Para aprender e amar um Hammond & Leslie

Conheça um dos instrumentos mais legais do mundo e o poder do som que ele pode tirar

Comparado com a voz uníssona do canto gregoriano, a polifonia do órgão de tubos é praticamente uma banda de heavy metal. No canto gregoriano, uns caras cantam juntos exatamente a mesma melodia. Quanto mais indiferenciado, melhor, que o importante é o latim sair direitinho. Mas no órgão de tubos, tudo é maxi. 

Pelo menos três teclados para as mãos e uma pedaleira para os pés, o que dá até 11 notas por acorde. Em cima disso, uma enormidade de escolha de sons, das cordas até sons de instrumentos de sopro. Quanto mais tubos um órgão de tubos tem, mais sons diferentes consegue produzir, e sons que poderiam ser atribuídos a cada um dos teclados. Heavy metal.

Um órgão de tubos é um instrumento incrivelmente complexo, caro de comprar e de manter. 

Não era qualquer igreja que poderia ter um e foi num desses que o João Sebastião Ribeiro compôs muitas de suas obras universais. Acho que a obra para órgão que é conhecida por todos é a Tocata e Fuga em Ré maior, do mesmo Johann Sebastian Bach. Preste atenção nos teclados em cima e na pedaleira em baixo. 

O cabra tem que ser muito do bom para tocar direito um órgão desses.

Agora imagine que você está nos "Istêites" na década de 1930 e sua congregação gospel quer muito um órgão de tubos, mas o custo é proibitivo. Todo mundo está ferrado de grana por causa das ondas de choque criadas pela quebra da bolsa de NY em 1929. Você quer um órgão porque é o único instrumento que “enche” um ambiente com seu som, coisa que nem o mais competente dos pianos consegue fazer. Sem ter o que fazer, você faz só suas preces. 

Num dia de 1934, chega na sua congregação um cara trazendo um orgãozinho, prometendo curar sua decepção por não ter os tubos. Ele pede duas tomadas, uma para o orgãozinho e outra para um enorme caixote quadradão de madeira. Liga tudo em pouco tempo, se ajeita, mexe nuns controles e começa a tocar Amazing Grace, um hino que começou gospel mas que hoje pertence à humanidade. Você e a comissão de aquisição de tubos ficam de queixo caído com o som abraçante, caloroso e cheio de nuances do orgãozinho. 

Agora eles já não são nem orgãozinho e nem caixote de madeira. São Hammond & Leslie, uma das duplas de instrumento mais versáteis e admiradas da história recente da música. E bem mais barato. A igreja não mais terá que gastar os tubos por um órgão. 

Aleluia!

O monstro sagrado que vai nos apresentar o que se consegue fazer com um Hammond é Billy Preston. A música é Summertime. Enquanto presta atenção no impacto que o som causa em você, preste também nos timbres que ele cria enquanto toca. Às vezes, o som fica mais cheio, tem hora que fica mais percussionado, de acordo com o gosto do monstro que toca. Além disso, preste atenção na homenagem que ele faz a Bach e a Ray Charles. 

Tudo em uma única música, num único instrumento.

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Hoje estamos vivendo o ressurgimento do vinil, enquanto o CD vai perdendo seu moral com os hypes de ouvido apurado. Existe um motivo para isso: o vinil permite que uma faixa mais ampla de sons seja representada, enquanto essa faixa é mais restrita no CD. É a tal da largura de banda. Guardadas as devidas limitações da analogia, uma largura de banda maior te dá mais velocidade na internet, e uma largura de banda maior na reprodução da música permite que se ouçam sons com mais detalhes, mais bem definidos ou mais refinados. Quanto mais larga for a faixa de frequência reproduzida, mais “cheio” será o som.

Muitos Hammond são valvulados, o que significa que eles permitem exatamente essa faixa mais ampla de frequência para representar os sons. Quando se diz “valvulado”, significa que é “não transistorizado”. Não é qualquer equipamento que usa válvulas, só aqueles vintage

A válvula tem um problema terrível: ela esquenta muito, fica encapsulada num invólucro de vidro e não existe uma maneira eficaz de resfriá-la para que trabalhe na temperatura ideal. Quanto maior a potência, maior deve ser o tamanho da válvula, e maior precisa ser o espaço circundante para ela não torrar o que estiver à sua volta. O transistor, neste caso, é uma mão na roda. É bem menor e é fácil de resfriar: basta prendê-lo a um bloco de alumínio que está tudo certo. Assim, o transistor pode colocar mais potência num espaço menor. 

Só que, quando eu vejo um Hammond no meio de uma banda, eu sempre acho que é valvulado. Nele e no Leslie há espaço de sobra para válvulas. É a ideia vintage que é tão bem incorporada por essa dupla.

A tecnologia de 80 anos atrás não poderia se manter a mesma. Hoje, por exemplo, é possível conectar um Hammond via MIDI para acessar sons armazenados em outros teclados ou mesmo em computadores. Não é difícil hoje encontrar shows mostrando um Hammond com um notebook ao lado. Esse é um dos aspectos mais fascinantes da história desse “orgãozinho”: a tecnologia foi atualizada, mas a alma é a mesma, melhor em alguns casos. 

Não é de se admirar que o Hammond seja usado em tantos ramos da black music, além do rock, jazz e blues.

Mas... e o Leslie? 

É o que chamaríamos de amplificador, por onde o som sai. Numa configuração típica de guitarra e amplificador transistorizado, o som dos captadores entra num circuito de pré-amplificação, o que permite, por exemplo, dar mais ênfase nos graves, médios e agudos. Dali o som equalizado pelo guitarrista vai para a amplificação que faz a caixa bombar. 

Num Leslie, o arranjo é diferente.

Antes, imagine uma ambulância com sirene ligada, correndo em círculos em volta de uma pequena praça. Você vai ouvir o famoso efeito Doppler: quanto mais perto de você, mais agudo o som. À medida que se afasta, o som fica mais grave. Agora imagine que são duas ambulâncias, diametralmente opostas, girando exatamente à mesma velocidade e emitindo o mesmo som. Você vai ouvir uma mistura de sons defasados. Se as ambulâncias se moverem muito rapidamente, você terá a sensação de um som que treme – um tremolo, ou vibratto.

O que um Leslie faz? Pega o som vindo do Hammond, joga uma parte para cima, onde duas cornetas emitem o mesmo som enquanto giram rapidamente. A outra parte do som joga para baixo, onde existe um alto-falante de grande diâmetro virado para baixo. O som produzido entra num rotor feito de material misterioso – espacial – que gira. A velocidade com que as coisas giram pode ser controlada pelo músico. O resultado é um som singular, controlável e reconhecível a quilômetros de distância. É a graça de um equipamento que merece a mística que conquistou.

A gente aprende a apreciar um Hammond ouvindo seus monstros sagrados. Ouça e veja Billy Preston novamente, agora tocando com Eric Clapton em uma das edições do Crossroads Festival.

Afine o ouvido, preste atenção em como o som muda quando ele mexe nos controles, e delicie-se – agora mais sabedor das coisas – com essa insanamente bela simbiose entre músico e instrumento.

E você que já conhece o poder de tocar ou ouvir um hammond? Quais sons recomenda pra gente? Espaço abertos para nomes e vídeos e áudios aqui nos comentários.


publicado em 19 de Julho de 2015, 00:00
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Marson Guedes

É psicólogo metido a escritor. Gosta de assuntos difíceis, cervejas belgas e de morenas. Diz o que pensa no Facebook.


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