O ritual das despedidas

Embarcaria para a viagem mais importante de sua vida. Itália, dois anos, tudo pago, emprego dos sonhos. Ela não teve coragem de se opor, decidiram terminar tudo, seria ainda mais sofrido não fazê-lo. Só cabia à pequena segurar o choro. A pele do rosto já havia se acostumado ao gosto meio salgado, aprendeu todos os macetes da maquiagem. Varava as noites chorando quieta, mas uns minutinhos na frente do espelho lhe conferiam o rostinho doce e rosado de sempre. Ela não queria estragar nada. Ele seguia.

Armaram uma viagem de um final de semana. Uma despedida. Planejaram tudo. Cada detalhezinho. Cada refeição. Tudo com o maior esmero do mundo. Ela gostava de geleia de morango. Ele comprou. Ele era do tipo que, de manhã, só queria silêncio, mau humor e pão com manteiga. Tinha. Foi pra ser incrível, como foram todos os momentos que precederam as 48 horas derradeiras.

Teve chamego na rede da pousada, que parecia feita só pra eles. Teve putaria por todos os cantos, todos os ângulos, todos os poros. Não haveria de se ter pudor numa hora dessas.

Deram o último beijo no aeroporto, enquanto a comissária efetuava a última chamada.

Dois meses depois, a verba destinada ao projeto que causou a viagem foi cortada e ele foi mandado de volta para casa. Encontrou-a no aeroporto. Achou graça no fato dela estar mais gordinha. O cabelo estava diferente, mas o cheiro era o mesmo.

Tomaram café na padaria e foram irritantemente felizes pelos anos que vieram.

Antes-do-Amanhecer

* * *

Ela sempre dormia na mesma posição. Como que numa rotina maçante e deliciosa, ele fazia um esforcinho para sair da cama sem fazer muito alarde. Escovava os dentes abrindo pouco a torneira, pra não fazer barulho. Fazia xixi sem acertar a água do vaso, que bela prova de amor. Se trocava e ia trabalhar. Ela acordava mais tarde. Deus abençoe o horário de trabalho flexível, dizia.

Voltava pra casa antes, dava um tapa nas coisas e providenciava algo para o jantar. O trabalho para ele era tão estressante, que ele chegava em casa como quem chega de viagem, todos os dias. Aquele beijo-de-oi era um alento que anunciava que as próximas horas seriam melhores do que as que precederam. Como era bom estar em casa com ela. Trocavam poucas frases, não eram de falar muito.

Aquele dia havia sido especialmente estressante. No caminho de volta ele apertou o passo, mesmo não tendo nada para fazer quando chegasse. Abriu a porta e tudo estava estranhamente bagunçado. "Amor?". Sem resposta.

Foi até o quarto e encontrou metade do guarda roupa vazio. A mesma metade que ela foi deliciosamente ocupando mês a mês, agora era um grande espaço vago. As roupas dela não estavam mais lá. No travesseiro um bilhete escrito com pressa: "Não teria coragem de ir embora se te esperasse chegar. Estou indo para a Italia. Desculpe.".

No dia seguinte, ele acordou sozinho, mas saiu da cama sem fazer alarde e escovou os dentes abrindo pouco a torneira, pra não fazer barulho.

* * *

A gente acha que pode determinar onde e quando vão ser as despedidas definitivas, que vamos conseguir tornar esses momentos destacáveis, que vamos ser capazes de colocar neles um ritual, mas não.

O último adeus sempre vem como as coisas mais importantes da vida, absolutamente sem aviso.


publicado em 18 de Maio de 2014, 12:41
Eduardoamuri

Eduardo Amuri

Autor do livro Dinheiro Sem Medo. Se interessa por nossa relação com o dinheiro e busca entender como a inteligência financeira pode ser utilizada para transformar nossas vidas. Além dos projetos relacionados à finanças, cuida também da gestão dO lugar.


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