Olá, eu sou seu time de futebol e não estou nem aí para você

Um time de futebol é como aquele marido abusivo que te dá porrada num dia, traz flores no outro e você não tem nem a Lei Maria da Penha pra te proteger.

Meu filho vai ser babaca que nem eu!!

O revoltante namoro de Clara e Flávio

Clara é daquelas garotas que você apresentaria aos pais, andaria de mão dada no shopping ou pagaria um jantar caro só pela companhia. A garota perfeita, loira de cabelos curtos, delicada em cada traço, sorri para tudo e para todos, tem um bom emprego, é incrivelmente simpática, tem uma família bacana e faz trabalho voluntário aos finais de semana. Maria Clara tem todas as qualidades de uma mulher dos sonhos e somente um problema: é óbvio que não é solteira. Namora o Flávio.

Flávio, por sua vez, é um babaca. O típico escroto que não se importa com ninguém, muito menos com Clara. Só respeita as pessoas que lhe interessam. Clara fica como uma barata tonta atrás dele, perdidamente apaixonada por ele. Flávio, do alto de sua autossuficiência, nunca a consulta em decisões importantes, mesmo as que impactam Clara. Ele muda compromissos marcados na ultima hora e Clara sempre o acompanha. Sempre.

Flávio trabalha quase todo o final de semana e ganha milhares de dólares por mês, mas gasta toda essa grana com ele mesmo e está sempre endividado. Nunca gasta um real com Clara: muito pelo contrario, Clara é quem gasta dinheiro com ele. Por sua vez, quando Clara precisa de ajuda, Flávio não dá a mínima. Gosta mesmo é de se sentir adorado por ela.

Uma vez, Flávio foi trabalhar na Argentina, com tudo pago pela empresa, e Clara não teve dúvidas: saiu mais cedo do trabalho a contragosto do chefe e embarcou atrás. O amor de Clara é puro e verdadeiro. Independente de como ele a trata, Clara faz questão de sempre dizer:

Te sigo onde você for e te amo de verdade!

Nessa mesma viagem, Flávio se hospedou em um hotel separado com seus colegas de trabalho. Ela ficou até tarde esperando acabar o expediente e, no final, ainda teve que pegar um táxi sozinha ida e volta até seu hotel. Gastou bem mais do que podia. Mas seu amor é tão forte que, na manhã seguinte, foi ao lobby do hotel só para vê-lo de novo. Flávio nem ligou: saiu com seus colegas pela porta dos fundos.

Dá vontade de sacudir Clara pelos ombros e gritar:

Qual é seu problema? Por que aceita isso tudo? Não tem respeito-próprio? Não tem auto-estima? Você não vê que ele não te ama, sua idiota?

Você conhece alguma Clara? Aposto que sim.

Se não conhece, é fácil: basta ligar a sua televisão em um domingo a tarde e, pronto, vai poder apreciar o espetáculo de milhares de Claras torcendo e chorando e brigando por centenas de Flávios que estão basicamente cagando pra elas.

Enfia gostoso, Brasil!
Enfia gostoso, Brasil!

Seu time está cagando pra você

Sim, você, fã de carteirinha de qualquer time, é exatamente isso: uma garota mal-tratada por um cara que não está nem aí pro seu amor.

E você gosta.

Compra camisetas e ingressos, fica até tarde vendo jogos, enfrenta filas... E não recebe nada em troca. Absolutamente nada. Mesmo quando comemora uma vitória, ela não é sua. É do time. Você não tem absolutamente nada a ver com isso.

No ultimo ano o Corinthians faturou R$290 milhões e você não tem direito a nada. Apenas contribuiu para esse número gastando sua grana suada. E tem gente que ainda comemora o fato de o time ter ganho mais dinheiro. Parabéns!

Se um jogo é colocado quase de madrugada para acomodar a novela da Globo, você nem reclama de ter que chegar às duas da manhã em casa depois de enfrentar um trânsito infernal no transporte público E, pior, para ver um empate de zero a zero contra o Goiás. Porque tanta docilidade? Por que você é leal a seu time.

Enquanto você é fiel, faz juras de amor e se diz eternamente fã, seu time está agora mesmo pensando em como vender menos meias entradas na final, como cobrar a mais pela camisa fluorescente, como criar um setor VIP no estádio, como realizar mais jogos no interior para encher o estadio de outras Claras que nunca podem ir aos jogos na capital, e assim por diante.

Pois é, Clara, o mundo é injusto, get over it.

Muitos jogadores profissionais são até educados com os torcedores, mas acham que são uns idiotas:

"São uns pobres coitados. Acham que o futebol é mais importante do que realmente é, o que mostra um pouco da vida miserável que devem levar. Veem as coisas com uma proporção totalmente errada."

E outro:

"Torcedores? Por favor! Jogadores odeiam torcedores!"

Enquanto isso, os torcedores compram ingressos antecipados, uniformes oficiais, jornais esportivos, camisas comemorativas, etc etc etc.

Quando você vai se dar conta que seu time está não apenas contando seu dinheiro, mas rindo de você?

Otááááário, sou otááááário, uô! Uô!
Otááááário, sou otááááário, uô! Uô!

O argumento da fidelidade

Alguns torcedores aceitam tudo isso, mas se defendem com uma idiotice ainda maior: o argumento da fidelidade.

Simplesmente acreditam que existe uma conexão sagrada entre ele, seu time e seus jogadores. São os "fanáticos".

De modo geral, o fanático tem uma visão de mundo maniqueísta, cultivando a dicotomia bem/mal, onde o mal reside naquilo e naqueles que contrariam seu modo de pensar, levando-o a adotar condutas irracionais e agressivas que podem inclusive chegar a extremos perigosos, como o recurso à violência para impor seu ponto de vista.

Tradicionalmente, o fanatismo aparece associado a temas de natureza religiosa ou política, porém, mais recentemente, ele se tem mostrado também em outros cenários, como os das torcidas de futebol e ídolos da música. Enquanto isso, a publicidade do futebol não se cansa de comparar times às suas religiões, alimentando ainda mais fanatismo.

Pior: exigem dos jogadores a mesma fidelidade religiosa. Quando os profissionais trocam de time por ofertas mais lucrativas, são chamados de "traidores" e "mercenários" por fãs que não hesitariam em trocar de empresa por um aumento de 200%. Na cabeça deles, são duas coisas totalmente não relacionadas.

Meu time perdeu, mas pelo menos posso encher o saco de todo mundo!
Meu time perdeu, mas pelo menos posso encher o saco de todo mundo!

Futebol é legal mas não é coisa séria

Ainda acredito em futebol. É o melhor esporte do mundo. O mais emocionante e imprevisível.

Mas esse movimento crescente de fanatismo e violência é insustentável.

Futebol não é sério. Não pode tirar vidas. Futebol é diversão e entretenimento.

Cabe a nós colocar o futebol em seu devido lugar.

* * *

O texto acima é uma adaptação dos seguintes artigos:

O sujeito paga o ingresso, assiste o time perder e ainda extravasa as frustrações no torcedor ao lado: programa perfeito.
O sujeito paga o ingresso, assiste o time perder e ainda extravasa as frustrações no torcedor ao lado: programa perfeito.

publicado em 08 de Dezembro de 2012, 22:48
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Fernando Vasconcellos

Publicitário, quer morar em todas as cidades que visitou de Budapeste a Nova York. Enquanto não tem dinheiro pra isso, gasta seu tempo achando que marketing resolve 90% dos problemas do mundo. Zagueiro com pouco talento.\r\nTwitter: @fvasconcellos


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