O dinheiro não é o vilão. Ele nos permite viver, realizar nossos sonhos, e até salva nossa vida quando precisamos. Ter dinheiro é uma das formas mais concretas de ser livre. Entretanto, se o colocamos no centro de nosso universo, ele pode sim se tornar uma prisão.
Viver é mais barato do que parece
Cresci menino rico de condomínio da Barra da Tijuca. Depois, a família teve a sensatez de falir, uma experiência educacional que recomendo para todas as pessoas que já foram ricas.
No mundo onde me criei, água não era apenas água: era uma Perrier, garrafinha verde, de uma fonte naturalmente gasosa no sul da França; o relógio de pulso não era só um relógio de pulso, era um Hublot, lindo, discreto, minimalista, e assim por diante, da água mineral ao relógio de pulso, do carro à camiseta.
Para uma criança, bastava um pouco de extrapolação e uma aritmética básica para concluir que viver era muito, muito caro. Eu precisaria ganhar uma quantidade abissal de dinheiro só para continuar vivendo como sempre tinha vivido. Só para ficar tudo igual.
Buscando essa quimera, caí de cabeça na primeira bolha da internet. Fui a seminários de web marketing, fiz business plans, levantei seed money com venture capitalists, fundei a minha própria startup dotcom onde era o Chief Visionary Officer... e fali.
Nessa época, minha família já não estava mais em condições de me ajudar financeiramente. Vendi o carro (e o Hublot) para pagar as dívidas e fiquei a pé pela primeira vez desde os dezessete anos. Depois, meti o rabo entre as pernas e fui morar com a esposa em um quarto na casa da minha mãe, pagando aluguel.
Então, no primeiro domingo de 2002, abri os classificados e fui tentar descobrir um jeito de ganhar dinheiro. Aparentemente, minha única habilidade com demanda de mercado era falar inglês fluente, fruto da minha caríssima educação de primeiro mundo. Passei dois meses distribuindo currículos até receber a primeira resposta.
Eu nunca tinha andado de ônibus na vida. Segundo as histórias que circulavam no meu mundo, sempre contadas por pessoas que também nunca tinham andado de ônibus, você era obrigatoriamente assaltado a cada dez minutos, ou algo assim. Um horror.
E, agora, aqui estava eu pegando nove ônibus por dia, para dar duas ou três aulas em pontos diferentes da cidade.
Foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido.
Percebi que não precisava ter medo da vida. Que não eram necessários quinze mil reais por mês para ter uma vida digna e ser feliz.
Com poucas horas de aulas em dias alternados da semana, eu já conseguia ganhar o suficiente para pagar as contas básicas. Se e quando eu precisasse de mais, bastava encher progressivamente os outros horários.
Em finais de 2002, eu e minha esposa já estávamos em nosso próprio apartamento alugado. Cozinhávamos em casa, andávamos de ônibus, baixávamos filmes da internet, tirávamos livros da biblioteca, íamos à praia, transávamos muito.
Ela fazia mestrado de manhã e trabalhava de vendedora de loja de roupas à tarde e à noite. Eu chegava no shopping algumas horas antes de ela sair, ficava na mega livraria lendo de graça aqueles novos romances brasileiros de cento e poucas páginas que se termina rapidinho, e voltávamos juntos pra casa.
Não consumíamos quase nada e, mesmo assim, apesar disso, talvez por isso, éramos felizes. Mais importante, éramos viáveis.
Algumas das pessoas mais felizes que conheci eram ex-ricas, escreveu uma vez o psicólogo Flávio Gikovate. Nossa sociedade é tão obcecada por dinheiro que pode ser libertador perdê-lo: percebe-se, de uma vez só, o quão pouca falta ele faz.
Para mim, essa certeza de que conseguia me sustentar sozinho, com esforço mínimo, foi talvez a revelação mais importante da minha vida.
Eu não precisava me escravizar dez horas por dia em um escritório sem janelas, realizando os projetos de outras pessoas, trocando a energia vital da minha juventude por água Perrier e por relógios Hublot.
Percebi que vender minha alma ao mercado de trabalho não era o único modo de viver.
Que se eu abdicasse da água Perrier e dos relógios Hublot, ou mesmo de água Petrópolis e de relógios Swatch, eu poderia trabalhar menos e ter mais tempo livre: criar mais, viver mais, dormir mais, transar mais, ir mais à praia.
E também ser um melhor filho, um melhor marido, um melhor amigo. Ouvir mais, ajudar mais, me doar mais.
Hoje, bebo água de um filtro de cerâmica São João e, depois de vender o Hublot, nunca mais usei relógio.
Viver é barato, nossas escolhas é que são caras
Minha cidade conta com uma rede extensiva de transporte público, com passagens razoavelmente baratas. Se mesmo assim eu escolho ter carro, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.
O Estado brasileiro me oferece (não de graça, mas em troca dos meus impostos) saúde e educação, do nascimento à morte. Se mesmo eu escolho pagar de novo por educação ou saúde particular, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.
Existem diversas bibliotecas públicas na minha cidade, uma na minha própria rua, cheias de livros que ainda não li e provavelmente até gostaria. Se mesmo assim eu escolho pagar por um livro, pelos preços absurdos que nosso mercado editorial cobra, só pra matar minha vontade de ler esse livro agora, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.
Se escolho pagar quase trinta reais pra ver no cinema um filme que poderia ver na TV aberta ou baixar de graça no computador, porque estou sentindo desejo de ver esse filme agora, então, sim, a minha vida vai ser mais cara.
Os exemplos poderiam se multiplicar infinitamente, mas só porque o capitalismo inventou maneiras infinitas de encarecer minha vida, de me fazer querer pagar por algo que poderia ter de graça, só porque alguém enfiou na minha cabeça (dica: publicidade) que preciso ter aquilo, agora, daquele jeito!
* * *
Uma leitora me escreveu, indignada:
"Você não entende, Alex! Eu escolhi sim pagar um plano de saúde particular mas é só porque o SUS está um caos!"
Mas escolher pagar um plano de saúde particular porque "o SUS está um caos" é a definição de escolha.
Em toda e qualquer escolha, em maior ou menor grau, escolhemos uma opção por considerar as outras piores.
Eu não estou afirmando que o SUS é “bom” ou que “funciona como deveria” e nem que é “ruim” ou que “não funciona como deveria”. Essa é uma opinião subjetiva que depende dos critérios e expectativas e experiências de vida de cada pessoa.
Estou afirmando que escolher um plano de saúde pago por considerar que "o SUS está um caos" não faz dessa escolha menos uma escolha. Considerar que "o SUS está um caos" é somente a razão dessa escolha.
Por outro lado, muitas pessoas que usam o SUS não escolheram usar o SUS: elas usam o SUS porque, de fato, concretamente, não tem dinheiro mesmo para pagar saúde particular.
No Brasil, as duas principais classes sociais são as pessoas-que-têm-escolhas e as pessoas-que-não-têm.
* * *
Não estou criticando as pessoas que escolheram ter carro, contratar plano de saúde, ou comprar livros. (Já fiz tudo isso.) Estou somente dizendo que essas escolhas são escolhas.
Portanto, se eu escolher encarecer minha vida, não faz sentido então reclamar que "a vida" está cara: é a minha vida que está cara, por causa das escolhas caras que eu fiz.
Mas tudo que foi escolhido também pode ser desescolhido.
Sobre nossas escolhas
Vivemos em um país injusto e desigual.
Então, quando falamos em escolhas, não podemos nunca esquecer do seguinte: talvez a grande divisão da nossa sociedade seja entre as pessoas que têm todas as escolhas e as pessoas que têm escolhas bastante limitadas.
"Meritocracia" e "liberdade de escolha" são dois dos grandes mitos que nossa direita gosta de propagar para justificar e proteger seus privilégios.
Para as pessoas privilegiadas, ignorando sempre que nem todas as pessoas tiveram as mesmas possibilidades de escolha que elas, é muito fácil e muito tentador apontar para as pessoas oprimidas e exploradas... e afirmar que elas são oprimidas e exploradas porque escolheram ser assim! Porque não trabalharam duro!
Então, esse aqui é um texto escrito por uma pessoa privilegiada, que teve todas as escolhas e possibilidades, para outras pessoas privilegiadas que também tiveram todas as escolhas e possibilidades.
Mas, enquanto estamos aqui falando entre nós dentro de nossa bolha de privilégio, é importante não esquecer que estamos cercados de pessoas que não tiveram as mesmas vantagens que nós.
Minhas contas mensais
No momento, minha única renda fixa são R$800 que ganho por textos que publico na internet, mais cerca de R$200 que recebo de doações periódicas das minhas mecenas-assinantes.
Todas as outras entradas possíveis são irregulares, incertas e imprevisíveis: vendas de livros ou de encontros, doações isoladas das mecenas, alguma turista querer ficar no meu apartamento. Em qualquer dado mês, elas podem facilmente não render nem um único real.
Já as despesas fixas são, aproximadamente: R$350 de condomínio, R$100 de gás/luz/telefone fixo, R$500 de supermercado (inclui produtos de banho, limpeza, ração do Oliver), R$100 de transporte (inclui metrô, ônibus, táxi).
Anualmente, pago cerca de R$100 de IPTU. Troco de computador nos anos pares (cerca de R$1.500) e de óculos nos ímpares (cerca de R$1.000), duas compras importantes, caras e já programadas. São as únicas que faço parceladas no cartão.
Não pago aluguel pois tenho a felicidade de ter herdado um apartamento, de forma completamente inesperada, em 2011. Mas eu não estaria pagando aluguel de qualquer jeito. Se esse apartamento não tivesse caído do céu, eu estaria morando, em definitivo e de favor, com a minha leitora e quase-irmã Sônia, que cuida do Oliver quando viajo, que me hospeda quando aparecem turistas para passar uns dias no meu apartamento, que agora hospeda até a minha companheira, que largou o aluguel e foi morar com ela. (Segundo a Sônia, a primeira versão da Prisão Dinheiro, publicada em 2008, mudou sua vida e ela se sente em dívida comigo. Eu sempre digo que ela não me deve nada, claro, mas aceito graciosamente o mecenato.)
Minhas despesas fixas são essas. O que preciso pra viver é isso.
Todo o resto ou é luxo ("") ou é emergência — só nos últimos dois meses, minha geladeira pifou e precisei comprar uma nova (R$700) e o meu cachorro Oliver fez cocô com sangue ($400).
Ou seja, com cerca de mil reais por mês, eu vivo e vivo bem, com todas as minhas necessidades básicas preenchidas. Morando sozinho. Na inflacionada zona sul do Rio de Janeiro.
Se morasse com a família ou com uma companheira, em uma cidade ou bairro mais barato, poderia me bastar por muito menos. Em uma emergência, ainda daria pra apertar mais o cinto e abaixar esse número: diminuindo os gastos com supermercado e transporte, comendo mais frugalmente, andando mais a pé.
Mas e o resto?, você poderia perguntar. Viver não é apenas sobreviver. E os prazeres da vida?
Sexo é de graça. Passear em um parque, nadar no oceano, ver o pôr do sol no Arpoador, tudo de graça. Livros, eu pego na biblioteca, leio os que já tenho, ou baixo em pdf. Exercícios, faço em casa ou na praia. Internet, uso em qualquer café, quiosque, shopping center. Filmes, também baixo pela internet. Saúde, o Estado fornece de graça, inclusive meus remédios de pressão e diabetes. Arte, sempre tem peça, show, exposições gratuitas.
(Na verdade, sem ser excessivamente explorador, daria até para comer todas as refeições na casa das pessoas amigas. Henry Miller, em sua fase mais pobre de autor marginal, fazia ma escala de almoço com dezenas de pessoas conhecidas. Com um mínimo de quinze, que nem é tanta gente assim, já dá pra marcar de aparecer na casa de cada uma em, digamos, terças-feiras alternadas e, assim, manter o papo sempre em dia e não explorar demais nenhuma única pessoa. Em troca, Henry se comportava como o artista marginal divertido e interessante que esperavam que fosse. Devia ser um excelente negócio para todas as pessoas envolvidas: eu com certeza alimentaria Henry Miller duas vezes por mês.)
Não estou dizendo que essa vida é desejável ou detestável, bonita ou feia, digna ou indigna, nenhum adjetivo positivo ou negativo.
Estou dizendo que é possível.
Para mim, é uma grande tranquilidade saber que me sustento com mil reais.
Então, se vivo e me mantenho com mil reais, sem me faltar nada de necessário, isso quer dizer que viveria muito bem (luxuosamente até) com dois mil reais.
Na prática, esse é o número que uso. Considero que minha despesa mensal é de dois mil reais e meu atual objetivo financeiro é nunca gastar mais que isso por mês.
Sendo bem sincero, me sinto até rico. Afinal, é o dobro dos meus gastos fixos. Mil reais de lambuja. Dá pra comprar uma geladeira novinha, o imprevisto dos imprevistos, e ainda ficar dentro do orçamento. Dá pra comprar aquele livro que não resisti. Dá pra pegar um táxi no dia em que estou carregando peso e está chovendo. Em suma, dá pra ser flexível na frugalidade.
O que sobra eu economizo.
Como sanitizei as minhas finanças
Escuto muito:
"Ai, Alex, você não acha que isso que você fez foi meio radical?"
E respondo:
"Claro que não. Acho que foi totalmente radical."
Sempre que passei por catástrofes financeiras (e não foi só uma), essas dicas me ajudaram a criar uma nova cultura de consumo, menos imediatista e mais ponderada. São dicas de guerra.
Hoje, por não ser mais necessário, já não aplico muitas delas.
1. — Cortei tudo o que podia ser cortado
Tudo mesmo. Terapia, aula de dança, assinatura de site pornô, TV a cabo e revista semanal. Depois, a medida em que fui sentindo mais falta de uma ou de outra coisa, reativei alguns serviços.
Ou seja, joguei o ônus do trabalho em refazer o serviço, não em cancelar. Na despesa e não na economia.
Muitos dos meus antigos gastos fixos não tinham nada de fixos: eram puro hábito, não fizeram a menor falta.
Ao cancelar tudo, as prioridades ficam mais claras.
Uma pessoa pode perceber que, sem a TV a cabo, se sente mais livre e mais bem-disposta. Outra, que não consegue dormir sem os documentários de história natural do National Geographic.
Não existe resposta certa. Cada pessoa sabe de si.
Ao cancelar tudo, descobrimos quais são as coisas que realmente fazem falta e quais só estavam ocupando espaço e gerando despesa.
2. — Deixei os cartões em casa
Levava o dobro de dinheiro vivo que precisaria em um dia comum e, dependendo da época, um cheque em branco dobradinho no fundo da carteira.
Fazendo minhas compras em dinheiro, eu via as notas fisicamente sumindo. Sua perda era algo real, concreto, visível, táctil.
Por outro lado, compras com cheques ou cartões são virtuais, abstratas, traiçoeiras. Os gastos se acumulam discretamente, sem percebermos. (É por isso que os shopping centers não têm janelas: para não vermos o tempo se escoando lá fora.)
Um dia, um cheque voltou e liguei pro meu gerente de banco, indignado:
"É impossível, tenho limite de dez mil no cheque especial!"
Dez mil me parecia um valor altíssimo, impossível de ser alcançado.
Mas tinha sido alcançado.
O bom de bater no chão é que a gente acorda.
3. — Nunca mais comprei nada por impulso.
Eu experimentava a roupa, namorava o livro, visualizava o sofá na minha sala... e ia embora. Saía correndo da loja e não olhava pra trás.
Antes mesmo de chegar em casa, eu já tinha esquecido quase todos aqueles irresistíveis objetos de desejo. De longe, me pareciam tão inúteis, tão desnecessários. Me lembro de pensar com alívio: "ainda bem que não comprei aquela porcaria!"
Alguns, entretanto, continuavam na minha cabeça. Nesses casos, valia a pena o trabalho de voltar até a loja e comprar.
E, se não valer, é porque não valia o custo de comprar.
O ônus da ação era do ato de gastar.
4. — Criei uma medida de conversão.
O real é muito abstrato, uma convenção que, no fundo, como todas moedas, não significa nada — ainda mais se você faz a maioria das suas compras virtualmente, com cheques ou cartões.
Boas medidas de conversão precisam ser concretas: ou uma hora de trabalho, ou alguma coisa que se compre com frequência.
No meu caso, o cursinho de inglês me pagava sete reais pela hora de aula. Para mim, nada poderia ser mais concreto, mais real, mais vivido do que aqueles sessenta minutos ensinando o present perfect.
Então, quando eu via a belíssima nova edição de Moby Dick, da Cosac Naify, por cem reais, ficava cheio de tesão pra comprar, mas pensava:
"Será que essa edição é realmente tão incrível assim que vale mesmo a pena trabalhar por quinze horas pra comprar um livro cujo texto eu posso ler de graça na internet, ou pegar na biblioteca ou emprestar de algumas das minhas trocentas pessoas amigas que devem ter?"
Assim, eu conseguia desmascarar os luxos e os supérfluos (que adoram se disfarçar de "necessidades urgentes") e, assim, colocava as minhas verdadeiras prioridades em perspectiva.
Outra boa medida de conversão é algo que se precise comprar sempre e que seja essencial para a vida.
Na época, minha principal fonte de proteínas era filezinho de peito de frango congelado. Por coincidência, o quilo custava os mesmos sete reais.
E eu pensava:
"O que vale mais a pena: a nova edição de Moby Dick ou quinze quilos de filezinho de peito? Por quanto tempo eu posso ficar comendo esses quinze quilos de frango sem me preocupar mais com comida? Afinal, eu vou ler mesmo esse livro? Se eu comprar quinze quilos de frango, eu vou comer tudo com certeza. Afinal, o que é mais importante? Quais são as minhas prioridades?"
Algumas amigas achavam bizarro eu converter o preço de tudo para quilos de frango ("sério, não vou dar dez quilos de filezinho de peito pra ver essa banda tocar, não!") mas o que importa é ser uma medida de conversão que faça sentido, que torne os gastos mais reais, mais concretos, mais mensuráveis.
5. — Comecei a anotar todos os gastos em uma planilha.
Saber o que estamos fazendo é sempre bom.
Para mim, foi importante descobrir exatamente por quais orifícios eu estava sangrando dinheiro. Por exemplo, minhas diversas paradas para lanches, sucos, cafés, etc, custavam mais do que as minhas refeições propriamente ditas.
Além disso, muitas vezes eu tinha vergonha (logo eu, a pessoa mais sem-vergonha do mundo) de gastar só para não ter que anotar depois e, assim, articular e imortalizar aquela pequena falta de controle. No mínimo, fazia com que eu pensasse mais sobre o que estava comprando.
Mas é importante não exagerar a importância desse passo.
Saber o que estamos fazendo, por si só, não resolve nada.
É como fazer exame de sangue todo ano, ver minha taxa de glicose subindo, e continuar comendo doce. É como aquele cara que estava estacionando e pediu ao outro, "avisa a hora que bater", e daqui a pouco vem o estrondo da porrada e o grito lá detrás: "quatro e quinze!"
Tenho uma amiga que anotava fastidiosamente todas as porcarias inúteis que comprava mas era incapaz de parar de comprá-las. Quando conversávamos sobre isso, ela ainda tinha a cara-de-pau de puxar seu caderninho e mostrar:
"Mas como pode, Alex? Olha: eu anotei TUDO!"
O caderno, naturalmente, era um moleskine.
6. — Passei a viver a vida à vista
Só usava dinheiro vivo ou, no máximo, cartão de débito.
Cortei meus cartões de crédito. Joguei fora os talões de cheque. Desabilitei o cheque especial da conta bancária. Nunca fiz crediário ou financiamento.
* * *
O cheque especial, além de ter juros altíssimos, é psicologicamente traiçoeiro. Se tenho um limite de mil reais e JÁ estou em quinhentos negativos, é difícil não pensar que AINDA tenho mais quinhentos pra gastar. Naturalmente, SEI que é o contrário, mas e daí?
Assim como as tarefas tendem a se alongar até preencher todo o tempo disponível, as dívidas também tendem a aumentar até preencher todo o limite de crédito.
Pagar minha dívida do cheque especial tornou-se a minha prioridade de vida. E, assim que cheguei ao zero, pedi para o meu gerente de banco cancelar meu cheque especial.
* * *
Uma amiga uma vez me perguntou, em tom de medo
"Mas, Alex, cancelar o cheque especial? E... e se eu tiver uma emergência?"
Bem, respondi, se você tiver uma emergência, um dos piores modos de resolvê-la é se endividando.
Você pode usar suas economias, apelar para a família ou pessoas amigas, vender alguma coisa, pegar mais um frila, ser criativa, pedir esmola em uma esquina movimentada com um cachorro fofo aos seus pés, literalmente qualquer coisa. No fim da lista, endividar-se no cheque especial.
Digamos que você tinha um limite de mil reais no cheque especial, cancelou o maldito e agora tem uma emergência? O que fazer?
Eu diria então que o seu banco certamente lhe emprestaria no mínimo esses mil reais, talvez mais, a juros menores.
A vantagem é que agora o processo é ativo e não automático (você tem que efetivamente correr atrás do empréstimo) e você não vai ter aquela falsa impressão (que o cheque especial sempre passa) que esse dinheiro é "seu".
Porém, concluí, se você me diz que todo mês tem uma emergência que te faz pegar dinheiro emprestado (e o cheque especial obviamente é esse estado permanente de emergência), eu diria que você está em seríssimos lençóis e precisa mudar radicalmente seu estilo de vida. Pra ontem.
* * *
Antigamente, na idade da pedra hiper-inflacionada, os cheques eram imprescindíveis. (Em 1993, assim que me formei da escola e logo antes do Plano Real, eu gastava um talão a cada duas semanas.)
Hoje, a não ser para compras parceladas e pré-datadas, duas coisas que nunca faço, os cheques perderam totalmente sua função. Só servem para confundir nossa vida financeira: a última coisa que quero é ter dinheiro saindo de repente da minha conta.
Fiquei no SPC por cinco anos, mesmo depois de completamente sanitizar minhas finanças, por causa de um cheque pré-datado de míseros cinquenta reais que minha ex-mulher passou e cujo credor eu nunca mais consegui encontrar.
* * *
Crediários e compras parceladas são duas coisas que nunca, nunca, nunca se deve fazer.
Recentemente, voltei a parcelar no cartão de crédito somente as minhas duas compras mais vultuosas e mais regulares: computador e óculos.
Mas, via de regra, se não tenho dinheiro pra comprar à vista, então é porque não posso comprar.
Crediários e compras parceladas são jeitos traiçoeiros de me convencer que de fato posso pagar (e mais caro, ainda por cima) por coisas que de fato não posso pagar.
Se quero comprar e não tenho dinheiro, faço um bom e velho "crediário prévio", ou seja, todo mês economizo um pouquinho e, quando juntei o suficiente, compro à vista e peço um desconto. (A geladeira que precisei comprar de improviso esse mês teve desconto de 12% à vista.)
Naturalmente, se não consigo economizar pra comprar aquela TV tela plana que tanto desejo porque sempre acabo usando o dinheiro para pagar a conta de luz que está pra vencer, então, sinto muito, é porque realmente não posso comprar uma TV tela plana, nem se fosse parcelado.
Aliás, se tivesse comprado parcelado, estaria hoje ainda mais no vermelho do que antes.
7. — Percebi que viver no vermelho não era sustentável
Para quem deve dois mil no cheque especial, é insano gastar até mesmo dois reais comprando o jornal do dia.
Quem deve dois mil no cheque especial não tem dois reais pra comprar o jornal do dia.
Para todos os fins práticos, eu estaria me endividando, a juros escorchantes de 12% ao mês, pra comprar um jornal.
E comecei a me perguntar: vale mesmo a pena me endividar pra comprar um jornal? Pra almoçar? Pra ir ao cinema?
Enquanto existiu minha dívida no cheque especial, eu, realmente, de fato, pra todos os fins e efeitos, não tinha dinheiro pra nada.
Como não podia deixar de sobreviver, eu era até obrigado a me endividar um pouco mais pra pagar as contas básicas. Mas só.
Todo o resto foi cortado sumariamente.
Para quem está pagando os juros escorchantes do cheque especial é loucura gastar dinheiro em qualquer outra coisa que não seja pagar a maldita dívida.
8. — Percebi que nem toda dívida precisava ser paga
Se uma amiga me emprestou mil reais durante o maior aperto da minha vida (valeu, Renata!), pagá-la de volta é uma questão de honra.
Se devo mil reais pro banco, bem, posso estar certo que ele não está perdendo o sono por isso. Aliás, ele não tem sono. Ele não é uma pessoa. Ele não se ofende, não se magoa, não fica decepcionado comigo:
"Poxa, não acredito que o Alex me deu o calote nessa dívida, não esperava isso dele, ele sempre foi tão bom correntista... chuif..."
Nada que eu possa fazer contra um banco será tão anti-ético quanto, hmm, basicamente tudo que ele faz comigo diariamente só por ter feito a bobagem de abrir uma conta-corrente lá.
(O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?, já se perguntou São Brecht.)
Algumas divídas podem ser perdoadas em troca de parte do valor total à vista. Algumas dívidas (aquelas que não estão crescendo a 12% ao mês) podem simplesmente ser esquecidas e o pior que acontecerá é me colocarem no SPC.
Já me colocaram no SPC. Fiquei lá por cinco anos.
Minha vida mudou em rigorosamente nada.
Acendi a luz, escancarei a porta do armário e... o bicho-papão na verdade era só um ursinho de pelúcia.
9. — Parei de pagar por coisas que conseguia de graça
Alguns dos meus gastos mais aparentemente necessários eram, na verdade, coisas que eu poderia perfeitamente conseguir de graça.
Sim, não seria tão fácil, rápido, cômodo (ou mesmo legal) quanto pagar por elas, mas era de graça.
Por exemplo, se já tenho internet de graça no trabalho ou na universidade, será que realmente preciso pagar pra ter em casa também? Será que não dá pra chegar mais cedo ou sair mais tarde do trabalho/escola e fazer minhas coisas pessoais na internet de lá?
Em minha época de trabalhar em empresa no Brasil ou de estudar nos Estados Unidos, eu fiquei sem internet em casa.
Hoje, independente, voltei a não ter internet em casa: uso a internet de cafés, casas de suco, shopping center, da casa de pessoas amigas.
Até a orla de Copacabana agora tem wi-fi gratuito.
* * *
Não é realmente necessário pagar por academias de ginástica. Dá pra conseguir o mesmo efeito correndo, pedalando, fazendo exercícios no parque ou na orla, ou até mesmo em casa.
Com um pequeno investimento inicial (muitas vezes pelo mesmo preço de uma ou duas mensalidades da velha academia), compra-se pesos, barras e aparelhos que permitem fazer em casa quase tudo o que se fazia na academia. Vários sites na internet ensinam como fazer essa transição.
Além disso, várias pequenas mudanças no dia-a-dia têm um efeito cumulativo enorme.
Não pegar mais elevador. Usar a escada pra tudo. Fazer a pé tudo o que pode ser feito a pé.
(Eu caminhava uma hora por dia até a minha universidade. Conheço uma amiga que caminha duas. É um momento excelente pra estar sozinho consigo mesmo, meditar, relaxar, economizar.)
Talvez não seja tão prático ou tão cômodo quanto a academia. Talvez exija mais disciplina e autocontrole. Mas é de graça.
* * *
Por fim, parei de pagar por conteúdo que está disponível de graça na internet.
Apoio a pirataria. Se você conseguir ler os meus livros sem pagar, leia. Se gostar, passe adiante. Se mudar a sua vida, visite meu site e faça uma doação. Eu vivo disso e agradeço.
Para um escritor, ser lido é mais importante que ser vendido. Quem é muito lido, será muito vendido.
Uma coisa é doar para artistas independentes que divulgam seu trabalho gratuitamente na rede. (Eu sou um deles: sobrevivo das doações que fazem os meus mecenas. Para doar, visite minha página de mecenato.)
Uma coisa é doar para grupos sem fins lucrativos que produzem e mantém sites e softwares abertos que uso e que melhoram minha vida. (Faço questão de doar para o LibreOffice, o genérico do Microsoft Office, para a Wikipedia e para o software de som e vídeo VLC.)
Porém, quando um grande conglomerado de mídia escolhe disponibilizar seu conteúdo de graça pela internet, eu parto do princípio que foi uma decisão empresarial muito bem pensada e muito bem embasada, que tem como fim último trazer mais lucros aos sócios e acionistas.
Na prática, não estão oferecendo nada de graça: se não estamos pagando é porque o cliente não somos nós.
O cliente são os anunciantes.
Nós somos o produto sendo vendido.
10. — Parei de gastar tanto dinheiro comendo e bebendo na rua
Sentar com pessoas queridas em uma mesa de bar não precisa custar quase nada: já passei longas e prazerosas noites só fumando, ou tomando uma ou duas águas, e deixando menos de dez reais na mesa. Bastava já sair jantado de casa.
Para ficar o dia na universidade, levava uma marmita com um tupperware de comida, frutas, iogurte. Hoje, sempre tenho um saquinho de nozes sortidas na bolsa — muitas vezes, ele me salva de comer porcarias engorduradas.
Quando passei a anotar todos os meus gastos, percebi que almoçar em restaurantes vagabundos tinha um custo desproporcional em relação à qualidade. Pelo custo de três refeições completamente banais, eu poderia ir a um dos melhores restaurantes da cidade e ter uma refeição sublime, memorável, que custaria o triplo mas seria vinte vezes melhor.
Hoje, um almoço de trinta reais é um almoço que eu faria igual ou melhor em casa, por um terço do preço. Não vale a pena.
11. — Parei de comprar livros
Como a maioria das pessoas meio intelectuais meio de esquerda do eixo Morumbi-Leblon, eu também adorava passar na Travessa da Vila mais próxima e gastar centenas de reais em lançamentos — todos com belíssimo projeto gráfico! Então, expunha orgulhosamente meus troféus na estante ou na mesinha de centro... e, no máximo, lia um ou outro.
Mas é obsceno abrir mão de um dinheiro que faria falta em troca de livros que provavelmente não iria ler.
Passei então a comprar um livro de cada vez. E só se ele for passar na frente de todos os outros da minha lista. Só se for pra ser lido agora, assim que sair da livraria, hoje mesmo.
Se é pra comprar a linda, divina, chiquerrérrima nova edição de Moby Dick da Cosac Naify por cem reais só para colocá-la na minha pilha de leituras futuras, entre A Montanha Mágica e Em Busca do Tempo Perdido, é melhor simplesmente colocar uma nota de cinquenta em cada um desses dois livros.
Pelo menos, o dinheiro fica ali, líquido e disponível; pode ser usado como marcador de página; e, se e quando eu finalmente tiver aquela vontade súbita de ler agora, sempre posso pegar as duas notas e correr até a livraria mais próxima.
Não faz sentido comprar hoje um livro que vou acabar lendo apenas daqui a dois anos. Melhor guardar o dinheiro e comprar o livro daqui a dois anos, no dia em que for lê-lo.
* * *
Além disso, existem diversas bibliotecas públicas e universitárias na minha cidade, muitas das quais deixam até retirar livros.
Por exemplo, a PUC-RJ permite que ex-alunos peguem livros emprestados de sua excelente biblioteca se forem membros da Associação de Ex-Alunos — cuja anuidade foi o dinheiro que mais rápido se pagou em toda a minha vida. Durante muitos anos, a Biblioteca da PUC foi, pra todos os fins e efeitos, minha estante particular. Para que eu compraria um livro se poderia pegá-lo na Biblioteca da PUC e renová-lo pela internet indefinidamente?
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Por fim, tenho pessoas amigas cujas estantes são verdadeira retrospectiva das listas dos mais vendidos dos últimos vinte anos: 1968 A Elite da Tropa que Não Acabou Marley, Olga e Eu na Estação Carandiru do Nome da Vinci do Mundo das Comédias da Vida Privada de Sofia da Arte da Felicidade do Queijo do Pai Rico, etc etc.
Então, nunca mais comprei esse tipo de livro.
Não porque sou um intelectual esnobe que estava lendo a edição da Cosac Naify de Moby Dick — que aliás nunca comprei. Mas porque não faz sentido comprar livros que metade das pessoas que conheço tem. Eu pego emprestado.
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Sempre que estou na livraria, com o livro na mão, na ânsia de comprar, eu me pergunto:
"Vou mesmo começar a ler esse livro hoje? Se não hoje, vou ler esse livro alguma vez na vida? Vale a pena gastar sessenta reais em um livro que provavelmente não vou ler? Alguma pessoa que conheço tem esse livro pra me emprestar? Vou ter onde guardar tanto livro? Vou ter dinheiro para pagar a mudança de tantos livros? Vale a pena?"
Acabo só efetivamente comprando os livros que pretendo usar para o trabalho. Que vou sublinhar, rabiscar.
Senão, pego emprestado na biblioteca ou de um amigo, baixo uma cópia pirata, ou mesmo, se for curto, leio inteiro na própria livraria.
Essa é aliás a principal função social da megalivraria de shopping, praticamente um programa de distribuição de renda: eu jamais seria capaz de sentar em uma livraria independente e ler um livro de cabo a rabo.
* * *
Hoje, tenho uma estante só para "livros que estão de saída": aqueles que eu não quero mais e vou vender pro sebo na próxima oportunidade. Nos últimos dez anos, saíram muito mais livros do que entraram na minha casa. Desisti de trocá-los por créditos no sebo porque acabava nunca comprando nada. Quero mais espaço, não mais livros.
Algumas pessoas usam seus livros como os caçadores usavam as cabeças de animais:
"Olha o antílope que eu cacei! Olha o Quarup que eu li!"
Tenho outra política: se já li o livro e não vou ler de novo, passo adiante. Vendo para um sebo. Doo para uma biblioteca. Repasso a um amigo. Qualquer coisa é melhor do que deixá-lo ocioso entre os meus troféus.
Não tem sentido entupir minha casa com livros que não vou mais vai ler.
Entretanto, mesmo depois de doar ou vender quase 90% dos meus livros, ainda assim vivo em uma casa cheia de livros. E, de vez em quando, alguém entra e diz, espantado:
"Puxa, você leu tudo isso?"
E eu respondo:
"Não. Os que eu li já foram embora. Esses são os que eu não li ainda."
* * *
12. — Parei de ter celular
Resisti bravamente ao meu primeiro celular. Só cedi quando fui contratado de assistente particular de um executivo norte-americano montando uma start-up de internet no Rio de Janeiro. Parte integrante do trabalho era estar sempre disponível para ele.
Quando fui morar nos Estados Unidos, também passei o primeiro ano sem celular.
Em São Francisco, eu estava começando a sair com uma pessoa e ela simplesmente não acreditou em mim:
"Pode me dar o número, vai. Juro que não sou grudenta. Não vou ligar todo dia!"
Celular já era tão ubíquo que ela sinceramente achava mais provável eu estar lhe dando o cano do que ter escolhido não ter essa engenhoca.
Minha rotina era simples: eu ou estava em casa, no meu fixo, ou estava em sala de aula, e não podia atender. Então, pra quê celular?
Acabei comprando um celular por outro motivo prático e bem específico: eu não tinha carro e Nova Orleans era uma cidade com transporte público catastrófico, poucos táxis e quase nenhum telefone público. Sem um celular para chamar táxis, minha mobilidade ficava muito restrita.
Ainda assim, estou invicto em smartphones. Se alcoólatra não pode beber, muito menos carregar a garrafa no bolso. Se eu tivesse a internet comigo sempre, nunca mais olharia para cima. Me tornaria mais uma daquelas pessoas incapazes de qualquer interação humana que não seja mediada por um retângulo luminoso.
Enfim, em um dia dos namorados particularmente feliz, voltando de um passeio lindo com a pessoa que eu amo, esqueci o celular no táxi e, talvez influenciado pela alegria, decidi que pronto, não teria mais celular. Chega de andar com essa coleira no bolso.
* * *
Um amigo tentou me convencer que ele precisava sim, e muito de celular.
Mas, conversando sobre sua rotina, apontei que ele passava quase todo o seu tempo ou no trabalho ou em casa (dois lugares onde havia telefone fixo), ou dirigindo entre esses dois pontos (e é proibido usar celular nessa situação). Nos fins de semana, ele passava 90% do tempo em casa, dormindo, vendo TV, fazendo churrasco, brincando com os filhos, transando com a esposa.
Ou seja, ele precisava tanto de celular... exatamente quando?
As poucas horas em que ficava "descoberto" (como se não ter celular fosse um perigo de vida) justificavam mesmo não só o enorme custo financeiro de um celular, mas também, muito pior, o enorme custo psicológico de ter essa coleira sempre no bolso, sempre nos puxando, sempre nos chamando, sempre nos distraindo, sempre nos impedindo de estar plenamente no momento?
* * *
Não estou criticando o celular. Se eu voltar a precisar, eu voltarei a ter.
O celular é uma engenhosa invenção humana. Assim como a diálise. Mas eu também só filtraria meu sangue se fosse realmente necessário.
Hoje, para mim, celular não é.
Mas, outro dia, uma amiga me disse:
"Ai, Alex, você não entende! E se precisarem falar comigo numa emergência?"
E eu respondi:
Quantas vezes, de fato, de verdade, já te chamaram numa emergência? Você tem realmente tantas emergências assim na sua vida?
Pense em quanto dinheiro você gastou em celulares desde que comprou o seu primeiro, quinze anos atrás. Some o custo do aparelho, da assinatura, das ligações adicionais, dos apps que comprou, das capinhas descoladas, etc. (Vai ser um número bem grande.) Agora, divida esse número pelo número de emergências nas quais você salvou a sua vida ou a vida de alguém por ter celular.
No meu caso, não dá pra dividir cinquenta mil reais por zero. Já gastei cinquenta mil reais me preparando para estar preparado para essa pretensa emergência que nunca aconteceu.
Desisti.
Mesmo se eu não conseguisse chegar a tempo para tirar o meu pai da forca, sei que me perdoaria: ele é economista e sabe que, pra mim, economicamente falando, ter celular não faz sentido.
13. — Parei de ter carro
Um dia, na universidade, uma colega me viu chegando de táxi e me chamou de "riquinho". Ela vivia com a mesma bolsa de estudos que eu, mas, como boa norte-americana, tinha carro.
Sentamos para tomar um café e colocamos no papel os nossos custos com transporte: ela e seu carro, eu e meus táxis e carros alugados. Ao final de um ano, eu gastava 30% a menos que ela para fazer rigorosamente as mesmas coisas. Incluindo viagens de fim de semana para cidades próximas.
Naturalmente, meus custos verdadeiros eram muito, muito menores, pois eu me deslocava preferencialmente de bonde ou a pé, e usava táxi somente em alguns poucos trajetos, na chuva, carregando peso, etc. (Em Nova Orleans, havia pouquíssimas linhas de ônibus e não me serviam de nada.)
Um carro econômico, que custou vinte mil reais e roda cerca de quinhentos quilômetros por mês, tem um custo médio mensal de oitocentos reais. Em um ano, são dez mil reais. (Existem vários links e estudos sobre os custos ocultos dos automóveis no Brasil.)
Eu, que durante muitos anos morei na Barra, Itanhangá ou Freguesia e trabalhei e estudei no centro do Rio, rodava só no trajeto casa-trabalho-escola três vezes isso: 1.500km.
Hoje, na minha rua, em Copacabana, uma vaga de carro na garagem custa setenta mil reais. Os custos ocultos de ter um automóvel são numerosos: amortização, leasing, seguro, impostos, manutenção, consertos, gasolina, estacionamento, juros, multas. Pra não falar no custo mais importante: o custo de oportunidade de tudo o que você poderia estar fazendo com dez mil reais por ano.
Se você morar relativamente perto do trabalho e uma corrida de táxi nesse trajeto custar até dezoito reais, você pode ir e voltar do trabalho de táxi todo dia por esses mesmos oitocentos mensais. Sem ter precisado se descapitalizar previamente em vinte mil. Sem custos ocultos e imponderáveis, como estacionamento, roubo, batida e conserto. Sem nunca mais precisar procurar vaga ou fazer baliza.
(Aliás, se você mora somente a dezoito reais de táxi do seu trabalho, também poderia perfeitamente ir de ônibus ou a pé. Aliás, se mora mais longe, poderia vir morar mais perto — justamente para não precisar ter carro e poder ir a pé.)
Alugar carros também é mais barato do que parece. Hoje, em Copacabana, alugo um automóvel totalmente segurado por oitenta reais diários. Nos dias em que tenho compromissos em pontos extremos da cidade, ou em que terei que fazer compras ou transportar volumes, vale mais a pena alugar um carro do que pegar vários táxis. Ainda mais se for pra dividir o custo com minha companheira. Em fins de semana prolongados na serra ou na praia, sai muito mais barato irmos os dois de carro alugado do que de ônibus.
E, naturalmente, o mais barato mesmo é largar de mão o seu elitismo e utilizar o transporte público. Ando muito de ônibus no Rio e em São Paulo. Apesar do que dizem as pessoas que nunca andaram de ônibus, são cidades excepcionalmente bem servidas nesse quesito.
* * *
Mas, afinal, para que serve carro? Qual é a verdadeira função de um automóvel?
Na primeira vez em que fiquei sem carro na idade adulta, eu não me senti preso, isolado, impedido de ir e vir. Nada disso. Pelo contrário, continuei livre e conectado e indo-e-vindo, só tendo um pouquinho mais de trabalho.
Eu me senti emasculado.
Só fui perceber o quanto emasculado eu me sentia quando, nas primeiras vezes em que voltei a dirigir, senti meu corpo ser inundado por uma potência e uma hombridade como poucas vezes experimentara na vida.
Minhas próprias sensações deixaram bem claro para mim qual era a função do automóvel na minha vida.
Hoje, minha necessidade de ir-e-vir eu resolvo com ônibus ou com metrô. Minha hombridade e minha potência vão bem, obrigado.
14. — Vim morar mais perto
Morar perto do trabalho é um dos principais e mais previsíveis indicadores de felicidade na vida de uma pessoa.
Em minha encarnação empresarial, eu morava na Barra da Tijuca, trabalhava no centro do Rio e dirigia no mínimo 75km por dia.
Assim que quebrei, vendi o carro e me mudei para o subúrbio de Jacarepaguá, no mesmo quarteirão do curso de inglês onde trabalhava.
Depois, em Nova Orleans, morava a três quilômetros da universidade, uma caminhada tranquila de uma hora ida e volta todo dia.
É uma questão de estilo de vida. Não quero perder minha vida no transporte. A vida é mais que isso.
* * *
Uma leitora reclamou:
"Alex, você fala como se fosse tudo muito fácil. No lugar onde eu moro, eu simplesmente não tenho como não ter carro!"
Mas então a questão não é nem mais o carro: por que você escolheu morar em um lugar que lhe traz tantas despesas?
De um modo bem concreto, se moro em um bairro barato e afastado onde pago um aluguel baixo (digamos, oitocentos reais), mas que me força a ter um carro (que me custa oitocentos reais de manutenção mensal), eu estaria financeiramente na mesma se morasse em um bairro mais bem localizado, mais perto do meu trabalho, mais perto da vida cultural da cidade, onde o aluguel fosse o dobro mas não precisasse de automóvel.
Aliás, provavelmente estaria melhor: sem perder tanto tempo no trânsito, menos estressado, mais perto das coisas importantes para mim.
* * *
Se moro na zona oeste de São Paulo e aceitaria um trabalho na zona norte, mesmo significando três horas por dia no trânsito, mas não aceitaria um emprego em Limeira, a 130km de distância, porque é longe demais, então claramente tenho um círculo imaginário dentro do qual é factível trabalhar.
O círculo da maioria das pessoas que conheço me parece grande demais. Com os meus valores de hoje, eu diria que o meu antigo trajeto casa-trabalho, entre a Barra e o centro, 75km e três horas diariamente, é tão inviável e intolerável quanto morar em Limeira e trabalhar em São Paulo.
É uma questão de estabelecer prioridades:
Se gosto muito da minha casa e não abro mão dela, será que não vale a pena procurar outro trabalho mais próximo?
Se gosto muito do meu trabalho e não abro mão dele, será que não vale a pena procurar outra casa mais próxima?
* * *
Segundo um estudo do psicólogo holandês Ap Dijksterhuis, ao optar por um trajeto casa-trabalho mais longo, as pessoas estariam cometendo um "erro de ponderação", ou seja, uma escolha na qual não levariam em conta justamente as variáveis mais importantes.
"Suponha duas opções de moradia: um apartamento de três quartos localizado no centro da cidade, a dez minutos do trabalho, ou uma McMansão de cinco quartos no subúrbio, a 45 minutos. ... A maior parte [das pessoas] escolherá a casa maior.
Afinal de contas, um terceiro banheiro ou um quarto adicional são muito importantes para quando os avós vêm passar o Natal, e dirigir duas horas todo dia não é tão ruim assim. ... [Q]uanto mais tempo as pessoas demorar para se decidir, mais importante parece aquele espaço adicional. Vão imaginar todo tipo de hipótese (uma grande festa, jantar de ação de graças, mais um filho) na qual aquela mansão no subúrbio seria uma necessidade absoluta.
Enquanto isso, a ansiedade no trânsito parecerá mais e mais insignificante, ao menos quando comparada aos benefícios de mais um banheiro. Mas... o banheiro extra é um adicional completamente supérfluo durante pelo menos 362 ou 363 dias por ano, ao passo que um longo percurso rapidamente se torna um fardo diário."
Se escolhi morar longe do trabalho por causa de um lindo jardim ou de espaçoso quarto de hóspedes, mas todo dia passo duas horas a mais no trânsito, será que vale mesmo a pena? Duas horas a mais no trânsito todo dia… por um quintal que uso quando? Um quarto de hóspedes útil quantas vezes por ano?
Vale mais a pena morar num apartamento menor perto do trabalho. E, quando der vontade de curtir um jardim, vou ao Jardim Botânico; quando minha mãe visitar, lhe coloco em um excelente hotel.
15. — Comecei a caminhar mais
O artista plástico brasileiro Paulo Nazareth caminhou de Belo Horizonte a Nova York em seis meses e quinze dias. Durante o percurso, para levar um pouco da poeira da América Latina para os EUA, não lavou os pés: só quando chegou no rio Hudson.
A caminhada de Nazareth é parte de um projeto artístico, mas as pessoas costumavam andar enormes distâncias simplesmente para chegar em seu destino. Caminhar é o mais antigo meio de transporte da humanidade. O Homo sapiens chegou nas Américas pelo Estreito de Bhering e, em menos de mil anos, sempre completamente a pé, colonizou todas as Américas. O filósofo e escritor Jean-Jacques Rousseau morava em Genebra e caminhava até Paris — uma distância de quinhentos quilômetros, mas ladeira abaixo. A volta não sei se Rosseau fazia a pé também.
Link Vimeo | Dá pra ir à pé, sim
Eu sempre soube que poderia trocar o carro por metrô, ônibus ou táxi, ou até mesmo bicicleta, mas demorei muito até me dar conta de como é fácil, barato e saudável simplesmente... caminhar.
O tempo que passamos presos no trânsito nos faz superestimar distâncias que, na verdade, são bem pequenas:
Em São Paulo, de Perdizes até a Praça Roosevelt, no centro, são apenas 5km. Da USP para a Paulista, só 6km. Do Parque do Ibirapuera ao Estádio do Pacaembu, outros 6km.
No Rio, em 4km se vai do Mirante do Leblon ao Arpoador. E, com mais 4km, se chega ao Leme, sempre pela orla. Tudo é mais próximo do que parece: do Shopping Rio Sul até o Aeroporto Santos Dumont, passando por boa parte da zona sul, são somente 5km.
Percorrer seis quilômetros de carro na hora do rush pode levar mais de duas horas: caminhando, demora sempre apenas uma. Na primeira opção, você gasta dinheiro, se estressa e acumula gordurinhas na cintura. Na segunda, você economiza e emagrece.
Por que queremos o que queremos?
Pois então. Parei de comprar por impulso. Quando quero muito comprar alguma coisa, eu fico querendo. Quase sempre, passa. Se continuo querendo por vários dias, vou lá e compro. Até aí, tudo bem.
Um dia, comecei a me questionar: por que quero tanto comprar essa merda? Por que tenho esses súbitos desejos de consumir xarope açucarado ou carne prensada entre duas fatias de pão?
Mas quando estou andando pela rua e subitamente penso no meu avô, não é porque meu avô surgiu espontaneamente no meu cérebro, mas porque passei por uma loja onde estava tocando uma música que ele gostava. Às vezes, basta um acorde. Quase sempre, nem percebo de forma consciente.
Ainda assim, fatalmente, alguns passos depois, sou tomado por uma súbita saudade do meu avô.
E, se houvesse uma franquia do meu avô em cada esquina onde eu pudesse saciar esse desejo pelo meu avô por dez reais — ou quinze, com batata grande — eu não conseguiria mesmo resistir.
* * *
Poucas coisas me horrorizam tanto quanto a publicidade.
Existem coisas piores, como genocídio, escravidão, jornalismo esportivo, jiló, mas elas pelo menos são vistas como diabólicas.
O que me horroriza na publicidade é o fato de ela ser socialmente aceita.
Me horroriza existir toda uma disciplina, com universidades, livros, seminários, voltada exclusivamente para nos fazer passar a querer coisas inúteis que antes não queríamos. Me horroriza pessoas aparentemente honestas e decentes escolherem dedicar suas vidas ao aperfeiçoamento da lavagem cerebral. Me horroriza ver essas pessoas usando todas as mais recentes ferramentas da ciência para nos manipular tão abertamente. Me horroriza uma atividade tão intrinsecamente perversa estar no mesmo nível de aceitação popular que construir prédio e operar fígado, ensinar sociologia e jogar futebol.
Há muito tempo, não assisto TV nem ouço rádio, não leio jornais nem revistas. A publicidade é como se fosse uma língua — cuja sintaxe é repleta de dedos apontados e pontos de exclamação, sorrisos brancos e hálito puro — e a minha fluência foi se enferrujando pela falta de uso.
Agora, estou ressensibilizado. Qualquer merchandising me horroriza. Qualquer outdoor me agride.
No vagão das mulheres, no metrô, uma intimidadora lâmina de barbear de dois metros de altura ordena:
"Tenha as pernas mais bonitas do Brasil!"
No mesmo vagão, na TV, uma empresa quer enviar amostras grátis de maquiagem e ainda cobrar por isso:
"Seja uma mulher com muitos produtos de beleza".
Aquilo tudo me é tão chocante que eu olho em volta, buscando o contato visual com alguém, buscando por outra passageira tão indignada quanto eu, buscando com uma interlocutora para dizer:
"Caralho! Uma lâmina de barbear gigante dando ordens sobre nossas pernas! Você reparou na violência? No autoritarismo? Na ameaça velada?"
Mas não. As pessoas estão todas tranquilas e normais, esperando chegar a próxima estação. Nada ali é estranho ou fora do comum. Não se sentiram agredidas. Em um único comercial do Big Brother, veem meia dúzia de anúncios mais violentos e mais autoritários. Nem entenderiam o meu horror.
Vivo em um mundo onde as cenas cotidianas que mais me enchem de horror são vistas com normalidade por quase todas as pessoas a minha volta. A exploração, a desigualdade, o racismo, a transfobia. Tudo aceitável e dentro dos padrões do bom funcionamento da sociedade.
Então, sinto que estou sempre escrevendo textos de horror.
Talvez essa seja a melhor definição de arte engajada: tornar contagioso o horror.
"Ah, Alex, viver assim é muito fácil! Na minha vida, não daria!"
Ao ler um texto como esse, muitas pessoas leitoras sentem uma ânsia irrefreável de ou apontar que a vida delas é diferente da minha ("para quem trabalha fora de casa não dá pra só gastar cem reais de transporte", etc) ou interpelar a minha vida pessoal ("sendo dono de imóvel é fácil!", "duvido que gaste só cem reais de luz, água, telefone!", etc).
Mas esse texto não é sobre a minha vida. A minha vida está apenas sendo utilizada como exemplo porque é a vida de quem escreveu o texto. Naturalmente, os exemplos específicos da minha vida não vão se aplicar às vidas das pessoas leitoras.
Hoje, em 2014, sou dono de imóvel. Mas não era quando esse texto foi originalmente publicado em 2008, e muito menos nas duas vezes em que quebrei antes disso. Em 2004, por exemplo, eu e minha esposa pagávamos R$600 por um quarto e sala em Jacarepaguá, subúrbio do Rio. Em 2008, já sozinho, pagava trezentos e cinquenta dólares por um quarto em uma república de estudantes em Nova Orleans. O fato de eu ser dono ou não de um imóvel, hoje ou ontem, faz muito pouca diferença para a mensagem geral do texto.
O objetivo desse texto não é demonstrar que só dá para viver assim quem tem uma vida idêntica à minha ou que a minha vida é o máximo e todas devem me imitar. (Que texto idiota seria esse!)
O objetivo desse texto é, através dos exemplos da minha vida, tão única e singular quanto a de qualquer pessoa, transmitir um novo jeito de pensar nossas despesas e nosso consumo, nossas necessidades e nossos prazeres, para que então cada um de nós possa decidir por conta própria o que quer fazer de nossas vidas tão únicas e tão singulares.
A decisão econômica de ter filhos
A crítica mais frequente a essas minhas reflexões é:
"Ora, Alex, tudo é muito fácil se você não tem filhos!"
E eu respondo:
Sim. Esse é o principal argumento para não ter filhos.
Minha vida só é fácil porque eu, de forma consciente e consistente, fiz escolhas que simplificaram a vida. Porque, entre outras coisas, abdiquei das muitas delícias de ser pai para não ter que sofrer o peso dos muitos encargos.
Então, por um lado, eu não tenho um mini-me para ensinar a gostar de Star Trek e para me olhar com orgulho de filho, e por outro, nunca vou me endividar pagando aparelho ortodôntico e escolinha de inglês.
Fiz minhas escolhas e estou feliz com elas. Não reclamo das minhas escolhas e nem da vida que essas escolhas construíram. Minhas escolhas não são críticas às escolhas de outras pessoas.
Se você fez a escolha de ter filhos, mas então aponta para alguém que fez a escolha de não ter e diz que a vida dessa pessoa é fácil (como se fosse uma crítica!) talvez isso revele mais sobre a sua ambivalência em relação à sua escolha do que qualquer coisa sobre mim.
Cada escolha traz ônus e bônus que só sabe quem a escolheu.
Eu respeito a sua escolha. Você respeita a minha?
Não existe liberdade sem independência financeira
O endividamento progressivo e irremediável de toda uma classe econômica é uma das mais perfeitas ferramentas de controle social jamais inventadas.
Nos EUA, a maioria das pessoas (que não vêm de família rica e não ganham bolsa de estudos) precisa tomar dinheiro emprestado para pagar a universidade e se sustentar. Quando se formam, já estão sobrecarregadas com enormes dívidas, que passam muitos e muitos anos obedientemente pagando — como ovelhinhas bem-ajustadas e bem-comportadas que são, já tendo internalizado o código de ética capitalista que diz ser mais ético sacrificar suas famílias do que dar um calote num banco. Num banco!
(No Brasil, com a ascensão da nova classe média e com a proliferação de novas linhas de crédito e novas universidades caça-níqueis, estamos indo pelo mesmo caminho.)
Roberto, meu ex-colega de casa em Nova Orleans & grande amigo, era um dos pensadores mais originais que conheci. Um homem aberto, inteligente, interessante.
Quando morou comigo, estava terminando sua residência em Ortopedia. Sabia que não queria mais ser médico, sentia-se intelectualmente limitado na profissão, tinha cursado só para seguir os passos do pai, mas já não podia largar. Como pagaria suas enormes dívidas?
Para o banco, o empréstimo para estudantes de medicina é de baixíssimo risco, mas para o estudante, o risco é alto: a medicina torna-se literalmente um caminho sem volta. Um empréstimo que se paga facilmente com um salário de médico em início de carreira torna-se sufocante e inviável para alguém em praticamente qualquer outra profissão.
Roberto queria terminar sua residência, pegar seu diploma e fazer uma pós em literatura (já possuía graduação em cinema), mas com a bolsa de estudos que receberia por um doutorado ele não pagaria nem os juros de suas dívidas.
Ou seja, simplesmente não podia mais voltar atrás. Suas dívidas efetivamente o impediam de recomeçar do zero, de tomar uma decisão radical, de seguir por um novo caminho. Por causa das dívidas, Roberto estava obrigado a permanecer na estrada já trilhada, a exercer a profissão que esperavam dele, a continuar tudo igual.
Talvez tivesse sido bem melhor pra ele simplesmente nunca ter tido acesso a esse empréstimo.
Resolveu a questão do melhor jeito que pôde: conseguiu um emprego como médico do trabalho, fazendo avaliações funcionais; um serviço absolutamente bunda e sem desafios, mas que não lhe exigia nada, nem mesmo concentração. Graças aos excelentes salários médicos, somente dois dias por semana já bastavam pra ele ir pagando suas dívidas e vivendo frugalmente. No tempo livre, corria atrás dos seus projetos pessoais: lia, aprendeu piano, começou a fazer stand-up comedy. Vivia sua vida com liberdade.
Em agosto de 2008, nos encontramos pela última vez na véspera da evacuação do furacão Gustav: tinha acabado de entregar seu apartamento e estava indo fazer a América Central de mochila.
Nunca chegou a ir. No ano seguinte, no Texas, cometeu suicídio.
Sinto muita falta dele.
* * *
Uma nação de pessoas endividadas é uma nação de pessoas escravizadas.
Quem passa o primeiro terço da sua vida profissional afogada em dívidas vai ser muito menos apta a participar ativamente de sua comunidade como uma cidadã. Pior: quanto mais pobre, mais dívidas terá e menos poderá de fato participar, deixando, mais uma vez, a arena política e a vida pública nas mãos das pessoas mais ricas e mais ociosas.
Jovens assim, sob o peso de tantas dívidas, tornam-se mais conservadoras e alienadas, mais avessas aos riscos, mais atraídas por empregos seguros e medíocres, menos propensas às atividades intelectuais, acadêmicas, artísticas, atléticas e também (para não dizerem que o argumento é esquerdista) empresariais e empreendedoras.
(Aliás, o pensador que melhor desenvolve esse argumento é o canadense John Ralston Saul, de direita.)
Uma nação de pessoas endividadas é uma nação de ovelhinhas mansas, de pessoas tão preocupadas em não serem despedidas ou em arrumar um jeito de pagar a próxima mensalidade escolar da filha, que simplesmente não têm tempo nem disposição para questionar o governo, exercer a cidadania, participar da comunidade, ajudar quem precisa.
Uma nação de pessoas endividadas é uma nação de pessoas tão amedrontadas e acuadas que preferem abrir mão de seus direitos, de seus ideais, de seus princípios, autorizar o governo a filmar as ruas e a grampear os telefones, tudo o que quiserem fazer, se somente isso lhes fizer se sentir um pouco menos de medo.
Parafraseando um velho ditado, quem tem dívida, tem medo. E quem tem medo, não é livre.
A verdadeira liberdade apenas pode existir com independência financeira e sem medo.
* * *
Mas... e se você conseguir essa tal de liberdade aí? Sabe o que fazer com ela?
Quando você não está vendendo seu tempo livre e sua energia vital para realizar os projetos de outras pessoas em troca de dinheiro... quem é você?
Mas você já sabia que o trabalho era uma prisão, né?
(Esse texto continua na Prisão Trabalho. Recomendo que você leia agora.)
Um posfácio pessoal, com agradecimentos
A Prisão Dinheiro, originalmente publicada em 2008 e agora expandida e quebrada em duas (Dinheiro e Trabalho), talvez seja um dos textos mais importantes que já escrevi. Graças a ele, conheci duas pessoas que hoje estão entre as mais importantes da minha vida. (Das três pessoas na discagem rápida do meu telefone, elas são duas.)
Minha quase-irmã Sônia estava desesperada com problemas financeiros e esse texto lhe ofereceu um caminho e um consolo. Sentindo-se em dívida comigo (eu reitero que ela não me deve nada), ela tem me hospedado gratuitamente, me oferecendo abrigo e tranquilidade para que eu possa escrever mais. Minha dívida com ela não tem fim. Sônia hoje é minha família. Sem a Sônia generosamente me hospedando pelos últimos três anos, eu não poderia ganhar a vida escrevendo.
A irmã da minha atual companheira também estava procurando por conteúdo sobre economia doméstica, encontrou a Prisão Dinheiro, gostou, leu mais, repassou para a irmã, ela também começou a me ler... e, bem, temos caminhado juntos pelos últimos anos. É uma das pessoas mais incríveis que já conheci.
Também devo agradecimentos a outras pessoas sem as quais esse texto não existiria.
Em primeiro lugar, obrigado à equipe do Grana Forte, um software de planejamento financeiro que me encomendou uma série de textos sobre economia doméstica para divulgarem seu produto. Foi dos pouquíssimos posts pagos que fiz na vida, devidamente informado aos leitores, e me salvou de um aperto em um ano de vacas magras. Sem a perspectiva do ganho financeiro, como tantas vezes na vida, eu provavelmente não teria nunca conseguido terminar esse texto.
Em segundo lugar, obrigado ao Guilherme Valadares e ao PapodeHomem, que não apenas pagou de novo por esse texto, como cobraram por ele incansavelmente até que não me restou outra saída a não ser revisá-lo, reescrevê-lo e expandi-lo. Sem o PapodeHomem generosamente comprando meus textos pelos últimos três anos, eu não poderia ganhar a vida escrevendo.
Em terceiro lugar, obrigado a minha amiga Flávia Tótoli, da Benu Marketing, que há seis meses gerencia e administra a minha página no Facebook. Se ela não tivesse tirado da minha mão esse gigantesco sumidouro de tempo, eu não teria conseguido escrever um décimo do que escrevi.
Por fim, obrigado a todas as pessoas que vieram aos encontros As Prisões e Prisão Dinheiro, que tenho realizado por todo Brasil. O texto, na verdade, foi reescrito e reelaborado nesses encontros, ao vivo, oralmente, no diálogo com as pessoas, no contato com a vida. Sem o feedback de tanta gente, perguntando, compartilhando, desafiando, o texto seria infinitamente mais pobre. O trabalho de sentar e reescrevê-lo foi na verdade o simples trabalho de relembrar todos os excelentes argumentos e exemplos e experiências que foram surgindo nos encontros.
Que o texto traga tantas coisas boas a vocês quanto trouxe para mim.
* * *
Três avisos importantes sobre meus textos
Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);
Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);
E são sempre todos rigorosamente ficcionais. (Ou não: Alex Castro não existe, só o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)
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O encontro “As Prisões”
Há doze anos, escrevo sobre as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida: as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.
Agora, estou promovendo o encontro "As Prisões" por todo Brasil. O público-alvo são ovelhas negras em busca de interlocutores. O encontro oferece a oportunidade de passarmos o dia inteiro trocando histórias, compartilhando vidas, debatendo perplexidades. Ao final, nós, todas as pessoas, estamos exaustas, gastas, esvaziadas. Confusas, atarantadas, chacoalhadas.
O encontro "As Prisões" é independente por ideologia. Não possui vínculo institucional algum. É divulgado pela internet de forma alternativa e realizado em praias, parques, quintais, praças. Oferece frutas e castanhas para comermos ao longo do dia e tem um intervalo para almoço. Começa sempre às nove da manhã de sábado ou de domingo e termina na hora que terminar. Muitas vezes, a química é tanta que não queremos ir embora: o encontro mais longo durou 15 horas.
O encontro é pago. Mas negar uma pessoa só porque ela não pode pagar seria dar importância demais a essa convenção arbitrária que chamamos dinheiro. Portanto, algumas pessoas pagam, outras pagam menos, outras não pagam. Na prática, as que pagam me possibilitam fazer o encontro para as que não pagam. Nada poderia ser mais solidário do que isso. (Para saber mais, consulte a política de gratuidades.)
Não é auto-ajuda, terapia, coaching. Não é palestra, aula, exposição de conteúdo. Não tem apostila, powerpoint, frases de efeito pra anotar no moleskine. Não oferece respostas, soluções, remédios. Não promete uma vida mais calma, mais centrada, mais bem-sucedida.
Não ajuda em nada. Pelo contrário, só atrapalha. Às vezes, nos transforma em pessoas ainda mais confusas, desajustadas, perdidas. Afinal, ser bem-sucedida e bem-ajustada em um mundo canalha pode bem ser indicativo de nossa própria canalhice.
Para mais detalhes, vídeos, depoimentos, calendário completo, tudo isso, veja aqui.
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Todas as ilustrações desse texto são pinturas do artista francês Georges Braque (1882-1963).
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por que escrevo em minúsculas? por isso.
publicado em 27 de Maio de 2014, 15:26