Por que larguei o satanismo

Não é bem que larguei, às vezes ainda calha de praticar — é só que tem acontecido bem menos e a experiência tem sido boa.

As interpretações etimológicas e teológicas do termo "Satã", de origem hebraico-cristã, dão uma discussão à parte, mas parece ser consenso entre pesquisadores e religiosos que uma boa tradução para a palavra é "o antagonista" ou "o opositor" — uma das mil inteligências impessoais que já andamos incorporando pela vida, momento a momento, e que estão personificadas simbolicamente no inventário cultural.

Este texto é sobre isso: oponência. E sobre a pergunta que ando me fazendo: criticar e se opor é tão desejável e útil quanto me parece? O que mais dá pra fazer quando encontramos algo que soa problemático, danoso ou frívolo?

Eu tenho uma clara inclinação para a crítica silenciosa ou explícita. Não é nem que me esforce pra isso, é que calha bastante de me saltar aos olhos as limitações (procedentes ou não) dos vieses comuns e então surgir uma oponência quase natural e uma não-vinculação. É um hábito antigo, nem sempre ruim mas muito incauto.

"Viu que legal a propaganda de refrigerante que critica as redes sociais?", "Que maravilhoso o filme novo sobre escravidão!", "Olha que foda o texto novo do PdH!". Eu nunca consigo comprar fácil...

 

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Pedro de Lara: Satã

Não tenho dúvidas de que exercer o antagonismo pode ser muitíssimo necessário e benéfico, isso salva e melhora nossas vidas o tempo todo. O que ando notando é que, pelo menos no meu caso, nas coisas do dia a dia, é algo bem menos necessário e até mais danoso do que gosto de acreditar.

O meu critério tem sido algo assim: se eu me opor, isso poderá causar maior benefício e abertura ou maior dano e fechamento?

A resposta nunca é fácil, mas serve como um orientador. Funciona muito bem com as coisas pequenas do dia-a-dia, conversas tipo de bar ou corredor, almoços em família, posts no Facebook, comentários no Disqus, amenidades em geral que vão inundando nosso fluxo cognitivo.

Mesmo quando há razões para a oposição, ter maior tato e moderação está parecendo quase sempre uma boa prática. Não tem muito a ver com a atitude em si, mas com o que ela faz acontecer, com as possibilidades que ela abre ou sustenta.

Vejo isso acontecendo ao meu redor de forma bem palpável, ainda que um pouco sutil. É como uma postura interna que vai temperando a qualidade da nossa presença, a própria forma como gerimos a atenção, tempo e energia, como educamos as crianças, ajudamos os amigos, a maneira como acabam se moldando as nossas nossas relações todas e a própria experiência de mundo.

Até o corpo entra no jogo: nossas expressões, posturas, o jeito como olhamos, respiramos, nos movemos ou paramos — queiramos e saibamos ou não, a simples presença expressa a nossa disposição silenciosamente, a olhos vistos.

 

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"Satan, o antagonista", ilustração de Gustave Doré para "Paradise Lost", poema épico de de John milton, 1866

 

Alternativas à inteligência satânica

Quatro ações que tenho experimentado:

1. Em vez de ver oponentes, ver iguais. Se olhamos ao redor e vemos o que as pessoas estão fazendo, o tipo de vida que levam, as coisas que priorizam, vai saltar à nossa cara que estamos todos buscando coisas diferentes, que os interesses não coincidem e andamos em direções variadas, oscilantes e, no fundo, conflitantes.

Agora, pelo meio dessa movimentação caótica, também é possível localizar uma motivação que seja comum a todos, em qualquer tempo e lugar. Uma aspiração escondida pela exposição escancarada (tipo aquele já não percebido quadro pendurado desde sempre no corredor da avó): queremos todos, sem exceção, encontrar e estabilizar uma experiência de satisfação, e num mesmo movimento evitar o desconforto, a insegurança, o sofrimento.

Se formos capazes de um ponto de vista assim, pode ser que ocorra um insight poderosíssimo: todos precisamos de ajuda, e talvez os mais “maus” sejam exatamente os que mais precisam — porque são justamente os mais inábeis, tem a vida dificultada pela própria confusão.

Enfim, temos caras, ocupações e inclinações diferentes e palmilhamos espaço no mesmo barco. O problema é de todos e não há inimigos reais. Aí podemos encontrar meios de nos opor habilmente. Não às pessoas, mas aos seus enganos. Não ao sexista, o racista, o violento ou o frívolo, mas ao sexismo, o racismo, a violência, a frivolidade — o agressor e o agredido tem de ser salvos da agressão.

Não que assumir isso seja fácil, mas sei pela minha parca experiência (e a de pessoas próximas) que é possível e que mesmo na mais infinitésima medida isso já move mundos.

 

Não se engane: o outro também precisa de ajuda

Se essa primeira alternativa parece difícil e abstrata, me ocorrem outras três, bem mais práticas:

2. Em vez de se opor ao que nos aparece como enganoso, danoso ou frívolo, apenas ignorar. Comentar negativamente é botar lenha na fogueira: quando nos opomos a algo, aumentamos sua visibilidade. Ignorar não por preguiça ou desinteresse, mas ativamente, como uma forma de ação, de renúncia consciente ao engajamento. Acho que ouvi a dica pela primeira vez do Eduardo Pinheiro:

 

"É importante perceber que não existe publicidade negativa, e o melhor é sempre punir com o ostracismo".

Podemos notar: bem comumente basta deixar o assunto passar para que as as atenções se ocupem de outra coisa no momento seguinte.

3. Em vez de se opor ao que nos aparece como enganoso, danoso ou frívolo, enriquecer o que nos aparece como positivo e benéfico. Penso que isso vale tanto para as amenidades como para coisas grandes: curtir, comentar, enfatizar o melhor aspecto, elogiar de coração. Ao pulverizar essa ação enriquecedora pelos nossos dias, vamos povoando as atenções com conteúdos construtivos e nutrindo o que as pessoas e iniciativas tem de melhor, naturalmente. Grandes chances, com isso, de que os ânimos, relações e ambientes melhorem muito e rapidamente.

4. Em vez de se opor ao que nos aparece como enganoso, danoso ou frívolo, oferecer opções e aumentar o leque de possibilidades. Às vezes é bem simples: empacamos no ruim só porque não vimos algo melhor. É como se ficássemos caindo  na pegadinha inicial da Teoria McDonald’s. Acho que ouvi a dica pela primeira vez do Gustavo Gitti:

 

"Talvez seja por isso que a ação mais sábia e compassiva aumente as possibilidades, nossas e dos outros, aumente o espaço de liberdade, ou, como definiu Heinz von Foerster em seu imperativo ético: 'Aja sempre de modo a aumentar o número de escolhas'."

E como é isso para vocês? Que outras opções lembram?

 

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Uma das coisas que mais tem me ajudado e desafiado a encontrar um equilíbrio bom entre oposição e soltura é participar do lugar. Um espaço com pessoas inteligentes e dispostas a conversar direito sobre coisas importantes e colocando muitas vezes a própria vida em cheque. Isso é um prato cheio pra qualquer antagonista compulsivo.

Queria agradecer a cada um, de coração, pela paciência, confiança, acolhida e por ajudar a manter um espaço tão favorável ao aprendizado coletivo. Não é algo fácil de se fazer.

 

Foto do último encontro do lugar, com a Carolina Bernardes, sobre como viajar e viver sem dinheiro (o áudio na íntegra já está disponível dentro do lugar)
Foto do último encontro do lugar, com a Carolina Bernardes, sobre como viajar e viver sem dinheiro (o áudio na íntegra já está disponível dentro do lugar)

Se você já participa do lugar, várias das práticas, artigos e conversas no fórum estão ligados ao cultivo de boas relações, conversas de coração e empatia, mas um jeito bem direto de começar é com esta sugestão de experiência prática →

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publicado em 08 de Março de 2014, 07:45
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Fábio Rodrigues

Artista visual, coordenador na comunidade online o lugar, professor do programa Cultivating Emotional Balance, pai do Pedro. Instagram → | Arte e mundo interno →


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