Para namorados, namoradas, esposas e maridos

Nos últimos anos vivi e também acompanhei de perto alguns fins e quase-fins de relacionamento. Além dos desencontros logísticos, dores no corpo e perturbações emocionais, há diversas visões bem limitadas que só nos atrapalham -- são como mapas equivocados, mal feitos, que usamos durante o namoro e nessa hora agarramos ainda mais para achar saídas.

Para apontar algumas faces dessa cegueira cognitiva que nos afasta do bom senso e da realidade, melhor do que teorias e argumentos, deixo três exemplos.

 

Cena de "Lars and the real girl" (A garota ideal)

 

Exemplo do cozinheiro

Quando dizemos que alguém é um bom cozinheiro (ou empresária, pai, cantora, médico), estamos nos referindo a um ser livre que usa aquela inteligência específica, manifesta aquela identidade sem se confundir totalmente com ela, sem ser levado, comandado por ela.

Imagine um cozinheiro que recebe os amigos e apenas se foca em fazer pratos e mais pratos, sem nunca parar, jogar poker, conversar, ser algo além do cozinheiro. Todo mundo enxerga aquilo como uma espécie de loucura. Pior, quando alguém lhe diz "Acabou a comida, amanhã todos nós vamos almoçar e jantar fora", ele imediatamente começa a chorar e espernear.

Parece um exemplo exagerado, mas é exatamente assim que nos comportamos em um namoro.

 

Exemplo do namorado surtando

O cara acabou de ver a foto da recém-ex-namorada com outro no Facebook. Eles acabaram há poucos dias. Agora ele se tranca no quarto, começa a esmurrar a parede, gritar e acaba chorando em posição fetal na cama.

Vamos imaginar, para efeito de contraste, que nesse exato momento a recém-ex-namorada surge do nada, bate na porta e se declara: "Eu te amo, eu quero ficar com você".

Nós queremos abraçá-la e voltar a namorar usando esse cara que surtou? É essa base frágil que queremos? Pois é esse o namorado. O namorado não sabe fazer nada além de namorar e exigir que uma determinada pessoa também aja como namorada. Sem esse processo, o namorado quer se matar, ele não sabe o que fazer. É com o namorado que desejamos viver um namoro?

 

Exemplo do começo de namoro

Gosto muito de investigar processos evidentes com perguntas óbvias. Dessas contemplações às vezes descobrimos dinâmicas profundas. Tomemos agora o que acontece num simples começo de namoro. Quem é que começa a namorar?

O namorado e a namorada ainda não existem no começo. Quem começa a namorar é o ser livre, é aquele que olha a outra pessoa como uma outra pessoa que por algum acaso começou a andar por perto. E é por isso que é tão bom. O frescor não vem da novidade ou da paixão, mas da liberdade, da escolha: "Ele não é nada meu, mas está sendo muito bom ficar perto dele".

E depois o frescor se vai não porque o sexo diminuiu ou a paixão acabou ou a gente precisa de surpresas e novidades, mas porque paramos de ver o outro e começamos a nos relacionar com o namorado ou a namorada.

Quando uma pessoa diz querer namorar, ela na verdade está dizendo "Eu quero ser feliz e acho que pelo namoro será mais fácil". É assim também quando elas não querem mais namorar: "Eu não quero sofrer, eu quero viver bem, de acordo com o que eu acho que seja viver bem, e acho que sem o namoro será mais fácil".

O melhor jeito de se relacionar com uma pessoa livre, portanto, é apoiá-la nesse processo de viver melhor (com ou sem sexo, com ou sem intimidade, morando ou não junto, namorando ou se divorciando), ser um parceiro. Não ser um namorado e tratá-la como namorada, exigindo, checando, negociando, controlando, sufocando sob a desculpa de estar "amando".

Quando fracassamos, surge a vontade de entender os erros e mil promessas e decisões para acertar de agora em diante. Fazemos um grande esforço para ser um namorado melhor, um marido melhor. Mas já sabemos ser bons namorados e maridos. Alguns nem isso sabem, ok, mas isso é fácil, há receitas, é como aprender a jogar futebol: namorar e casar são inteligências específicas.

O que precisamos é direcionar essa disposição para sermos melhores pessoas e parceiros, não namorados e maridos. E saber manter nossa liberdade ao operar com inteligências em mundos específicos (sem fazer disso uma prisão). Fazer isso não é nada fácil pois precisamos compreender a realidade, trabalhar com nossas emoções e visões, realmente transformar corpo e mente. Em vez de focar em negociar detalhes da relação, precisamos focar em nossas próprias vidas.

E isso leva tempo, não é algo que se resolve, é um aprendizado de uma vida que precisa começar o quanto antes.

 

Mais

Os momentos de crise, sofrimento, abandono, traição, fim, desencontro, confusão são excelentes para evidenciar as bases de um relacionamento, além de nossos enganos cognitivos e fixações emocionais.

Para aproveitar ainda mais esse precioso caos, estamos preparando um livro.

Quer colocar isso em prática?

Para quem está cansado de apenas ler, entender e compartilhar sabedorias que não sabemos como praticar, criamos o lugar: um espaço online para pessoas dispostas a fazer o trabalho (diário, paciente e às vezes sujo) da transformação.

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publicado em 24 de Outubro de 2012, 14:21
Gustavo gitti julho 2015 200

Gustavo Gitti

Professor de TaKeTiNa, colunista da revista Vida Simples, autor do antigo Não2Não1 e coordenador do lugar. Interessado na transformação pelo ritmo e pelo silêncio. No Twitter, no Instagram e no Facebook. Seu site: www.gustavogitti.com


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