noites de sábado, mas isso não significa que nos sentimos bem à respeito da pessoa que somos quando estamos engajados nessas coisas. Somos muito complexos e algumas atividades recompensam nossas motivações brigonas ou de isolamento, enquanto outras atividades recompensam nossos lados mais compassivos, sábios e úteis.
Facilmente caímos no hábito de nos engajar em qualquer uma dessas atividades na medida em que haja algum tipo de recompensa nelas. Anos se passam antes que se perceba que há algo errado: seguimos a trilha de migalhas errada, e não nos sentimos bem com relação a onde ela nos levou.
Ao longo dos últimos meses percebi uma diferença dramática com relação a como me sinto à respeito de mim mesmo, e acho que isso tem muito a ver com minha mudança de hábitos com a chegada do inverno. Durante o verão e a primavera, dia sim, dia não, eu saía para correr na vizinhança e andava de bicicleta em quase todos os fins de tarde. Sentia-me ativo, disciplinado, próximo da minha cidade e da comunidade. Estava mais cuidadoso, caminhava por toda parte e ficava menos ocupado com pensamentos. Essencialmente, eu gostava de quem eu era ao fazer quase todas as atividades que fazia em um dia comum.
Quando o inverno chegou, as atividades do meu dia mudaram. Parei de correr quando as ruas ficaram frias. Comecei a dirigir mais e caminhar menos. Fiquei mais em casa à noite. Passei mais tempo surfando a internet, desenvolvendo um (agora percebo, pouco saudável) interesse em política global e nos debates inevitáveis que ela inspira. Minhas maquinações mentais se tornaram cada vez mais frequentes, de forma que desenvolvi uma resistência maior a simplesmente permanecer no momento presente.
Na medida em que o exterior se tornava menos hospitaleiro, minhas atividades passaram a fornecer maiores quantias de gratificação e conforto, mas menos autoestima. Quando são quatro horas da tarde e ainda não saímos de casa, é difícil sentir que estamos usando o melhor das nossas qualidades. Como esse déficit só aumenta a necessidade de conforto e gratificação nós gravitamos ainda mais em direção a isso, quando o que realmente precisamos é do oposto.
Todos nós temos estes momentos em que nos sentimos afastados do melhor que podemos ser. Podemos não saber o que está errado, mas é evidente que algo saiu dos trilhos e precisamos dar um passo atrás para reavaliar o que é importante.
Muitas vezes nós respondemos a esses lapsos com uma lista de planos do tipo “eu devia”, que compilamos regularmente em todo 1º de janeiro. Eu devia… me exercitar mais, me relacionar mais com as pessoas, trabalhar mais no meu livro, ajudar mais a minha comunidade. Mas estes “eu devia”, se não realizados, acabam ainda mais com nossa autoestima – até que estejamos ou os atingindo bem contentes ou reconhecendo que essas coisas não são o verdadeiro problema. A autoestima parece estar inseparavelmente ligada aos sentimentos de identidade que obtemos com as atividades que ocupam o nosso dia.
Perguntar a si próprio “O que estou fazendo quando gosto de quem sou?” me parece uma forma mais direta de descobrir o que mais precisamos (e o que menos precisamos) na vida, não importa quais sejam as necessidades que acreditamos ter.
Algumas vezes, as coisas saudáveis e satisfatórias de que nos desviamos são exatamente as coisas cuja significância não reconhecemos até que percebemos o quanto contribuem para nosso bem estar. Você pode nem ter percebido que gosta muito da pessoa que você é quando está com certo amigo, mas isso pode ser justamente por que não vê mais esse amigo. Talvez suas agendas não se encaixem e as rotinas pessoais que os mantiveram em contato (noites no bar ou clubes diversos) deixaram de ser hábitos.
Combine isso com algumas outras mudanças inesperadas – parar de ir na academia no feriado, receber uma responsabilidade nova no trabalho ou se viciar na série Os Sopranos – e um dia você percebe que algo não está muito certo na sua vida, por que você passa os dias de um jeito que não te faz mais se sentir alguém de quem pode se orgulhar.
Depois de pensar sobre isso dessa forma, agora consigo ver o que é tão diferente, para mim, entre verão e inverno:
Gosto de quem eu sou quando passo tempo na rua, em minha vizinhança. Não gosto de quem sou quando discuto política na internet. Gosto de quem sou quando acordo para meditar. Não gosto de quem sou quando fico em casa o fim de semana inteiro. Gosto de quem sou quando visito amigos. Não gosto de quem sou quando saio mais cedo do trabalho.
Estas coisas estão todas interconectadas e, no meu caso, o clima e as estações foram catalizadores. Eu não destrilhei ou dei um passo em falso, apenas respondi inconscientemente ao frio de forma que isso me afastou de quem eu gosto de ser.
Perceba que eu posso gostar, em algum nível, de fazer todas essas coisas; mas eu não gosto de como eu me sinto enquanto estou fazendo metade delas. Da mesma forma, pode haver coisas que eu ache difíceis ou exaustivas, mas que são recompensadoras por que eu gosto de quem sou quando as faço. Exercícios na barra fixa são algo que me vem à mente. E existem muitas outras verdades desse tipo para conhecer. Podemos aplicar essa questão a qualquer coisa que se faça ou tenha deixado de fazer – “gosto de quem sou ao fazer isso?”.
Para mim, essa pergunta é um ótimo instrumento de feedback para identificar o que é realmente importante em nossas vidas. Se você considera que algo saiu de prumo, respondê-la vai deixar bem claro o que você precisa fazer para retornar a um estado ótimo. Comparado a se culpar, se esforçar mais ou forçar um rumo para si mesmo, usar essa pergunta funciona como navegar a vida usando um mapa e uma bússola (em vez de simplesmente se lançar em direção a qualquer paisagem que pareça mais convidativa).
Não é preciso compreender exatamente por que certas coisas se encaixam tanto nesse sentido e outras não. Você só precisa usar essa questão enquanto estiver por aí, vivendo a vida – os elementos essenciais para você vão acabar aparecendo por si só.
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Nota: Este texto foi originalmente publicado no Raptitude.com.
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