Os Primeiros Comentários

– Senhor?

– Pois não?

– Adão na linha nove.

– Pode passar.

– Só um minuto.

– Alô?

– Oi, Adão. Tudo bem?
– Oi, Adão. Tudo bem?

– Tudo. E o Senhor?

– Tudo em ordem. Como posso ajudá-lo?

– Eu liguei para tirar uma dúvida.

– Pois não.

– Foi o Senhor que fez o tatu cair do barranco?

– Fui Eu que fiz o quê?

– Que fez o tatu cair do barranco. Ele está todo machucado.

– Eu não faço ideia do que você está falando.

– Bom, é o que está no mural de recados.

– Que mural de recados?

– O mural de recados que temos aqui embaixo. Onde penduramos as notícias com os avisos sobre o que está acontecendo no Paraíso. Ontem, colocaram uma folha de bananeira com a notícia de que o tatu havia tentado escalar um barranco, escorregou e se espatifou no chão.

– Certo.

– E logo abaixo disso colocaram outra folha de bananeira falando que foi o Senhor quem fez isso.

– Eu?

– Sim. Foi uma raposa que colocou. Estou com a folha aqui.

– O que ela diz?

– “Foi bem feito para este tatu. Estes animais que não respeitam a vontade do Senhor acabam se perdendo no meio do caminho. E cada vez mais os jovens do Paraíso estão escalando barrancos. E o Senhor castiga. Precisamos rezar para que outros animais, especialmente os mais jovens, não sigam este exemplo”.

– Eu castigo?

– É o que diz aqui. O senhor tem algum problema com o tatu subir um barranco?

– Adão, faz cinco dias que eu estou refazendo meus mandamentos, porque me contaram que só cabem dez nas pedras que serão usadas. Então, estou tendo que cortar um monte de coisa. Você realmente acha que eu estaria preocupado com um tatu e um barranco?

– Bom, estou apenas falando o que eu vi no mural. Não é a primeira vez que vejo algo assim. Aliás, isso tem acontecido todo dia.

– Como assim?

– O Senhor ficou sabendo que semana passada uma tartaruga e um pelicano brigaram feio na praia?

– Não.

– Bom, brigaram. No dia seguinte, tinha uma folha de bananeira no mural contando o que havia acontecido. E a raposa havia comentado que “certamente foi por causa de inveja e outros pecados e certamente a alma destes animais pagarão por isso”.

– Como é que é?

– Logo embaixo tinha outra folha de bananeira, escrita por um leopardo. Dizia que é isso que acontece quando animais diferenciados começam a andar pela praia. Que eles sempre causam confusão e sujam tudo.

– O que são animais diferenciados?

– Não sei. Mas esta folha de bananeira tinha mais respostas. Tinha uma mensagem de um daqueles bichos que eu nunca lembro o nome... aquele, que tem bico, mas não é pássaro. O otorrino.

– O ornitorrinco?

– Isso. Ele colocou uma folha de bananeira dizendo que não é a primeira vez que este pelicano briga com outros animais. E que não adianta prender o pelicano em algum lugar porque, infelizmente, no Paraíso, os criminosos são tratados melhores que os animais honestos, por isso sempre estaremos nessa situação horrível. O que são criminosos? É um bicho?

– Não... deixa para lá. Não vem ao caso.

– Enfim, este ornitorrinco fala isso em todas as folhas de bananeira. Sempre fala que nada aqui dá certo porque todo mundo quer levar vantagem, enquanto os animais honestos trabalham cada dia mais. E ele está sempre falando sobre o mar.

– Do mar?

– Isso. Quer dizer, não é bem sobre o mar, é sobre a lula. Acho que ele não gosta muito da lula, porque qualquer coisa que colocam no mural, ele cola uma folha de bananeira dizendo que é culpa da lula. “Porque a lula que começou com isso”, “porque deviam prender a lula”, “porque é isso que acontece num paraíso onde acreditam na lula”. Acho que a lula, coitada, nem sabe que o ornitorrinco fala isso.

– Entendi. Mas pelo que percebi, são apenas alguns animais que fazem isso.

– Sim, mas tem mais alguns outros. A lebre também. Ela posta respostas em todas as folhas de bananeira que colam no mural de recados.

– E o que ela diz?

– Ela fala dos coríntios.

– Coríntios?! Como a lebre sabe o que são coríntios?

– Não sei. Aliás, o que são coríntios?

– É algo que você não precisa saber. Nem a lebre.

– Bom, em todas as folhas de bananeira que colocam no mural, ela coloca uma folha de bananeira embaixo com a mensagem “Coríntios!”. Em todas! Tatu caiu do barranco? “Coríntios!”. Rinoceronte derrubou uma árvore? “Coríntios!”.

– Só fala isso?

– Só. Aliás, outro dia ela e o ornitorrinco brigaram feio. A lebre colocou uma folha de bananeira com “Coríntios!” e o ornitorrinco colou uma folha de bananeira respondendo, logo abaixo, que “os coríntios são sempre favorecidos pela lula, por isso que o Paraíso é assim”. Ficaram dias discutindo. Cada vez que eu olhava o mural tinha uma folha de bananeira nova. Mas eu parei de ler, não entendia mais nada.

– Entendi.

– Eu mesmo cheguei a postar algumas folhas de bananeira respondendo algumas notícias, mas desisti.

– Por quê?

– Foi quando colocaram uma folha de bananeira dizendo que os pombos estavam voando baixo demais e passando perto dos outros animais. A raposa colocou uma resposta dizendo que “esta juventude está perdida e que suas almas serão castigadas pelo Senhor, pois trilham um caminho perigoso”. Aí eu escrevi numa folha de bananeira que “olhe, acho que o Senhor está ocupado demais para se preocupar com os pombos”.

– Bem, você acertou.

– Logo depois colaram uma folha de bananeira para mim. Dizia: “não é você que mora naquela caverna e usa somente uma folha de parreira? Eu já tentei ler os avisos que você coloca aqui no mural, e eles são muito ruins. Você não está qualificado para julgar o que se escreve no mural”.

– Sério?

– Sim. Foi o tamanduá. Ele sempre faz isso com meus comentários. O gozado é que eu nunca vi o tamanduá escrevendo nada ali. Ele fala mal do que escrevo, mas escrever, mesmo, ele não escreve nada.

– Isso é normal.

– Mas o pior é que não dá mais nem para ler o mural direito. Você coloca uma folha de bananeira e, logo em seguida, tem dezenas de folhas de bananeiras falando sobre a lula, sobre o Senhor que vai castigar todo mundo, sobre os Coríntios, sobre os animais diferenciados... não dá.

– Mas este mural não funcionava bem?

– Sim, mas mudou desde que os macacos começaram a pedir aos outros animais para comentarem todas as notícias.

– Como assim?

– Bem, eles queriam criar um mural de recado deles, mas aí eu disse que o Paraíso precisava só de um mural de recados e que, com dois, ficaria tudo confuso. Eles acabaram concordando comigo, mas agora ficam pedindo para os outros animais encherem o mural com folhas de bananeira comentando tudo.

– Entendi.

– E a maior parte das folhas de bananeira comentando o que está no mural é de animais que não têm muito a dizer. São coisas que não interessam a ninguém e ficam ali apenas ocupando espaço.

– Adão, Eu acho que os macacos estão fazendo isso somente para sabotar o mural. Você não permitiu que eles criassem o próprio mural, então eles resolveram estragar o que vocês usam.

– Bem, faz sentido. Isso é bem a cara dos macacos. Eles fizeram até um concurso.

– Concurso?

– Sim. Se você colar quinze folhas de bananeira com comentários, os macacos escrevem uma folha de bananeira sobre você. O concurso chama “Quinze Folhas de Fama”. Então, todos comentam e respondem tudo que os macacos postam. Não sabia que todos os animais aqui queriam ficar famosos. Quer dizer, não que aparecer no mural de recados seja exatamente ficar famoso, mas...

– Concordo.

– Por isso que liguei para o Senhor. Não tem como pedir para que uns anjos com espadas de fogo venham conversar com os macacos?

– Não, Adão.

– Aposto que se fosse comigo, os anjos já estavam aqui.

– Oi?

– Não, nada. É que uns anjos podiam resolver o problema.

– Adão, se Eu fizer isso, vou dar razão para a raposa. E ela nunca mais vai parar de espalhar por aí que Eu vou castigar quem faz qualquer coisa que ela não concorde, dizendo que quem não concorda sou Eu.

– Bem, tem razão. Mas não sei o que fazer.

– Os animais têm o direito de comentar o que está no mural de recado. O certo seria esperar que os animais fizessem isso somente notícias importantes e com respostas que acrescentassem algo ao assunto.

– Sim. Mas não há espaço para notícias importantes. Os animais ficam entupindo o mural com folhas de bananeira, comentando todos os assuntos. Não vejo como isso pode mudar.

– Talvez você tenha razão.

– Isso quer dizer que os anjos...

– Não, Adão. Nada de anjos.

– Certo.

– Quais são os animais que fazem os piores comentários mesmo?

– Bem, tem uma raposa, uma lebre... Que mais? Aquele ornitorrinco... Aquele tamanduá que xinga os meus textos... e... falta um... Ah! O leopardo! Aquele que fala dos animais diferenciados.

– Certo. Algum mais?

– Não. Esses são os piores. Esses cinco. Esses que causam o tumulto ali.

– Certo. Eu vou dar um jeito nesses animais.

– Mesmo? Obrigado.

–Agora esqueça este mural por uns dias. Deixe a poeira baixar.

– Obrigado.

– Algo mais?

– Não, Senhor.

Depois que desligou o telefone, Deus ficou pensando sobre como resolver o problema. Na verdade, sabia o que deveria fazer, mas estava procurando por uma alternativa. Pensou bastante e chegou à conclusão que não havia saída.

Ao cair da noite, jogou os cinco animais que faziam os piores comentários para uma caverna. E, usando Seus poderes, fez os cinco animais se transformarem em um só, formando assim uma criatura nova. Uma criatura raivosa e não muito inteligente; uma criatura que rosnava e praguejava alto, mas não tinha coragem de olhar nenhum outro animal nos olhos.

Fechou a caverna com uma rocha e chamou um anjo. Pediu a ele que escolhesse um nome para esta nova criatura. Um nome que simbolizasse os cinco animais comentaristas, para que Deus nunca mais esquecesse o que havia acontecido ali.  O anjo parou para pensar.

– Raposa. Lebre. Leopardo. Ornitorrinco. Tamanduá. Tem que representar os cinco?

– Isso. Um nome assustador.

– Que difícil... Que tal Rotol?

– Rotol?

– Isso. São as iniciais dos cinco nomes.

– Não. Rotol parece nome de produto de limpeza. Precisamos de algo mais assustador.

– Hum... Posso usar um “l” depois do outro?

– Como assim?

– O que o Senhor acha de troll?

Deus sorriu. Troll. Era um nome ameaçador e bruto. E meio burro. Era perfeito.

Assim, ordenou que o troll jamais pudesse sair da caverna até que aprendesse a emitir sua opinião de forma educada e que começassem a pensar antes de falar, e deu o assunto por resolvido.

Mas Deus não sabia que a serpente estava por perto, ouvindo os gritos e palavrões do troll preso na caverna. E já estava pensando em maneiras de soltar aquela criatura horrenda pelo mundo. Precisava apenas esperar o momento ideal para isso. E sabia que ele chegaria quando um mural de recados e notícias enorme, muito maior que aquele usado no Paraíso, fosse criado.

Não havia pressa.


publicado em 28 de Setembro de 2013, 21:00
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Rob Gordon

Rob Gordon é publicitário por formação, jornalista por vocação e escritor por teimosia. Criador dos blogs Championship Vinyl e Championship Chronicles.


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