O valor das coisas e das pessoas

Nos países ricos, as coisas são baratas e as pessoas, caras. No Brasil, é o oposto: as coisas são caríssimas, mas as pessoas (ou seja, os serviços que elas prestam) sempre estiveram a preço de banana. Agora, isso está mudando.

Para uma pessoa norte-americana classe média, a vida da sua equivalente brasileira parece uma vida de riqueza.

Os Estados Unidos são a terra do faça-você-mesmo. As meninas se depilam e fazem as próprias unhas. As pessoas se juntam pra pintar as casas uns dos outros. Nas mudanças, o normal é alugar um caminhão e chamar a galera pra carregar caixa. Desde crianças, quase todas as pessoas são acostumadas a limpar a casa, esfregar o chão, lavar roupa: empregada doméstica é luxo de pessoas milionárias.

Mas se você é classe média urbana no Brasil, o mais provável é que contrate profissionais para fazer esses tipos de serviço. Afinal, é tão barato, né? Com esse exército de miseráveis aí fora, com certeza dá pra achar alguém que fique de quatro e lave sua privada por cinquenta reais o dia. Quarenta, se você pechinchar.

E tem outra (essa é minha racionalização favorita): se você mesma se depilar, vai estar tirando emprego da Valdicreide! Como é que ela vai sustentar os quatro filhos em Caixa-Prego, coitadinha?! É muito bonito dizer que "não vou ter doméstica" mas quem vai se dar mal é a Geissy, que não sabe fazer outra coisa! Etc.

Por outro lado, para uma pessoa brasileira da classe média, a vida de sua equivalente norte-americana também parece uma vida de riqueza, mas por outros motivos. Afinal, nos EUA, as pessoas podem até lavar suas próprias meias (cruzes!), mas possuem uma quantidade de objetos, badulaques, gadgets sem igual. A começar por seus carros: nos ônibus, só se veem crianças em idade escolar e pessoas idosas e sem-teto.

Qualquer pessoa com o "corpo apto" tem um carro. Dá pra comprar e manter um carro até com salário de garçonete. Pra não falar dos iPads, iPods, laptops, TVs tela plana, celulares de última geração, etc etc. Um Kindle sai por quarenta dólares: para uma garçonete, é quanto ela ganha de gorjeta em meia hora de trabalho tranquilo, atendendo duas ou três mesas. Ou seja, qualquer um pode ter.

Peter. Garçon. Camisa Hugo Boss, relógio Armani e com um Camaro na esquina, pra ir pra casa depois de bater o ponto

Enquanto isso, nossa pobre classe média escorchada de impostos paga R$56 mil por um Honda City made in Brazil, carro esse que é vendido no México por menos da metade do preço, cerca de R$25 mil. O Kindle, ao alcance de qualquer garçonete americana, no Brasil nem está tão mais caro assim, mas sai por trezentos reais, frete incluso: quantas pessoas trabalhadoras brasileiras podem se dar ao luxo de comprar uma engenhoca que nunca viram, que não é gênero de primeira necessidade, por quase metade do salário-mínimo mensal? Muito poucas. Nossa explorada, injustiçada classe média paga caro por produtos importados e mais caro ainda por produtos nacionais! Como sofre! Ó dó!

As pessoas norte-americanas olham as brasileiras, servidas por um verdadeiro exército de pessoas pobres que lhes depilam as pernas e pintam as paredes, lavam as cuecas e passam as camisas, e pensam: ricas são essas brasileiras, não eu que toda semana tenho que ficar de quatro e esfregar minha banheira!

As pessoas brasileiras olham as norte-americanas, digitando no iMac e jogando Angry Birds no iPhone, conferindo um endereço no GPS e lendo o último best-seller no Kindle, e pensam: ricas são essas gringas, não eu que ainda uso um desktop de 2004!

Agora, entretanto, as coisas estão mudando.

"Ah! Tu também tá subindo na vida, é?" (Kate Middleton)

Nos últimos anos, no Brasil, mais de trinta milhões de pessoas saíram da miséria — no que talvez seja a maior contribuição brasileira à civilização humana. Não melhoramos apenas a vida das nossas pessoas-cidadãs que viviam absolutamente sem perspectiva, mas também, muito mais importante, mostramos ao mundo que era possível fazer mais, que não estávamos, nas palavras de (Fernando Serboncini),

"fatalmente presos dentro dessa lógica umbiguista-cínico-mercadológica. Que apesar de não termos as respostas e de ser preciso humildade pra reconhecer que as decisões nunca são óbvias, não podemos descartar as perguntas. A História não acabou. O que o Brasil fez não foi só um avanço humano, mas de certa forma foi também um avanço histórico."

No começo da década passada, eu tive duas empregadas domésticas. Uma delas fez curso técnico e hoje trabalha em um laboratório químico. A outra, minha comadre, virou banqueteira, e o seu filho, meu afilhado, está estudando pra ser oficial da Marinha.

Quanto menor for o número de mulheres semi-analfabetas dispostas a lavar privada e depilar perna por uma mixaria, maiores vão ser os preços desses serviços. Se algumas delas se tornam técnicas de laboratório e banqueteiras, as consequências são duas:

Em primeiro lugar, os shoppings centers e aeroportos e faculdades particulares ficam lotados de gente que, até poucos anos atrás, simplesmente não tinha renda para frequentar esses lugares.

Em segundo lugar, as cada vez menos numerosas  mulheres ainda dispostas a fazer os piores serviços percebem que seu poder de barganha aumentou. Então, o New York Times noticia que as babás vivem ascensão econômica e se juntam à classe média; a Veja São Paulo informa que agora são as domésticas que ditam as regras do jogo; e a Folha de São Paulo avisa que as pobres mães da classe média paulistana estão criando uma associação para se "defender" de "babás terroristas" e que já começam a importar domésticas paraguaias e bolivianas, mais dóceis (leia-se, mais desesperadas e com menos opções profissionais) que as brasileiras. Enquanto isso, outras "categorias profissionais" começam a sumir e já se fala até em "saudades do embalador de supermercado".

"Limpeza? Não senhor, agora eu trabalho com commodities" (Foto: FORMA - Flickr.com)

Quem ontem cortaria nossa grama por uma merreca, hoje estuda para ser oficial de Marinha. Quem ontem viria lá de Jardim Pobreza pra depilar nossas pernas, hoje mora no mesmo bairro, pega o mesmo metrô e ainda compra a última mussarela de búfala bem na nossa frente no mercado!

Enquanto isso, sofrendo ou não, é bom a classe média brasileira ir se acostumando.

Hoje, no Brasil, existem menos pessoas dispostas a lavar o chão o dia inteiro em troca de um prato de comida. Por isso, entre outras coisas, estamos a caminho de nos tornar uma sociedade mais justa, mais humana, mais digna. E, ao longo desse caminho, as pessoas da classe média vão ter sim que aprender a cortar sua própria grama e fazer suas próprias unhas.

Quem sabe até percebam que nem precisam tanto assim de grama cortada e unha feita.

* * *

Ah, você ia achando que me esqueci dos impostos escorchantes, não?

Afinal, pobres de nós, hoje vivemos no pior dos dois mundos. Não temos mais as pessoas mortas-de-fome dispostas a passar nossas camisetas por dois tostões, mas o Honda City made in Brazil continua custando mais de R$50 mil. Pôxa! E agora, quem poderá nos defender? Classe média sofre mesmo!

Bem, desconjurando aqui um bicho-papão mais querido da nossa classe-média, o Honda brasileiro é tão mais caro não por causa dos impostos escorchantes, mas porque as margens de lucro nas montadoras no Brasil são três vezes maiores que no resto do mundo.

Mas o importante é o seguinte: o nível de consumo das pessoas nos Estados Unidos é tão inviável e desumano quanto a dependência brasileira em miseráveis para nos servir. O ideal não é passarmos a consumir como os Estados Unidos (pois isso quebraria o planeta!), mas que os Estados Unidos também parem de consumir como os Estados Unidos.

Ninguém precisa de iPad, Kindle, GPS, TV tela plana, carro pra viver. Se você quer essas geringonças todas e elas estão muito caras, talvez você não devesse estar desejando artigos de luxo que nem pode pagar.

A solução é querer menos coisas e valorizar mais as pessoas. Não é difícil.

* * *

Esse texto foi reescrito e republicado em janeiro de 2014, para melhorar a argumentação, excluir trechos fracos e tornar a linguagem menos sexista. Confira aqui minhas dicas pessoais sobre como escrever de forma menos sexista.


publicado em 07 de Julho de 2011, 06:11
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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