Os gatinhos fofinhos tomaram a cultura de assalto | WTF #58

De parasitas que nos controlam à Internet livre, o Eduardo Pinheiro explica qual é a dos gatos na rede

Gato não é papo de homem? Ora, Salon, Wired, Brainpickings e Motherboard já escreveram sobre bichanos, mas não, o PdH é serião, nada de fofura! Tava na hora.

oi

Na medida em que é possível objetividade com relação ao assunto, o que, afinal de contas, têm os gatos? Como, aparentemente, estão vencendo os cães (partidário dos cães: pode seguir para a área de comentários), e todos os demais mamíferos – inclusive nós mesmos, os seres humanos – enquanto foco contínuo da sociedade da pós-escassez de informação?

Duvida da tese? O Google está desenvolvendo sua inteligência visual identificando gatinhos, e embora em termos de buscas eles estejam quase empatados com os cães, outros índices apontam que os gatos estão na frente. Este texto da Wired chega a ser difícil de entender, de tão elaborado na busca do cerne do “complexo industrial felino on-line”.

Enquanto estilo de conteúdo na internet, em termos de imagens e vídeos em particular, gatos talvez só percam para a pornografia. Veja bem, logo depois de algo que está estritamente vinculado aos mais fortes instintos humanos, contíguos com respirar e nutrição, temos... a fofura felina? [Check out my big pussy, ou algo assim.]

Teorias da conspiração abundam. O parasita da toxoplasmose, presente em 10% da população humana, geralmente sem sintomas perceptíveis, e que pode se instalar em quase qualquer mamífero, só se reproduz em gatos. O que é provado é que, quando ratos estão infectados, seu comportamento muda: não sentem, por exemplo, tanta aversão e medo do cheiro da urina dos gatos. Isso se deve à pressão evolutiva do parasita, que precisa dos gatos para se reproduzir. Bom, e se o toxoplasma usa ratos para chegar nos gatos, chegando a influenciar comportamento, será que ele não faz isso também com os seres humanos? Há evidências que sim.

oi

Mas essas histórias de terror não conseguem explicar o relacionamento humano com os gatos. Afinal de contas, não há relação direta entre ter (um número razoável de) gatos e contrair o parasita, e muitas pessoas que tem o parasita não convivem com gatos -- o vetor principal é carne mal cozida, e não limpar a caixinha de areia de seu amigo (embora seja prudente grávidas evitarem mesmo isso).

A explicação psicológica para todos os animais de estimação é que eles muitas vezes imitam – até a idade adulta – os traços mamíferos da prole humana. Assim, são uma espécie de filhos eternos substitutos (ou adicionais) – que curiosamente e infelizmente “duram” pouco, e também causam menos despesas e nos exigem comparativamente menos.

A particularidade dos gatos é que eles não são considerados totalmente domesticados. O processo está em andamento, e vai levar mais alguns milhares de anos. Não só eles têm características peculiares, diferentes das dos cães, sua relação com os humanos é menos determinada. É uma relação em construção.

Aqui começam os estereótipos: ora, o gato é misterioso e distante – no sentido de que nunca sabemos, mesmo que nos importemos um bocado, se ele está nessa relação por mero interesse, ou se realmente gosta de nós. Não que um dono de gato duvide (muito) se seu companheiro felpudo o ama – modo geral, depende do gato, há evidências de sobra. Mas mesmo com o gato mais carinhoso do mundo teremos momentos em que ficamos nos perguntando o que afinal representamos para ele – um provedor, um amigo, um subalterno? Essa dúvida nunca surge com cães – onde eles invariavelmente são nossos súditos, admiradores infinitos, com ou sem pasta de amendoim ou outra negociata – exceto, é claro, nos casos raros em que o dono não consegue se impor e gera uma relação patológica com os bichos, indo parar em algum reality show na TV.

Mas até aí, tudo bem – animais de estimação, grande parte da afetividade das pessoas nesse mundo cada vez mais solitário, e assim por diante. É um fenômeno bem compreensível. Mas o gato como fenômeno cultural, o kawaii da forma como aspecto central da cultura, quais as implicações dele?

A teoria do ativismo digital do gato fofinho afirma que a frivolidade é parte essencial da liberdade de informação. Caso uma rede social seja só dedicada a assuntos sérios, ela é mais facilmente censurada. As pessoas que ficam chateadas por não compartilhar gatos ajudam qualquer “primavera árabe” ou assemelhada. Assim, por um raciocínio tortuoso, mas válido, fomentar a fofura na internet de fato ajuda a internet livre. Não só isso, a discussão política, e outras discussões sérias, para serem mais robustas num sentido de liberdade de informação, devem ocorrer também no ambiente frívolo. A frivolidade fortalece a comunicação que possui fragilidade em termos de censura.

oi

Bom, pelo menos agora, quando aquele seu amigo reclamar de sua alienação felina, você tem uma ótima desculpa. Gatos por uma internet mais livre!

E como a China faz para contornar isso? Ela provê redes locais censuradas, mas cheias de frivolidade, de forma que os Chineses nem pensem em usar alternativas (globais) potencialmente menos censuradas! Então, cuidado, gatos (e kawaii e frivolidade de modo geral) podem ser, sim, alienação.

Mas nem só de fast food cultural vivem os gatos. É possível ler William Burroughs ou T. S. Eliot, ou um clássico japonês com um gato em primeira pessoa: Sou um Gato. Na verdade, está cheio de gatos interessantes na cultura – ainda que a Salon afirme que, se a literatura é dos cachorros, a internet é dos gatos.

Mas o lado mais pop não é desprezível. A Gata do Dalai Lama é um livro divertido, e Um Gato de Rua Chamado Bob é tocante. Mas se entrarmos nesse tipo de recomendação, a lista é realmente infinita.

Mais para o meio nessa classificação entre alta cultura e baixa cultura  alguém diria hipster , está Lost Cat, de Wendy MacNaughton que rendeu também uma curadoria da Maria Popova no seu excelente Brainpickings.

Mas afinal de contas, por que amamos gatos? Bom, um infográfico tenta explicar  mas aí a pegadinha: essas matérias todas sobre gatos, e essas infindáveis referências felinas apontam apenas que o kawaii é o lubrificante social por excelência. Política, religião, futebol  e até ciência  vai gerar tensão: gatos, mesmo que o seu interlocutor seja blasé com eles, é muito possível que vá ser simpático mandar. 

Provavelmente 90% das pessoas que clicaram para ler esse texto o fizeram porque viram a imagem de gatinho associada  (que eu mesmo ainda não vi, já que o editor vai escolher depois). Enquanto que o kawaii dos bebês humanos não está livre de pais cheios de orgulho, ou o peso da expectativa sobre futuros pais, ou algum ranço “especista” humano – os gatos são, além de tudo, um tanto bobos. 

Gatos são o supérfluo indispensável – antes de criarmos vínculo com um, sua existência é meramente estética. Essa pureza ideológica dos gatos, que se “defendem” alguma coisa, é puramente a fofura enquanto fofura, é bem única. Ok, furões, cães, hamsters, todos eles, claro, tem algo disso, mas por algum motivo os gatos dominam mais, hoje, a consciência humana.

Deve ser o toxoplasma gondii. 

Nas palavras imortais da moça do eHarmony:

Eu adoro gatos, eu adoro todo tipo de gato
Eu só queria abraçar eles todos, mas não dá
Não é possível abraçar todos os gatos, não se consegue abraçar cada gato
Então, de qualquer maneira
Eu amo gatos e gosto de correr
- desculpa, mas estou pensando em gatos outra vez -
Ah, como eu gosto de gatos
Tô de novo pensando em gatos,
De novo, de novo, de novo, de novo
Quantos não têm um lar, eu penso
Eu queria ter eles todos
Penso em como são bonitinhos
E como são suas orelhinhas pontudas
E os bigodes e o nariz
Eu os adoro, e os quero
Os quero todos numa cestinha
com pequenas gravatinhas borboleta
Eu os amo, e os quero
Como um arco-íris e na minha cama
E eu só quero rolar com eles na cama
(Rolar, rolar, rolar, rolar)
- Desculpem, estou ficando emocional -



publicado em 02 de Abril de 2015, 00:00
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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