Oito homens ao mar

Entre mensagens e tubarões, ele fica à deriva

Oito homens ao mar. Era essa a primeira frase do livro que abriu logo após colocar os cigarros no assento restante do sofá e posicionar na mesinha de centro o copo d’água que esqueceria da existência quando estivesse na metade da terceira página do livro, e sem ainda ter tomado um gole, esticaria uma perna por cima da mesinha para aliviar o joelho direito e acertaria o copo em cheio. Com o calcanhar.

Antes, ainda na primeira página se deu conta que havia passado os olhos pelas palavras numa espécie de transe; e assim que notou, conseguiu visualizar que estava, na verdade, pensando em como ela não gostava de caminhar. Ela não gostava de caminhar, e ele nunca tinha reparado. E agora tinha até certeza disso. Ela caminhava porque ele caminhava, e ele nem podia dizer que gostava de caminhar, mas tinha a sensação de que as conversas fluíam melhor com as pessoas em movimento. Uma vez, quando eles já haviam tornado habitual isso de caminhar pela cidade em longas conversas que variavam apenas no escopo de todos os assuntos possíveis entre os dois, ele leu num artigo do El País como o Steve Jobs preferia, quando suas reuniões eram com uma pessoa apenas, caminhar em vez de sentar em uma sala.

Assim que leu, enviou pra ela por Whatsapp, e logo que ela visualizou, respondeu que não achava que eles tivessem reuniões, eram conversas, e que era muita audácia da parte dele se comparar ao cara que tinha inventado o iphone pelo qual enviava aquelas mensagens. Era óbvio que ela não gostava de caminhar. Mas ele não notou nem daquela vez nem em tantas outras porque, primeiro, estava focado na crítica pessoal, na comparação com o guru do iphone, para a qual ele respondera não ter sido o intuito do compartilhamento, e que não queria comparar as melhores conversas que eles tinham com reuniões de trabalho. Esse jeito, essa falta de percepção, devia ser a responsável pelo término, pensou. E sem se preocupar muito se o cérebro havia processado a leitura — mas ciente de que a primeira frase era curta e promissora: oito homens ao mar; uma boa frase para começar uma história e, afinal, possuindo essa informação, conseguiria entender a trama nas próximas linhas — virou a segunda página.

Após às cinco da tarde, horário em que os tubarões costumam, pontualmente, se aproximar do bote atrás de peixes que nadam próximos à superfície, o sol cai enquanto o nível de silêncio, mesmo entre nós cinco, aumenta. 

Era a frase central de um parágrafo, mas foi a única daquela página que entrou na sua cabeça, e quando virasse os olhos em direção à terceira folha e derrubasse o copo, associaria que dos oito homens ao mar, cinco conseguiram subir no bote salva-vidas. Uma parte dele dizia para voltar e reler, para que tivesse certeza. No entanto, nunca voltou a abrir o livro, e por nenhum motivo especial, apenas circunstância. E foi por circunstância também que avaliou que no espaço de leitura anterior e posterior ao da frase processada no meio do parágrafo, ele estava pensando no quanto era definitivo seu erro de ter proposto o término.

Mas ela podia ter dito que não gostava de caminhar, pensou. E é claro que ela não diria, e se dissesse seria com uma voz modulada, calma e tranquilizadora de que tudo bem, ela gostava de conversar com ele, e isso era suficiente para que enfrentasse um pouco de suor e exercício nessa vida. Ela caminhava com ele mesmo sem gostar de caminhar. Ela podia ter dito isso e tanta coisa, pensou.

Naqueles dias, já acostumado à frequência com a qual era inundado por pensamentos sobre ela, mesmo estando entre a terceira e quarta tentativa de largar o cigarro, optou pelo alívio de ter o maço ao alcance da mão, um elemento irretocável na tentativa de espairecer e nublar a situação da qual paradoxalmente ele tentava fugir mas era atacado com certa constância na boca do estômago ou em um plano inconsciente; como se escapasse pelas entrelinhas do texto que tinha em mãos. Acabou a segunda página.

Seu pescoço chegou a virar milímetros para que os olhos se ajustassem e iniciasse a leitura da terceira página. Dessa não tirou nada, nenhuma frase, não saberia dizer nem se haviam vírgulas no texto da terceira, mas responderia que sim, caso fosse perguntado. Porque a inquietação foi lhe tomando primeiro pelo estômago que parecia se contorcer, depois uma fisgada na têmpora esquerda faria que, mais por reflexo do que por qualquer outra coisa, levasse a mão à cabeça e sentisse o suor começando a brotar pelos poros. E antes de sentir vontade de esticar a perna direita para relaxar o joelho, ele ainda passava os olhos pelas letras empregando certo esforço moral na insistência.

Devia ligar pra ela. Era óbvio. Que largasse o livro e ligasse. Primeiro um cigarro, pensou. Um cigarro e depois ligo, decidiu. E num último esforço, antes do cigarro e da ligação, optou por ler a terceira página para que pudesse encerrar a leitura numa página de número par. Decidido, passou os olhos por mais duas palavras e esticou a perna para aliviar o joelho direito.

Obs.: esse texto foi originalmente publicado no Medium do autor.


publicado em 22 de Fevereiro de 2017, 00:00
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Sergio Trentini

Cursou psicologia, administração e jornalismo. Não terminou nenhuma das três. A última já passou da metade, e essa, jura que vai acabar. Assim como todas as histórias que começa a escrever. Escreve lá no Medium


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