O sapateiro. Num mundo onde cada pessoa compra mais de um calçado por estação do ano, parece a coisa mais difícil (pra não dizer desnecessária) ver alguém tomando pra si a alcunha de sapateiro.

Ah… como eu adoro os enganos juvenis.

A gente já tá batendo nessa tecla há um bom tempo e o Manifesto Reparar, traduzido na última semana pelo recém chegado Lucas Costa, veio muito a calhar.

2. As coisas devem ser desenhadas para que possam ser reparadas.
Designers de produtos, façam seus produtos reparáveis. Compartilhe informações claras e compreensíveis sobre reparos com o consumidor.
Consumidores, comprem coisas que vocês sabem ser reparáveis, ou tente saber porque elas não existem. Seja crítico e inquisitivo.

O cara que mexe com sapatos pode burlar essa regra, em prol das pessoas que desejam reparar seus sapatos. Ele sabe todas as saídas pra deixar um calçado em perfeito estado de uso novamente, independente dos desmazelos dos fabricantes. Há que saber observar, que meter a mão, fuçar por aí, adquirir conhecimento constante pra conseguir botar o pisante novamente pra agir nas ruas.

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O couro, a costura, os maneirismos adquiridos desde os tempos de escola, as ferramentas rudimentares que, mesmo com toda a tecnologia nos cercando, ainda se fazem precisas, perfeitamente úteis, a paciência, os moldes em madeira acumulados no passar dos anos.

Frank Catalfumo tem 91 anos e é um verdadeiro vanguardista. Muitos podem dizer sobre a flata de tempo nessas cidades grandes, na comodidade das entregas expressas, do fácil crédito pra simplesmente substituir algo por outro. Mas ninguém quer essa facilidade moderna, ninguém quer comprar um sapato novo só por acompanhar a sazonalidade das tendências.

A gente quer contato, ora bolas!

O que está em jogo é a gente saber separar o que é necessidade e desejo. Precisamos, claro, em tempos mais que corridos, de facilidades. Mas o que a gente quer, de fato, é tempo e tranquilidade pra acordar sábado de manhã, com um par de velhos sapatos na mochila, sentar no metrô lendo um livro, descer no Brooklyn, ou no nosso bairro mesmo, em qualquer cidade, descer a ladeira, entrar numa casinha simples, um senhor sereno, sabedor das coisas, e ficar ali de bate-papo, ouvindo o que ele tem a dizer sobre a vida, os jogos que ele assistia lá em outros tempos, a nostalgia interessante enquanto ele põe vida nova no produto que você gosta, naquilo que você comprou porque achava — e ainda acha —  foda.

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Cara, em vez de uma assistência fria e asséptica, um contato verdadeiro, a história correndo seus olhos em cada utensílio, nas cores desbotadas da tinta da parede, os quadros, a voz repousada (e não cansada). Porra, uma baita manhã de troca de ideias, experiências adquiridas.

O mesmo para os barbeiros, pra conversa jogada fora enquanto compra carne. Ninguém quer comprar só um produto qualqquer, quer é pagar, junto com a manufatura, uma experiência boa, um momento interessante.

“Antigamente, o bairro todo era amigável, todo mundo era amigo de todo mundo”
— Frank Catalfumo

O mundo precisa voltar a ser amigável em vez de embarcar nessa onda expressa. Não quero consertar meu sapato. Quero ir trocar ideia com um amigo, pagar por isso e, de quebra, ter meu sapato consertado.

Essa é a vanguarda, guardada lá atrás no que todo mundo já fazia anos antes.

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados