Pedalando 800 km para encontrar respostas | Na estrada #34

Às vezes tudo que precisamos é fazer umas loucuras

O quarto parecia escuro e tudo indicava que seria um dia frio. Imaginei que o sol ainda não tinha nascido. Eu estava acordado, mas mantinha os olhos fechados. E de repente tive a estranha sensação de não saber onde estava. Tentando me concentrar fiz um esforço para ter aquele estalo de ficha caindo e poder relembrar como fui parar ali. Passaram-se pelo menos 10 segundos até me dar conta de que estava num albergue a caminho de Minas Gerais. Aliás, precisava levantar, a viagem ainda era longa e minha bike esperava lá fora.

"Preciso de férias!" Quem nunca?

A viagem aconteceu em 2009. Eu tinha 21 anos, estava no último ano do curso de Nutrição e também trabalhava com artes visuais. A vida de universitário em São Paulo não era tão simples, mas era divertida. Até aquele momento a bike era o meu meio de transporte. Fazia um trajeto do Ipiranga até a cidade universitária todos os dias.

Eu tinha muitos questionamentos sobre o que fazer no futuro e acreditava que quando um dilema surgia, precisava resolvê-lo depressa. O problema é que nem sempre a vida para para você descer e refletir com tranquilidade.

Mas e se de repente surge um intervalo de sete dias entre dois estágios obrigatórios?

Foi o que aconteceu e era o que faltava. Aproveitei para realizar uma viagem de bicicleta mais longa e criar um momento de reflexão.

Vamos nessa?

Estar só, com a própria companhia

O planejamento foi bem simples:

  • Olhar no mapa um raio de 400 km a partir de São Paulo, considerando que seriam 100 km pedalados por dia e que seria ida e volta.
  • Considerar algo em torno de R$ 50 por dia, para refeições e local de parada.
  • Checar equipamento de manutenção e reparo da bicicleta.
  • Convidar amigos e amigas.

Foi uma grata surpresa quando vi que poderia ir para Minas Gerais. Eu não conhecia nada do estado. Planejei chegar até Poços de Caldas e de lá visitar cidades da região.

A questão do dinheiro já não foi assim tão grata. Eu contava com aquela exata quantia disponível na poupança, ou seja, qualquer imprevisto fugiria do meu orçamento.

O equipamento estava no ponto: um celular com 2 gb de músicas, odômetro para registrar média, chaves, bomba de ar, 2 câmaras de ar e um mapa desenhado em folha A4. Acreditava que estava tudo certo. Pode parecer um absurdo, mas eu acreditava de verdade.

Agora faltava saber se teria companhia ou não. A resposta você pode imaginar: ninguém estava disponível para uma viagem dessas em cima da hora no meio da semana. Foi quando a ideia que parecia genial começou a perder força. Será que vale a pena ir sozinho?

Por acidente, o primeiro desafio e a primeira lição aprendida. Precisamos de outras pessoas? Sim. Mas de nada adianta se não conseguir apreciar a si mesmo e a própria companhia.

A gente até fica bobo de tão feliz.

Começando pelo começo

Eu tinha um objetivo, mas quando o dia da viagem chegou fui tomado por pensamentos que me impediam de ir em frente. É como se uma voz dissesse:

“A ideia até é boa, mas vamos ser realistas né? Não precisa fazer isso. Vai ficar tudo bem se você desistir.”

Enrolei o dia inteiro e atrasei o primeiro trajeto, mas uma pergunta mágica existe e nos atormenta:

“E se?”

Sabe aquelas ideias que dizemos ser incríveis? Aqueles projetos que acreditamos poder mudar o mundo? Ou que pelo menos seriam capazes de mudar o nosso mundo? Então, vou te dizer uma coisa a respeito: criar um desafio não basta para dar o primeiro passo.

Se você realmente quer encarar o desafio de fazer algo novo, inédito, é preciso cultivar um sentimento de curiosidade em saber como seria a vida se aquela ideia se concretizasse.

E seu eu de fato chegar até lá?

Nas estradas, nas ruas

Por ter atrasado minha partida fiz um longo trecho à noite. Algo que não foi nada agradável para um primeiro dia. A sensação de vulnerabilidade é enorme e isso traz novos sentimentos. O jeito foi abraçá-los e ir sentindo como o caminho ficava mais leve.

Eu adorava encontrar pontos de parada e conversar com as pessoas. Era meu tempo de descanso. Hora de reabastecer as energias e aprender com as visões diferentes de mundo. Ao que me parece, em qualquer momento que for, teremos alguém para nos dizer que somos loucos ou para apoiar nossa loucura. Ter esse discernimento é algo importante para receber as críticas que ajudam e resistir àquelas que querem apenas nos desestabilizar.

Don't worry. Keep biking.

A rara espécie das pessoas boas

Durante toda a viagem pude contar com a ajuda de desconhecidos, seja para ganhar um desconto na refeição, uma estadia com preço simbólico, orientações de caminho, dicas da estrada, entre outras coisas... mas teve uma situação específica que me despertou mais atenção.

Quando cheguei a Poços de Caldas logo fui conhecer o Cristo Redentor da cidade. Durante a trilha encontrei outros ciclistas que estavam com problemas. Decidi parar e oferecer ajuda, eles estavam com pneus furados e sem kits de reparos, então foi algo bem simples de resolvermos com o meu material.

Contei minha história durante o conserto e seguimos o passeio em grupo. Após a visita ao Cristo fui surpreendido com um convite do grupo para conhecer a cidade e acabei fazendo amigos que me proporcionaram boas risadas e conversas enquanto estive na cidade. Tudo na base da gentileza.

Não cheguei a dormir no banco da praça, mas tirei foto.

Anda com fé que a fé não costuma falhar

Lembra de quando falei sobre a falta de dinheiro para imprevistos? É claro que eles aconteceram e eu estava com os bolsos vazios.

No meu último dia de viagem – até que demorou, vai? –, tive que escolher entre procurar um lugar em conta pra dormir ou negociar uma refeição. Mas sabe quando você ainda tem esperança de ter feito alguma conta errada?

Fui ao caixa eletrônico, já pela noite, verificar o saldo. E nessa hora descobri milagrosamente que tinha mais dinheiro do que o esperado. Fiquei sem reação. Não podia imaginar de onde aquela quantia tinha vindo.

Só bem mais tarde, já em São Paulo, fui descobrir que aquela grana era resultado da venda de um dos meus produtos. Algo que raramente era feito por depósito.

Mas essa não foi a única surpresa da volta. Ao chegar em São Paulo naturalmente levei a bicicleta para a manutenção quando o mecânico me avisa que o cubo estava partido ao meio. Essa peça (o eixo que une os aros da roda) custa uma quantia mais do que suficiente para inviabilizar minha viagem. E eu sinceramente ainda não sei como ela aguentou aqueles centenas de quilômetros.

Você pode retirar toda pedra do caminho, desde que saiba que ela está lá.

A vida que pede passagem

Quando passamos por situações como essa, aprendemos que é necessário passar por certas situações desconfortáveis que exijam adaptação. Quando passamos a acreditar que nosso mundo é limitado ao que vemos criamos um problema para nós mesmos. Pior só quando paramos de ver coisas novas no mundo.

A pessoa que passou incólume a um enorme campo de girassóis na ida, já não era mais a mesma que parou para registrar algumas fotos na volta. Quando fui estava preocupado com meus problemas, meu futuro. Quando voltei estava presente de corpo e mente no presente.

Embarca com suas dores, pra longe do seu lugar.

Como na cena que narrei lá no começo, sentir que não sei onde estou passou a ser algo que aprecio. Aceito que estou de passagem por aqui e que cada dia e cada lugar tem algo para nos ensinar. É incrível como procuramos nossas respostas em lugares distantes enquanto passamos por caminhos repetidos sem nunca notar seus detalhes. Mas já que não é todo dia que estaremos livres para pedalar 800 km ou seja lá qual for sua loucura, é melhor começarmos a procurar outras formas de nos sentirmos livres.

"Não existe programa de desintoxicação para os viciados em liberdade. Uma vez que você souber o que o aguarda do outro lado, vai ser difícil voltar a seguir as regras alheias."


publicado em 14 de Dezembro de 2016, 00:05
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Eduardo Szpak Gaievski

Nutricionista mestre em ciência dos alimentos e sonhador em tempo integral. Também é idealizador e fundador da Alimente Saúde, ajudando mães, pais e filhos a criarem uma relação positiva com a alimentação.


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