Terça feira de qualquer dia de 1983. O dia da semana, de escolha avulsa, admito, foi a cabível para Stanley Ann Dunham ir ao cinema. Mesmo sendo a temporada de estreias como Flashdance, Jogos de Guerra e O Retorno do Jedi, Ann surpreendeu até mesmo a bilheteria optando por um filme franco-brasileiro rodado nos morros do Rio de Janeiro, chamado Orfeu Negro. O motivo? O negro.
Ann era turista. Havia desembarcado em Nova York no dia anterior, junto à filha. O principal motivo da viagem era, até ali, a visita semestral ao filho, um acadêmico da Universidade de Columbia. Apenas era. Pois o passei tornou-se o início de uma paixão platônica e ficou marcado como o despertar de um fetiche. Conjunto de fatores que só foi ocorrer graças a um anúncio de “Orfeu Negro” veiculado no “Village Voice”, jornal ainda em atividade.
“Uma noite, enquanto folheava o jornal Village Voice, os olhos da minha mãe se iluminaram ao ver a propaganda de um filme, 'Orfeu Negro', que estava sendo exibido no centro. Minha mãe insistiu para que fossemos naquela noite; ela disse que foi o primeiro filme estrangeiro que ela viu”, relatou o citado e atencioso filho. Nesse mesmo parágrafo, comentou um depoimento da mãe quando já voltavam para casa:
“Quando vi o filme, achei que era a coisa mais bonita que já tinha visto”.
Ann, do seu modo tímido e contido, como são as mães, suspirava por Orfeu.
Na manhã seguinte, o anúncio do Village Voice já não estava mais no papel. Mas sim, num novo e improvisado caderno que reunia recortes, matérias e fotos daquele negro-alto-forte que incorporou o carnavalesco protetor de Eurídice, a sertanista inspirada na mitologia grega.
Ann queria ser Eurídice. Queria aprender a sambar. Queria, mesmo sem correr perigo, correr perigo para ter quem protegê-la.
Essa excitação formalizada pela curiosidade fez Ann atravessar a ficção e descobrir o ator. Tratava-se de Breno Mello. Um amador que, até então, jamais tinha participado de qualquer produção. Isso porque Breno era jogador de futebol. Jogou pelo Renner, time que nos anos 50 conseguiu a proeza de ganhar um Gauchão, derrubando a hegemonia Gre-Nal, algo inimaginável para a época. Graças às atuações destacáveis, foi contratado pelo Fluminense. Com poucos meses de Rio de Janeiro foi abordado pelo diretor francês Marcel Camus na praia de Copacabana. Foi ali, seminu e destacando-se com paisagem, que aquele negro recebeu o convite para estrelar o filme.
A paixão de Ann durou anos. Possivelmente até 1995, data de sua morte. Ann jamais teve o prazer de conhecer Orfeu. Breno Mello jamais ficou sabendo da existência de Ann. Mas, entre todos os personagens do relato, um terceiro elemento carrega até hoje a relevância que essa história teve para os envolvidos. O tal filho da Universidade de Columbia. O cara que aquela noite de terça-feira pagou as três entradas do filme. O filho de Ann: Barack Obama.
Obama conta na sua biografia Dreams From My Father:
“Na metade do filme, decidi que havia visto o suficiente e virei para minha mãe para ver se ela estava pronta para ir embora. Mas seu rosto estava vidrado na tela. Naquele momento, senti-me como se tivesse olhado por uma janela para seu coração, o coração de sua juventude.”
Esse, lá em 1983, foi o primeiro contato de Barack Obama com o Brasil: por meio de Orfeu Negro, o filme franco-brasileiro estrelado por Breno Mello, o ex-jogador do Renner de Porto Alegre que encantou a senhora mãe do presidente.
É tudo verdade. Inclusive que, por pouco, mesmo que guiado pelas fantasias, Obama não teve um pai gaúcho.
E isso explica porque ele é apenas quase bom.
publicado em 16 de Novembro de 2012, 06:36