Religião é ideologia, ideologia é religião.
Não é que a religião seja um tipo de ideologia. Não é que a ideologia funcione como se fosse uma religião.
É que religião e ideologia são a mesma coisa: teorias abrangentes que utilizamos para fazer sentido da realidade, sejam elas o cristianismo ou o candomblé, o neoliberalismo ou o marxismo, o método científico ou a psicanálise freudiana.
Todas as pessoas, inclusive eu e você, enxergamos o mundo através de uma ou mais ideologias, e não há nada de errado nisso. (Pelo contrário, é impossível ser a-ideológico.)
É só quando não conseguimos enxergar além das barras de nossa ideologia que ela pode se tornar uma prisão.
Infelizmente, quase ninguém consegue: a gente não acredita no que quer, mas no que PODE.
Um telescópio pode ser usado para enxergar galáxias a milhares de anos-luz de distância, mas nunca poderá ser usado para enxergar a si mesmo. Toda ideologia/religião dá conta de explicar o universo, mas não dá conta de explicar a si mesma.
A solução, como sempre, é mais empatia.
* * *
A experiência da água fervida
Há muitos e muitos anos, quando eu era um menino rico crescendo na praia da Barra da Tijuca, a cozinheira quis tomar uma xícara de chá. Enquanto ela pegava o bule no armário, eu sugeri:
“Por que não ferve a água no micro-ondas?”
Ela resmungou que micro-ondas era mais lento ou algo assim, mas a verdade é que, senhora mais idosa vinda do interior da Bahia, ela não tinha era confiança naquelas engenhocas tecnológicas. Puro preconceito, pensei.
Respondi que apostava com ela que no micro-ondas era mais rápido. Ela aceitou a aposta.
A xícara d’água, no fogão, ferveu em pouco menos de três minutos. No micro-ondas, demorou três minutos e uns quebrados.
Quebrada, também, ficou a minha cara.
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Minha cozinheira era uma pessoa sem muita instrução, mas ao menos conhecia seus próprios preconceitos: sabia que não gostava dessas rebimbocas modernosas, que esse negócio de homem com homem era coisa do diabo e, tem mais, lugar de mulher era em casa, criando os filhos. Nunca mentiu para si mesma. Nunca se enganou.
Já eu, menino culto e viajado, cosmopolita e sem preconceitos, estava totalmente cego pelos meus.
Assim como ela não tinha motivo concreto algum para preferir ferver água no fogo, a não ser seu preconceito contra tecnologia, eu também não tinha motivo concreto algum para preferir ferver água no micro-ondas, a não ser minha tecnofilia jovem-urbana-elitizada-consumista.
Assim como ela estava presa à sua criação, que enfatizava desconfiança à tecnologia, eu estava preso à minha, que enfatizava um abraçar acrítico e entusiasmado de novas tecnologias. Afinal, pensava eu, se usar o micro-ondas não fosse comprovadamente melhor do que usar o fogão… por que teriam inventado o micro-ondas, né?
Não há nada pior do que os preconceitos de quem acha que não tem preconceitos.
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A ideologia do patrão
Muitos e muitos anos depois, eu morava em Nova Orleans, dividindo uma casa com diversas pessoas, entre elas um chef de cozinha que tinha vindo lá do Kansas para trabalhar no melhor restaurante da cidade.
Um dia, foi demitido. (“O chef não gostou da minha salada de melancia…”, choramingou ele.)
Apesar do prestígio de fazer parte de um restaurante famoso em todo o mundo, as condições de trabalho eram péssimas. Não tinha carteira assinada, plano de saúde, férias. Precisava trazer seus próprios apetrechos: ia para o restaurante todo dia com uma malinha de caríssimas facas e panelas. O pior mesmo era ganhar por hora trabalhada e não ter horas fixas. Quando o movimento estava fraco, lhe mandavam de volta pra casa, às vezes por uma tarde, às vezes por vários dias, sempre sem receber. Quando o movimento estava bom, lhe faziam ficar até o último cliente. Resultado: nunca sabia quanto ganharia no final do mês, mas não podia se arriscar a pegar um segundo emprego em suas horas livres.
Eu, meio chocado com essas condições de emprego, que para um restaurante nos Estados Unidos eram até normais (ficar regulando relação entre empregadas e empregadoras é coisa de comunista, cruz credo!), lhe contei como funcionavam as leis trabalhistas no Brasil.
E ele, ali na varanda de nossa casa, fumando e bebendo compulsivamente, em um momento de absoluto desespero, rejeitado pelo emprego dos seus sonhos, sem saber para onde iria ou como pagaria o próximo aluguel, zerado de economias e cheio de dívidas estudantis, esse homem, nesse momento da sua vida, ouviu sobre o FGTS e automaticamente, instintivamente, sua primeira reação foi:
“Mas não fica muito caro contratar e demitir pessoas?”
Ideologia é isso.
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O que é ideologia
A questão não é se meu colega de casa está certo ou errado, se FGTS é bom ou ruim, se as leis trabalhistas engessam ou não a economia. A questão é a ideologia que fundamenta e embasa nossa interpretação da realidade.
Esse menino do Kansas, nascido e criado no coração dos Estados Unidos, mesmo quando demitido de um emprego onde não tinha nenhum direito trabalhista, ainda assim vê, pensa, percebe, reflete, entende o mundo… do ponto de vista das classes empregadoras. Sua primeira reação foi se colocar não em seu próprio lugar (“poxa, se eu morasse num país como o Brasil, pelo menos ganharia um dinheirinho agora…”) mas no lugar do chefe que tinha acabado de despedi-lo.
Passo boa parte do meu tempo tentando fazer pessoas privilegiadas (homens, pessoas brancas, hétero, cis, classe média, etc) se identificarem com as desprivilegiadas (mulheres, negras, gays, trans*, etc). É uma tarefa muito, muito difícil.
Uma ideologia como a norte-americana, que consegue quebrar nossa tendência natural de puxar a sardinha para o nosso lado, só podia mesmo ser uma das mais bem-sucedidas do mundo.
Pena que, em vez de fazer as pessoas ricas se identificarem com as pobres, faz as pobres se identificarem com as ricas.
* * *
Nesse ponto, algumas pessoas leitoras, admiradoras da ideologia norte-americana, talvez estejam reclamando da ideologia esquerdista do meu texto.
Mas é impossível um texto não ter ideologia ou não estar totalmente imerso na ideologia da pessoa que o escreveu e da sociedade que a produziu. Quando você tem a ilusão de ler um texto que não é ideológico, isso simplesmente quer dizer que o texto tem a mesma ideologia que você: logo, que a ideologia do texto é invisível.
A pessoa que reclama de não aguentar mais “tanta ideologia” não é uma livre-pensadora, descompromissada e apolítica tentando formar suas próprias opiniões, mas sim uma pessoa mentalmente preguiçosa e de cabeça fechada, que só gosta de se expor às opiniões com as quais já concorda e que se sente extremamente incomodada quando exposta à opiniões diferentes.
Existem muitas ideologias. A ideologia desse meu texto, de achar que ideologia está em todo lugar, é uma delas.
A ideologia de se achar sem ideologia, por outro lado, é uma das ideologias mais disseminadas em nossa sociedade, especialmente entre as pessoas bem-nascidas de inclinação conservadora, que fazem desabafos como:
“Sou apenas um indivíduo livre, não tenho raça, não sou afiliado a partido, não tenho ideologia, não me meto em política! Quero só ficar aqui quietinho no meu canto, trabalhando duro, cuidando da minha família, viajando, curtindo meus livros, sendo feliz!”
Certo ou errado, o problema de quem fala essas coisas é não perceber a sua própria ideologia.
Ideologia é como espinafre no dente: a gente só vê o dos outros.
* * *
Ideologia é o conjunto de ideias, saberes, preconceitos, etc, que permite que as pessoas se relacionem com e façam sentido da realidade: são as lentes através das quais percebemos o mundo. Por isso, ideologia não é algo necessariamente ruim, e muito menos algo oposto à “verdade”. Não existe essa tal “verdade a-ideológica”: qualquer verdade será sempre apreendida através da ideologia de quem a vê.
Uma das definições mais famosas de ideologia é do filósofo francês Louis Althusser, escrevendo em 1970: a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência, gerando assim uma representação distorcida da realidade.
A definição de Althusser, porém, dá a entender que a “representação distorcida da realidade” seria resultado de vermos o mundo através de uma ideologia falsa ou falha: se apenas tivéssemos escolhido a ideologia correta, então perceberíamos a realidade de forma não-distorcida.
Mas, considerando que nossos sentidos e nossa cognição são inerentemente falhos e limitados, todas as representações da realidade apreendidas através deles serão sempre, por definição, distorcidas.
Não temos a capacidade de perceber a realidade de forma não-distorcida.
(Pensem em quão ególatra seria alguém capaz de bater no próprio peito e se auto-afirmar ser “a pessoa que vê o mundo como ele realmente é”, “a pessoa que enxerga todas as coisas como elas verdadeiramente são.”)
Uma definição de ideologia mais neutra, que não presume que ideologia seja algo negativo ou falso, é a da historiadora norte-americana Barbara Fields, em 2012:
“A ideologia é melhor compreendida como um vocabulário descrito da vida cotidiana, necessário para que as pessoas possam conferir um sentido básico à realidade social, vivida e criada por elas a cada dia. É a linguagem da consciência que possibilita a relação específica entre pessoas. É a interpretação em pensamento das relações sociais através da qual elas constantemente produzem e reproduzem o seu ser coletivo em todas as suas mais diversas formas: família, clã, tribo, nação, classe, partido, empreendimento, igreja, exército, associação, etc. Deste modo, as ideologias não são ilusões, mas sim reais, tão reais quanto as relações sociais pelas quais elas se mantém.”
* * *
Meu colega de casa não passou nem duas semanas ocioso e logo foi contratado por outro restaurante, também um dos melhores da cidade e com as mesmas e sofríveis condições de trabalho.
Segundo a ideologia dele, tudo aconteceu tão rápido porque, em uma economia de mercado sem tantas regulamentações trabalhistas, é muito mais fácil e descomplicado contratar.
Segundo a minha ideologia, foi uma combinação de sorte e talento.
A gente não enxerga o que quer, enxerga o que pode. Inclusive eu. Inclusive você.
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Definindo religião
O argumento desse meu texto é que ideologia e religião são a mesma coisa. Já vimos o que é ideologia. Vejamos agora o que é religião.
Para muitas pessoas, a resposta é simples: “crença em deuses”.
(Mas e o budismo? O budismo não tem deus. Será que o budismo não é religião? Talvez não seja mesmo. O budismo já foi definido como “sistema moral sem deus”, “uma fé sem deus”, “religião não-teísta”, “teoria da existência”, etc. O termo “budismo”, aliás, é uma invenção ocidental relativamente recente, menos de duzentos anos, elaborada especificamente para criar uma equivalência entre “aquilo” que se praticava na Ásia e outros “ismos” ocidentais, como judaísmo, cristianismo e islamismo. Por isso, evito usar esse termo.)
Uma definição de “religião” um pouco mais aberta talvez cubra o budismo: segundo o antropólogo britânico E. B. Taylor, em 1871, religião seria a crença em “seres espirituais”, sejam eles budas ou bodisatvas, orixás ou fadas, Javé ou Afrodite.
Por outro lado, o que define uma religião talvez seja não uma crença em seres espirituais ou sobre-humanos, mas sim (de acordo com o sociólogo francês Émile Durkheim, em 1912) uma comunidade organizada em torno de um certo “sentido do sagrado”: um sentido de pertencimento a algo maior que seus membros individuais, algo que lhes sustenta, algo com que se identificam, algo que sanciona sua conduta.
Uma definição mais interessante, do historiador britânico Trevor Ling, em 1973, seria que religiões são “resíduos de civilização”:
Uma religião seria uma grande civilização que, em algum momento da Antiguidade, possuía uma teoria completa do ser humano, legislando o que deveria comer e o que deveria vestir, como casar e como enterrar os mortos, de onde viemos e para onde vamos, e, ao longo dos anos e dos séculos e dos milênios, teria gradualmente perdido suas dimensões políticas e econômicas, estéticas e nutricionais, etc e etc, transformadas em instâncias independentes, até que restariam apenas os aspectos teológicos e existenciais, éticos e sociais. Ou seja, o que hoje redutivamente chamamos de religião: um sistema institucionalizado e apolítico de conforto e salvação pessoais.
Finalmente, em 1997, escrevendo sobre o budismo como uma prática agnóstica, o escocês Stephen Batchelor fecha o círculo: concordando parcialmente com Ling, em 1973, que definia o budismo como “resíduo de civilização” e recuperando a definição de cultura de Taylor em 1871 (“o todo complexo que inclui conhecimento, fé, arte, moralidade, leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”), Batchelor define o budismo como uma cultura, “uma cultura da iluminação”.
Então, recapitulando, religião pode ser (a) crença em seres superiores, espirituais ou sobrenaturais; (b) uma comunidade do sagrado; (c) o resíduo de uma civilização; (d) uma cultura.
A minha definição dá só um passinho mais além.
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Religião é ideologia
A religião é uma ideologia. A religião é a ideologia. Religião é ideologia, ideologia é religião.
A palavra “religião” tem em si o conceito de “re-ligar”, ou seja, de reestabelecer uma conexão: teoricamente com um deus ou deuses, mas não só.
Se a religião é a narrativa ou o método que inventamos para suprir o nosso anseio de nos reconectarmos ao sagrado, à natureza, ao universo, à realidade, então essa definição, com poucos ajustes, também poderia se aplicar à ciência.
(Em “Cosmos”, quando Carl Sagan diz que somos feitos de matéria estelar ou que, para fazermos uma torta de maçã, é necessário primeiro criar o universo, um calafrio se espalha por meu corpo, meus olhos se enchem de lágrimas e, sim, eu sinto profundamente conectado ao sagrado, à natureza, à realidade.)
Nossa religião/ideologia, portanto, é o conjunto de ideias, saberes, preconceitos, etc, que nos permite interagir com as outras pessoas e fazer sentido da realidade: são as lentes através das quais percebemos o mundo.
Tanto a tecnófilia-urbana-consumista dos meus quinze anos quanto o esquerdismo-budista dos meus quarenta, tanto o arcaísmo-rural-moralista da minha empregada quanto o neoliberalismo-libertário do meu colega de casa, são religiões no altar das quais rezamos; são ideologias que geram representações distorcidas (e como não seriam?) da realidade; são conjuntos de ideias e saberes que conferem sentido à nossa realidade social e que formam a linguagem da consciência do nosso cotidiano.
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Todas as pessoas, incluindo eu e você, apreendem o universo através das lentes de suas ideologias, gerando assim uma imagem distorcida da realidade. Essa imagem é distorcida não porque essas ideologias são falhas ou defeituosas (embora com certeza sejam, pois todas são), mas porque nossos sentidos e nossa cognição são inerentemente falhos e limitados.
Nada disso quer dizer que todas as ideologias sejam iguais, ou que, digamos, viver sua vida de acordo com o criacionismo “está no mesmo nível” que viver sua vida de acordo com o método científico, mas sim que, como estamos todas imersas em nossas próprias ideologias, não temos como avaliá-las ou compará-las criticamente.
Quem enxerga a realidade através de uma ideologia criacionista sempre vai considerar, por definição, que essa ideologia é melhor do que enxergar a realidade através da ideologia do método científico. E o oposto, naturalmente, também é verdadeiro.
O método científico, enquanto conjunto de saberes e técnicas para compreensão da realidade (aliás, extremamente bem-sucedido), pode ser usado para provar e desprovar qualquer teoria científica, mas não poderá jamais ser usado para provar ou desprovar a si mesmo, ou as próprias premissas que lhe fundamentam.
(O livro clássico de Thomas Kuhn, “A estrutura das revoluções científicas”, ilustra bem essa paradoxal ideologia do progresso científico.)
Portanto, não existe, nem seria possível existir, essa tal pessoa a-ideológica que não apreende a realidade através de nenhuma ideologia. Quem se diz acima de ideologias está mentindo: ou para as outras pessoas, ou para si mesma, ou ambos.
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A aposta de Pascal e o deus polinésio
Um dos mais famosos argumentos em prol da existência do deus cristão é a “aposta de Pascal”, elaborada no século XVII e debatida por matemáticos e teólogos, filósofos e estatísticos até hoje.
Segundo o pensador francês Blaise Pascal, mesmo quem não tem fé deveria fazer a “aposta” de presumir que o deus cristão existe e, consequentemente, de viver como se existisse. Assim, se você morrer e ele não existir, você não perdeu nada. (Não tem como ser um herege contra o universo aleatório!) Mas, se existir, você ganhou a salvação eterna e não o inferno.
Paradoxalmente, Pascal, que era físico e matemático, desenvolve esse argumento especificamente para pessoas como ele, lógicas e racionais, que tinham dificuldade em se deixar levar pela fé. Então, a aposta de Pascal, para seu autor, é um argumento lógico e racional para trazer à fé pessoas que teriam tendência à descrença.
Existem vários argumentos contrários à aposta de Pascal.
Em primeiro lugar, ele não considera que “viver como se deus existisse” tem um custo enorme: coisas que não posso comer, pessoas com quem não posso transar, dias nos quais não posso trabalhar, etc.
E, em segundo lugar, que a decisão não é entre acreditar ou não acreditar no deus cristão mas sim acreditar ou não… em qual deus?
Afinal, talvez eu aposte no deus cristão e viva toda a minha vida seguindo suas regras… só para descobrir, após a morte, que a aposta correta teria sido no deus de alguma pequena comunidade polinésia.
E, pior, que o deus polinésio ainda deixava transar fora do casamento e comer carne de porco à vontade!
* * *
O escritor Luis Fernando Veríssimo, ateu convicto, disse uma vez invejar as pessoas religiosas, pois viveriam em um mundo muito mais interessante e colorido que o dele.
Uma de suas melhores crônicas narra a chegada de um homem ao purgatório, sendo julgado para decidir se irá ao céu ou ao inferno.
Primeiro, o promotor acusa:
“Na semana tal, ele usou a mesma cueca por três dias consecutivos”.
“Ahhhh”, faz o júri, enojado.
“Em outra ocasião, ele ligou a água do chuveiro, para enganar a mãe, mas não tomou banho.”
“Ooohhh”, faz o júri, horrorizado.
“Ao longo da vida, ele urinou 5.456 vezes sem lavar as mãos”.
“Uhhhh”, faz o júri, escandalizado.
Por fim, o homem não se contém e começa a listar todas as coisas boas que fez, foi um pai atencioso, doou para a caridade, salvou as baleias, etc, e no meio desse discurso, ele enxerga Hitler, angelical, caminhando placidamente entre os habitantes do céu, e aponta, indignado:
“E ele? Ele causou guerras, matou, criou campos de concentração!”
“Sim”, admite o promotor, “mas tinha uma higiene pessoal inatacável!”
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Pascal estava certo em uma coisa: para algumas pessoas é de fato muito difícil acreditar em deus. Tão difícil como seria para outras não acreditar em deus.
A gente não acredita no que desejaria acreditar. A gente não acredita no que é logicamente dedutível. A gente não acredita nas evidências dos nossos sentidos.
A gente acredita no que pode, do jeito que dá, segundo as limitações da nossa biografia, da nossa educação, do nosso temperamento.
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Enquanto isso, a crônica ensina outra lição importante: afinal, será que realmente sabemos quais são os critérios de deus, ou, indo mais longe, quais são as regras do sagrado, quais são as leis que regem o universo?
A única maneira de transcender o controle que nossa própria ideologia exerce sobre nós é cultivando sempre uma postura de não-conhecimento.
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A admirável fé no absurdo
Em comparação às pessoas descrentes, a maioria das pessoas religiosas têm uma grande sabedoria: elas admitem que precisam acreditar em deus.
Que não conseguem imaginar um universo sem um deus zelando por suas almas. Que viver seria insuportável sem esse conforto. Que não conseguem acreditar que nossa existência seja só isso, algo tão carnal, tão bestial. Que tem que haver algo mais.
(Em outras palavras, que não acreditam que alguém tão incrível e complexa quanto elas, com tantos pensamentos únicos e emoções incríveis, esteja destinado à mesma morte e ao mesmo esquecimento que os peixes, as mariposas e os mamutes.)
Alguns kardecistas usam até um adesivo de para-choque bastante popular: “Reencarnação: Uma Questão de Justiça”.
Em um universo aleatório e entrópico, onde as pessoas más rotineiramente alcançam sucesso e riquezas, e as boas continuam chafurdando na miséria, contra toda a evidência disponível em qualquer primeira página de jornal, essas pessoas ainda assim têm uma fé inabalável que, sim!, conforme elas tanto desejam, o universo é justo!
Praticamente a definição de wishful thinking.
Nada mais humano do que ter fé que o universo seja como queremos. Nada mais humano do que ter fé de que esse universo, que manda tsunamis que matam cem mil pessoas de uma só vez, será carinhoso conosco e com as pessoas que amamos.
Admiro a capacidade das pessoas religiosas de abraçarem essa contradição.
Pois, como disse Kierkegaard, qualquer coisa que seja provável é algo que podemos quase saber, mas no qual é impossível acreditar. Só se pode realmente crer no Absurdo.
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A falsa lógica da descrença
Enquanto isso, por outro lado, muitas pessoas descrentes gostam de se imaginar lógicas e racionais, pessoas que consideram as evidências empíricas disponíveis e tomam as únicas decisões cientificamente possíveis, sem estarem presas à fé emocional e ilógica das pessoas religiosas.
Para muitas delas, sua descrença é uma questão puramente científica, lógica, racional, empírica, objetiva. Não há provas diretas e observáveis da existência de deus, logo não podemos afirmar que deus exista. Simples assim. Lógico. Racional. (E ainda fica implícito: “Olha como somos o máximo!”)
Teoricamente, para essas pessoas descrentes, o modo como desejariam que fosse o universo não entra na equação da sua descrença. Elas responderiam:
“Não estamos falando do que desejamos ou não. Não estamos sendo prescritivas mas descritivas. Simplesmente não há provas da existência de deus. Ponto.”
* * *
Mas o episódio da água fervendo me fez questionar mais a fundo minha própria ideologia.
A não-existência de deus não é uma conclusão lógica e científica a que cheguei com base nas evidências empíricas disponíveis.
Pra mim, ser uma pessoa descrente e não-teísta é uma necessidade existencial tão básica e profunda como a crença em reencarnação para as pessoas kardecistas. Uma questão de justiça.
* * *
Hoje em dia, a pergunta que faço às pessoas descrentes é:
“Ok, você não acredita que deus exista, mas preferiria que existisse? Se pudesse escolher, preferiria viver em um universo regido pelo acaso e pela entropia, ou em um universo criado e mantido por um deus consciente?”
Faço essa pergunta há dez anos. Quase todas as pessoas descrentes com quem já levantei a questão, depois de olhar profundamente dentro de si mesmas, depois de considerar suas próprias ideologias, acabam admitindo que, de fato, assim como eu, prefeririam que não existisse nenhum deus.
Ou seja, a ideologia através da qual apreendem o universo está baseada no mesmo wishful thinking da pessoa religiosa que diz que a reencarnação é questão de justiça: vivem no universo que consideram o mais desejável.
Ocasionalmente, uma ou outra pessoa descrente confessa:
“Eu até gostaria de viver em um universo regido por um bom deus, mas não consigo, simplesmente não consigo acreditar nisso!”
Ou seja, como já se falou aqui, não acreditam no que querem e sim no que podem.
* * *
De um modo ou de outro, pessoas crentes e descrentes, estamos todas sempre presas às nossas próprias ideologias.
* * *
Um consolo
Quando eu dava aulas em uma universidade e as pessoas alunas começavam a surtar antes da prova final, eu dizia algo mais ou menos assim:
“Pensem comigo. Somos todas primatas sem alma, vivendo vidas sem sentido, presas na superfície de uma bola de pedra girando em torno de si mesma e se deslocando em círculos pelo vazio do espaço, destinadas a morrer em breve, junto com todas nossas pessoas queridas, assim como nossos países, nossas culturas e nossos idiomas, que vão desaparecer também, aquecidos por um sol que logo se auto-destruirá, levando com ele tudo o que já conhecemos. Então, sinceramente, no grande esquema das coisas, que importância pode ter essa prova?”
* * *
Sou ateu porque preciso
Confesso: acredito viver no melhor universo possível.
Não suportaria existir em um universo regido por uma força divina misteriosa e caprichosa.
Não suportaria saber que minha alma viverá eternamente, em eterno prazer ou eterno sofrimento, baseado no que fiz ou deixei de fazer nesses poucos anos terrenos, de acordo critérios inescrutáveis definidos por um ser para o qual sou menos que uma ameba.
Se existe deus, então todos os esforços da humanidade para se entender e se auto-gerir, toda a ciência e toda a filosofia, de nada valem. Se existe deus, então não existe ética ou moralidade: somente adequação ou não às regras impostas por essa divindade.
Se existe deus e temos o livre-arbítrio, então o arbítrio de livre não tem nada, é uma dádiva da qual só desfrutamos porque nos foi concedida e pode ser tirada tão facilmente quanto.
Se existe deus, então a vida não tem nenhum sentido. Quem tem sentido é deus e o nosso sentido provém dele. Não somos mais do que suas cobaias, manipuladas daqui pra lá, correndo como hamsters em rodinhas, ignorantes de seus verdadeiros propósitos. Ao seu bel-prazer, somos mortas, escravizadas, santificadas, até mesmo afogadas em massa, quando falha o experimento.
Se deus não existe e o universo é aleatório e sem sentido, a humanidade está livre para criar, através de suas ações e de seus pensamentos, de suas obras e de suas vontades, dia a dia, século a século, o seu próprio sentido.
Por outro lado, se deus existe, o universo já tem sentido, um único sentido, o sentido que vem de deus, o sentido que está dado, e só cabe a nós descobrir esse sentido e viver de acordo com ele.
Se deus existe, não há criação de sentido possível. Não temos como ressignificar o mundo, a humanidade, o cosmos. Não temos como dar sentido nem a um botão de rosa.
Para mim, esse sim é um universo no qual não valeria a pena nem sair da cama.
* * *
Talvez deus realmente exista. Talvez sejamos todas somente marionetes em seu projeto cósmico.
Mas, ainda assim, prefiro inverter a aposta de Pascal. Se não tenho a liberdade de dar sentido à minha vida, melhor então a ilusão da liberdade do que nada.
* * *
Sou ateu não por ter concluído, após cuidadosa análise das evidências empíricas, que não existe base factual para sustentar a existência de deus.
Sou ateu porque eu só poderia existir e funcionar como ser humano em um universo sem deus.
Sou ateu porque preciso.
* * *
O objetivo dessa subseção não é fazer uma defesa do ateísmo, mas exatamente o contrário, utilizar o meu ateísmo como exemplo do argumento central desse texto:
A gente não acredita no que quer, a gente acredita no que pode. Não faz sentido nos sentirmos superiores a ninguém por conta da nossa ideologia.
* * *
“Por que não se mata?!”
Algumas pessoas às vezes me perguntam:
“Então, você está vivo para quê?”
“Para nada,” eu respondo. “Para absolutamente nada. Só estou vivo. Não basta?”
A pessoa insiste:
“Qual é o sentido da sua vida, então?”
“Nenhum”, eu respondo. “Absolutamente nenhum. Só estou vivo. Não basta?”
Algumas vezes, a pessoa desafia:
“Então, por que não se mata?”
Além de ser uma pergunta agressiva e mal-educada, confesso que nunca entendi bem essa provocação. É como se eu estivesse gostosamente me balançando em uma rede e alguém perguntasse:
“Se você sabe que vai ter que levantar daí inevitavelmente, por que não se levanta agora?”
Mas a resposta me parece simples e auto-evidente:
“Eu não me levanto agora porque agora estou muito bem aqui me balançando na rede.”
Então, não me mato agora porque agora estou muito bem aqui vivo, comendo pipoca e me masturbando, indo à praia e lendo Freud, essas coisas que uma pessoa faz quando está viva. Não me mato porque quero ler o próximo romance do Lobo Antunes e ver o próximo filme do Almodovar. Não me mato porque tenho pelo menos umas quatro peças de teatro e uns cinco romances na cabeça que ainda quero escrever.
Mesmo em um universo aleatório e sem deus, por que essas prosaicas razões não deveriam ser suficientes para uma pessoa não se matar?
Quando chegar a hora de levantar, eu levanto. Quando chegar a hora de morrer, eu morro.
Até lá, aproveito.
* * *
Seres inexistentes que por acaso existem
Uma amiga me perguntou:
“Como alguém, um ser humano, consegue suportar a ideia de que, a qualquer sopro malfadado do destino, pode morrer e simplesmente sumir? Nunca mais sentir, amar, sorrir, brigar, pensar, EXISTIR? … Para a minha pobre consciência simplesmente e inadmissível deixar de existir.”
Mas… se tudo acaba, se até mesmo o sol vai acabar, por que seria justamente eu a não acabar nunca? Por que eu seria tão importante assim? Aliás, por que a questão da minha existência seria minimamente importante? Por que eu deixar de existir é mais ou menos dramático do que um coelho deixar de existir?
Passei a existir no momento no tempo que convencionamos chamar de 1974 mas, antes disso, eu não-existi por um período literalmente infinito. E não foi ruim. Não doeu. Não foi desagradável.
Muito em breve, voltarei a não-existir por um período infinito de tempo. Se não era ruim antes, por que seria ruim depois? Por que ter medo de voltar a um estado que já experimentei e que não foi ruim?
Na verdade, considerando o tempo que passamos existindo e o tempo que passamos não-existindo, nosso estado natural é a não-existência.
Existir seria apenas um breve soluço, um glitch, um bug, dentro de uma perfeita, plena e eterna condição de não-existir.
Somos todos seres inexistentes que, por um acaso, existem.
Mas não por muito tempo.
* * *
A religião do consumo
Já vimos como as grandes civilizações do passado, com sua pretensão de organizar toda a experiência humana, acabaram se tornando uma sombra do que já foram.
Hoje, as ditas “religiões” ocupam um espaço cada vez menor em nossas vidas: são templos que visitamos uma vez por semana e onde juramos obedecer regras que esquecemos antes mesmo de chegar em casa. (Qual é a pessoa religiosa hoje que, de fato, vive sua vida, em todos os momentos, de acordo com as regras da sua religião?)
Temos novas religiões, porém, que também tentam explicar, organizar, prescrever toda a atividade humana: marxismo, psicanálise freudiana, método científico, biologia evolutiva, para citar só algumas das minhas preferidas.
Vale a pena reiterar: nesse texto, as palavras “ideologia” e “religião”, além de serem usadas como sinônimos, não têm uma conotação negativa. Ou seja, chamar o método científico de ideologia não é, de modo algum, uma crítica.
Entretanto, se ideologia não é algo negativo por definição, isso não quer dizer que não existam ideologias nocivas.
* * *
A sociedade humana é um projeto de imortalidade coletiva, escreveu o antropólogo norte-americano Ernest Becker, em 1975. Criamos comunidades, produzimos arte, fundamos instituições, oramos a deus, porque temos um irreprimível e incontrolável medo de nossa própria morte.
A partir do fim da Idade Média, o pensamento racional iluminista conseguiu minar nossa confiança nas velhas narrativas sobrenaturais que nos sustentavam, mas sem conseguir produzir nenhuma outra teoria igualmente abrangente ou satisfatória.
Ficamos com um vazio dentro de nós.
A História da Humanidade nos últimos séculos é a narrativa de uma busca progressivamente mais desesperada para preencher esse vazio com qualquer ideologia que nos forneça algum alívio, do fascismo ao anarquismo, da psicanálise à tecnofilia, do hedonismo à militância política, do marxismo ao neoliberalismo, do nudismo ao escotismo.
Por enquanto, a religião vitoriosa, de lavada, está sendo o consumismo.
* * *
A força cooptadora do deus-consumo é impressionante.
Ele conseguiu nos convencer, entre outras coisas, que podemos salvar o mundo pelo consumo consciente.
Então, continuamos hiperconsumindo loucamente, mas agora são bananas orgânicas fair-trade e ovos free-range, atum dolphin-free e palmito não da mata atlântica, cada produto sempre com uma longa e inspiradora história na embalagem, sobre a família que planta aquele café na encosta da mesma montanha há três gerações, blá blá blá, e, pior, pagamos preços obscenamente inflacionados e ainda ficamos felizes e plenas, satisfeitas de estar contribuindo para salvar o mundo!
Ou seja, como brincou o filósofo esloveno Slavoj Zizek, em 2009, temos o prazer de comprar o produto e ainda compramos junto a redenção de nossa culpa consumista.
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No Brasil de 2015, um governo de esquerda prega o desenvolvimentismo econômico; promove o Bolsa-Família no mérito de gerar mais consumo; abaixa os impostos para aumentar a produção industrial, especialmente de automóveis; desaloja comunidades indígenas para fornecer mais energia para essa tal indústria que vai crescer em função do maior consumo, gerando assim um ciclo interminável de mais consumo e mais crescimento gerando ainda mais consumo e ainda mais crescimento.
Será essa a única saída?
Será que a única maneira de ajudar nossas pessoas cidadãs em situação mais economicamente vulnerável é trazendo-as ao mesmo circo de consumo que já está destruindo o planeta?
A pobreza nunca será eliminada gerando mais e mais desejos para ser satisfeitos pelo consumo de mais e mais bens e serviços. Mesmo se o consumismo conseguir eliminar a pobreza material, ele terá apenas criado uma pobreza existencial ainda pior, mais profunda, mais aguda.
Quando nos definimos e somos definidas como “consumidoras” estamos nos colocando em uma situação insustentável, porque o consumo nunca preencherá a necessidade que ele mesmo cria: o produto que fatalmente nos fará felizes é sempre o próximo que ainda não compramos.
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Ninguém questiona a necessidade de trazer condições de vida dignas a todas as pessoas.
Mas qual é o limite entre, de um lado, urbanização, saneamento básico, cultura, saúde e educação… e, do outro lado, ter acesso ao novo iPhone e a cem canais de TV a cabo?
Seria obsceno uma pessoa privilegiada como eu pontificar a pessoas recém-saídas da pobreza sobre o que devem ou não consumir.
Mas eu interpelo sim, em primeiro lugar, o governo, que está conscientemente implementando políticas públicas para promover um consumo desenfreado (por que estimular a produção de automóveis e de combustível, e não de bicicletas, por exemplo?), e, em segundo lugar, outras pessoas privilegiadas como eu, que dão o tom do consumismo desenfreado da nossa sociedade.
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Em minha vida, adotei a simplicidade voluntária. Não porque acho que assim vou salvar o mundo, mas simplesmente porque isso simplifica a minha vida e, assim, libera meu tempo e minha energia para melhor lutar por outras mudanças sociais.
Além disso, uma postura de simplicidade voluntária também dá o exemplo para outras pessoas privilegiadas: sim, é possível viver sem carro, sem celular, sem internet em casa, sem comprar roupa, sem comer fora.
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Conseguir tudo o que desejamos (um novo carro, um novo iPad, um novo marido, etc) gera apenas mais e mais novos desejos infinitos.
Buscar pela melhor maneira de preencher nosso vazio (com mais consumo, mais ego, mais sucesso, mais ascetismo, mais religião, mais sexo, mais livros publicados, mais curtidas no meu post, etc) apenas faz com que pulemos de alternativa em alternativa, em uma infinita insatisfação.
Se o buraco não tem fundo, tentar preenchê-lo não resolve.
Talvez a solução seja simplesmente aprendermos a conviver em paz com esse vazio que define a condição humana.
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Transcendendo a nossa ideologia
O grau de controle de nossa ideologia sobre nós é diretamente proporcional ao nosso narcisismo e autocentramento.
Por definição, é impossível não enxergarmos o mundo através de nossa ideologia. Estamos todas funcionando dentro de nossas pequenas prisões mentais, quase incapazes de enxergar por fora das grades.
Entretanto, quanto mais egocêntricas e autocentradas, mais aferradas estaremos à nossa própria ideologia e mais difícil será enxergarmos o mundo através e além das barras da nossa prisão. Mais difícil será até mesmo apreendermos a existência de qualquer fato, evento, pessoa, ideia que coloque em risco, questione, critique, interpele nossa religião.
A única maneira de lutar contra isso é ativamente cultivando uma postura de não-conhecimento.
No momento em que nos colocamos na posição de pessoas-que-sabem, estamos em um beco sem saída. Protegidas no castelo do nosso conhecimento, atrás das muralhas da nossa sabedoria, paramos de ouvir, paramos de enxergar.
Quanto mais sabemos, menos empáticos e flexíveis seremos.
Quem sabe não ouve, nem enxerga: quem sabe ensina e aconselha.
Então, uma solução possível e imperfeita para conseguirmos enxergar além das barras da prisão da nossa ideologia é desapegarmos do nosso conhecimento.
Não jogar fora tudo aquilo que sabemos, mas jogar fora nosso apego por tudo aquilo que sabemos.
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Ao interpelar nosso conhecimento, verdades desagradáveis podem surgir:
Afinal, de onde veio nosso conhecimento? A quem ele realmente pertence? Como sabemos o que sabemos? Será que realmente sabemos o que sabemos?
Mês que vem, esse será o tema da Prisão Verdade.
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Notas bibliográficas & pessoais
Abaixo, alguns dos livros citados no texto. Quando o livro já tiver saído no Brasil o título estará em português. A data é sempre a da primeira publicação original.
Para quem não gostou de eu ter incluído “método científico” na minha lista de ideologias/religiões, recomendo ler o brilhante A estrutura das revoluções científicas (1962), de Thomas Kuhn, sobre o processo ideológico do progresso científico.
A definição de ideologia de Althusser está em Aparelhos Ideológicos de Estado (1970); a de Barbara Fields, em Racecraft: The Soul of Inequality in American Life (2012).
As definições de religião vieram de E. B. Taylor, em Cultura primitiva (1871); Emile Durkheim, em Formas elementares de vida religiosa (1912); Trevor Ling, The Buddha. Buddhist civilization in India and Ceylon (1973); Stephen Batchelor, Budismo sem crenças (1997).
A “aposta de Pascal” está na seção 233 do seu livro póstumo Pensamentos (1669).
Citei de memória a tal crônica do Veríssimo, mas não consegui encontrá-la de jeito nenhum. Se alguém souber qual é e em qual livro está, por favor, me avise e eu incluo aqui.
A frase do dinamarquês Soren Kierkegaard sobre a fé no Absurdo está em Post-scriptum final não-científico às migalhas filosóficas (1846). Tão sincrético que quase parece brasileiro, Kierkegaard conseguiu a façanha de ser não apenas cristão mas também o primeiro existencialista. É um dos pensadores mais ensandecidamente originais da história humana.
Ernst Becker diz que a sociedade é um projeto de imortalidade coletiva em seu genial Escape from evil (1975)
A subseção “A religião do consumo” deve muito, e parafraseia bastante, o livro The great awakening (2003), de David R. Loy, em especial os capítulos I e II, “Buddhist social theory?” e “Buddhism and poverty”. Loy é daquelas pessoas com quem concordo com cada palavra.
A tirada de Zizek está em Primeiro como tragédia, depois como farsa (2009).
A subseção “Transcendendo nossa ideologia” deve muito ao mestre zen Bernie Glassman e ao seu trabalho de vida, em especial o livro Bearing Witness: A Zen Master’s Lessons in Making Peace (1997). Um dos votos de sua ordem, dos pacificadores zen, é exercer o não-conhecimento. Esse também será um dos futuros exercícios de empatia que estou publicando aqui no PapodeHomem.
O texto da Prisão Religião depende muito das minhas leituras sobre o darma. Pois, apesar de ser ateu e não acreditar em nada sobrenatural, me considero sim uma pessoa muito religiosa. Frequento um templo religioso quase todos os dias, onde pratico rituais religiosos milenares e me prostro diante de um altar religioso. Além disso, contribuo mensalmente com parte da minha renda para a manutenção do templo e dedico várias horas da minha semana fazendo trabalhos domésticos voluntários nas suas dependências.
Por quê?, você pergunta.
Minha única resposta seria te dar um abraço.
Três avisos importantes sobre meus textos
Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);
Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);
E são sempre todos rigorosamente ficcionais. (Ou não: Alex Castro não existe, só o texto importa. Em caso de dúvidas, consulte minha biografia do meu site pessoal.)
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O encontro “As Prisões”
Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.
Agora, estou promovendo o encontro ”As Prisões” por todo Brasil. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.
O encontro “As Prisões“ é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 15 horas.
O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)
Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.
Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.
Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso, veja aqui.
Ao longo de 2014, todas As Prisões serão enviadas primeiro, com exclusividade, às pessoas assinantes do meu newsletter e, então, publicadas aqui no PapodeHomem. Confira as que já foram publicadas.
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Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.