Para beijar bocas no Carnaval sem forçar a barra

Porque a delícia é a malemolência da coisa, o sol no peito, a pele suada e o flerte do outro lado do trio

Vou contar pra vocês que eu nunca tive tanta vontade de começar um texto com um embed Youtube da música Praieiro, do Jammil e Uma Noites. Não porque seja a minha preferida, mas porque é carnaval, toda alma viva brasileira sabe cantar o refrão e porque ela é totalmente apropriada pro nosso assunto.

Como eu tenho senso de ridículo, vou começar de outra forma. Volta a fita.

Boatos correm que, por algum desconhecido motivo, corpos suados se colam mais durante o carnaval do que pelo resto do ano inteiro. Confesso que não entendo o porquê, já que beijar bocas é tão bom em fevereiro quanto em agosto e, melhor do que isso, só em fevereiro e em agosto.

Mas todos os incentivos dados àqueles que procuram na multidão do bloquinho a metade da laranja. Especialmente os que, com toda a malemolência, se conquistam num compasso atrás do caminho do trio, com a calma do flerte, o charme e a graça, a chegada criativa. Sem força, cada um no seu quadrado, sem insinuações não requisitadas. Só a malemolência.

O flerte ou fogo que arde sem se ver

Olhou de longe. Boca sensual, sorriso escancarado e tão branco que reflete o sol. Torso bronzeado de seguir o trio rua acima.

Não há quem se incomode com em ser fitado na linha dos olhos – não dói, não queima, não come nem constrange ninguém. Retribuir é completamente opcional e, claro, pode ser que as suas ilusões sejam cortadas pela raiz numa virada brusca de cabeça. Não vale encarar – aposto que você também não gosta de gente lombrigando suas partes. Respeitemos, sigamos a vida.

Mas, meu amigo, se der certo, não há nada mais gostoso do que o jogo de olha-distrai que se estabelece nesse momento. É a partir dos olhos que consentem o flerte que a gente começa a se deliciar pelos arredores, brincando de fazer mistério a cada desvio de vista, como que pedindo permissão pra um centímetro a mais a cada jogo retribuído.

Famigerado approach

Quando todos os envolvidos já se encontram confortáveis com o olhar, sabemos que é a hora de chegar.

Essa tem tudo pra ser a hora mais difícil: ninguém sabe o que raios a outra pessoa gosta. Fato é que se você já passou pela fase do flerte e foi correspondido, as chances de que seja bem-recebido na rodinha é bem grande (se você foi mal recebido na fase do flerte, amigo, semancol e tchau).

Puxar um papo e olhar nos olhos de alguém significa, em alguma instância, mergulhar numa piscina cuja profundidade é completamente desconhecida. A gente não sabe se pula ou entra pela escadinha, correndo o risco de parecer invasivo ou muito devagar, nada muito diferente da vida em si.

Sou partidária de nos contentarmos com o fato de que é impossível agradar a gregos e troianos e, às vezes, a coisa simplesmente não rola. Sempre bom adotar posturas que não serão interpretadas como ofensivas pela maioria das pessoas – cabe manter a distância socialmente aceita entre duas pessoas, evitando mãos ansiosas que seguram o que mais parece ser propriedade do que um ser livre.

O bom é que no carnaval rola até chegar dançando sem passar de louco – bom humor é sempre, sempre sensual. Se rolar passinho-pra-frente-passinho-pra-trás no mesmo compasso, o corpo vai juntando espontaneamente.

Não vale força física, não vale ficar mexendo a cabeça em zigue-zague (até porque isso é bizarro), não vale enquadrar na parede. Se corpinho colou, o beijo vem vindo. Se não vier, “Você dança muito bem! Vou indo no trio. Tchau!”.

Foi!

Nada nessa vida compensa a química do primeiro beijo. Quando tem borogodó, nossa senhora, tem muito borogodó. A boca é só porta pra uma sensação elétrica que leva o corpo todo, segundo a segundo, a produzir algum tipo de droga orgânica que não vende na feira gourmet do Leblon.

Tem quem se afeiçoe por prolongar as esperas e, na despedida do bloquinho, faz mistério com o número de telefone. Há também quem curta a vida em espasmos e parta pra outra depois do primeiro ósculo (pausa pra minha opinião pessoal de que isso é o maior desperdício). Sempre tem quem não pare por aí e queira explorar os cantos da pele arrepiada.

As horas vão passando, a rua vai esvaziando e o convite vem. Se rolou e a vontade for convidar, vá com fé, mas saiba curtir a individualidade do outro: não é não. Importante sacar os anseios de quem se tem nos braços – um grupo de amigos, cansaço, receio podem ser todos motivos para um ‘não’. Interpretá-los como afronta pessoal ou falta de desejo, além de insensível e desrespeitoso, pode ser bem egocêntrico. Bastante importante lembrar que por trás de beijos e borogodó há alguém cuja vida está comprometida com expectativas e compromissos que já estavam lá antes da sua boca.

Além disso, lembremos que explorar os cantos da pele arrepiada de alguém fica impossível, desrespeitoso e até mesmo perigoso se uma das duas partes não responde por si. Caso mal estar, bebedeira ou brisa louca tenham algo a ver com o encontro de duas bocas, meu amigo, é hora de dar tchau.

Agora, se os planetas entrarem em órbita, as condições climáticas forem favoráveis, o consentimento for explícito, os fluídos fisiológicos estejam em dia e o ritmo do bloquinho acionar na sua mente que beijo na boca é coisa do passado e a moda agora é namorar pelado, boa sorte.

Não seja a pessoa chata que fica querendo tirar a camisinha no meio do vai-e-vem e seja feliz. Porque boatos correm que, por algum desconhecido motivo, corpos suados se colam mais durante o carnaval do que pelo resto do ano inteiro.


publicado em 03 de Fevereiro de 2016, 11:40
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Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.


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