— Boa tarde. Para onde vamos?

— Boa tarde… Buriti. No anexo. Por favor.

O primeiro semáforo do caminho sinalizou atenção antes da terceira marcha, forçando a desaceleração até a faixa de pedestres. Enquanto pessoas atravessavam com pressa para aproveitar ao máximo as deprimentes duas horas de almoço, o motorista decidiu ligar o rádio. Um Casio antigo, surrado e já descolorido devido o sol que maltrata o plástico. Um CD estava programado para começar automaticamente.

Após estalos e chiados de um leitor muito usado, a introdução de 3 notas de "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos" entoou nas caixas traseiras e da porta esquerda, apenas da esquerda, já que o auto-falante da direita parecia ter sido violado. O motorista encarava o rádio como se consumisse a letra que flutuava pelo carro e morria dentro do seu corpo. Puxei papo:

— Mas é bonita essa música que o Roberto Carlos fez pro Caetano Veloso, hein.

Ele não respondeu. Só me olhou com uma expressão de total tédio. Reforcei:

— Essa música… O Roberto fez pro Caetano. Depois de visitá-lo em Londres. Durante o exílio. Anos 70, sabe.

A expressão foi transformada. Agora, ele franziu a testa e voltou a olhar pro rádio. Voltou a faixa e ouviu os primeiros versos novamente. "Um dia a areia branca teus pés irão tocar… E vai molhar seus cabelos a água azul do mar…".

— Eu ouço essa música há mais de 20 anos. Ela me faz lembrar uma nega que tinha o cabelinho assim, [faz o gestos com os dedos] encaracolado. Sinto falta. E por isso eu ouço a música: pra sentir saudade. Acho que o Roberto Carlos não fez essa música pra baitola do Caetano Veloso, não. Ele fez pra eu lembrar da minha nega.

Os semáforos de Brasília são intermináveis.

Leia também  45 segundos, um mês

Engatou a primeira marcha e arrancou.

Link Youtube

A música e suas várias facetas que possibilitam traduzir o significado que nos for mais conveniente. Naquele início de tarde, nem Roberto Carlos em pessoa arriscaria argumentar com o taxista naquela sinaleira.

O Caetano Veloso, sim. O Caetano Veloso com certeza argumentaria.

***

Nota da edição: Texto originalmente publicado no Facebook do autor.

Fred Fagundes

Fred Fagundes é gremista, gaúcho e bagual reprodutor. Já foi office boy, operador de CPD e diagramador de jornal. Considera futebol cultura. É maragato, jornalista e dono das melhores vagas em estacionamentos. Autor do <a>"Top10Basf"</a>. Twitter: <a href="http://twitter.com/fagundes">@fagundes</a>."