Uma mulher que sofreu violência sexual lida com inseguranças e o medo de ser violentada novamente. Os impactos são percebidos e vividos pela vítima de maneiras diferentes: alguns terão consequências imediatas e outros ocorrerão a longo prazo. Essas consequências podem interferir no modo como a pessoa se vê, se percebe e também como constrói as suas relações afetivas.
Imaginemos a seguinte situação:
João namora Ana e eles são muito parceiros. No entanto, Ana sofreu uma violência grave antes de conhecer João. Em vários momentos do relacionamento o trauma vem à tona e Ana não deixa com que João se aproxime.
Como lidar com essa situação?
Primeiramente, é importante considerarmos que não há uma receita de bolo ou um mapa com o caminho exato a ser percorrido. Cada pessoa é uma pessoa e cada relação é uma relação. Muitas coisas vocês descobrirão juntos, na experiência de se relacionar. Mas podemos pensar em algumas questões que nos ajudem a tornar esse caminho menos complexo.
A partir do relato de algumas vítimas de violência sexual, percebemos que é importante que o companheiro saiba que essa pessoa pode lembrar do ocorrido e mesmo sabendo que não foi você o autor da violência, ela pode sentir raiva e descontar nas pessoas em volta sem querer ou perceber.
Conversamos com um rapaz que nos compartilhou os sentimentos e vivências estando em um relacionamento com uma companheira que sofreu violência sexual:
“Pode parecer contra intuitivo, mas creio que a primeira coisa que precisei entender ao me relacionar com uma mulher que foi vítima de violência sexual foi que meus sentimentos não serão ignorados na relação.
Você sabe que está em uma relação de amor mútuo, então, pode ter certeza também que sua companheira está preocupada constantemente com os seus sentimentos e desejos”. (V. D)
A sua companheira também dividiu as suas questões conosco, apontando que paciência e diálogo são primordiais para essa relação dar certo:
“Apesar de ser uma situação horrível e parecer óbvio que o outro tenha compaixão pela situação, no dia a dia, o outro não sabe o que é, de fato, ter passado pelo abuso. É uma vivência que não tem explicação e não tem como o outro saber o que são os sentimentos e gatilhos gerados. Então, a única forma de lidar com isso é conversando, expondo o que sente, expondo suas dificuldades e encontrando de forma conjunta, o melhor jeito de lidar com isso”. (C.M)
Ao vermos a pessoa que amamos insegura em relação a nós, é comum que a gente fale:
“Mas eu nunca faria nada disso, eu tô do seu lado, eu te amo. Por que você não me deixa ajudar?”
Às vezes, algo que para o homem é “simples”, como um toque ou um carinho, pode acessar um gatilho emocional desta pessoa. O companheiro precisa compreender que a situação não é tão simples e racional, e que não se resolverá de uma hora para outra. A forma como a violência aconteceu, o período em que aconteceu e todo o contexto influencia em como essa pessoa vai lidar com as lembranças traumáticas e os desdobramentos da violência.
Algumas mulheres podem ter dificuldade nas relações sexuais no início do relacionamento. Voltar a sentir prazer ou ver o ato sexual como algo bom, pode ser um desafio. Mas não apenas isso, também pode aparecer uma dificuldade de confiar, inseguranças, e outros tipos de distanciamentos.
Outra questão importante, é a pessoa que está ao lado de alguém que sofreu uma violência sexual saber que não é ela que vai “curar” o trauma. O processo de se restabelecer após uma violência é longo e individual. Você pode oferecer afeto e companhia, mas não pode querer acelerar o processo. Isso pode acarretar consequências graves e piorar ainda mais a situação.
No começo, muitas coisas são gatilhos e a pessoa violentada nem sabe ou percebe. Só depois de um tempo ela consegue identificar que determinadas irritações, crises e desestabilizações de humor, por exemplo, acontecem por que alguns gatilhos são acionados na relação. Há também a situação de que a pessoa não teve consciência de que aquilo na época foi uma violência sexual e só tempos depois acaba tendo essa percepção, pois cada vítima tem um processo de reconhecimento dos fatos.
É possível superar?
Geralmente ficamos com muitas dúvidas sobre se é possível ou não superar o impacto dessa violência. Mas é importante compreendermos que a superação não é o esquecimento.
Essa pessoa dificilmente irá esquecer o que vivenciou, mas, por exemplo, a partir de um processo terapêutico ela pode reelaborar essa experiência, reorganizar as memórias traumáticas, ter uma melhor e maior compreensão das consequências da violência em sua vida, desenvolvendo mais ferramentas para gerir a sua relação com o que aconteceu.
É comum que essa pessoa esteja mais insegura dentro de uma relação, por isso uma comunicação clara é fundamental. Talvez o simples ato de você falar que vai fazer algo e depois fazer outra coisa, sem ter combinado antes, acione gatilhos nessa pessoa que, por um determinado período, estará reagindo a sinais de uma possível violência que ela acha que está para acontecer. E nem sempre a própria pessoa tem consciência de que ela está neste estado constante de alerta. Aí vem a pergunta: isso nunca vai mudar? Mudará sim. Mas essa pessoa precisa passar, primeiro, pelo processo de identificar os impactos e as influências dessa violência em sua vida.
Quais são os caminhos possíveis para que um companheiro ou uma companheira possa oferecer acolhimento e apoio quando essas questões vierem à tona?
A gente precisa ter clareza de que as consequências vividas por uma mulher que sofre violência depende de muitos fatores subjetivos, então o modo de lidar com a violência também vai ser muito pessoal e precisa ser respeitado:
1 – A culpa não é da vítima
O primeiro passo é não banalizar, responsabilizar ou culpabilizar a pessoa que passou pela violência. Infelizmente ainda é muito comum que as pessoas achem que a violência aconteceu por causa do tamanho da roupa, do estado alcóolico ou do lugar no qual essa pessoa estava. Essa cultura faz com que muitas pessoas violentadas não tenham coragem de contar pelo que passaram, por medo de serem julgadas.
2 – Deixe que ela decida se quer falar com você sobre o assunto ou não
O segundo passo é dar espaço para a pessoa decidir por falar sobre o assunto com você ou também não falar, pensando que esse espaço precisa ser confortável. Falar sobre essa história é mexer de novo em um lugar doloroso. Quando a gente pensa nesse acolhimento é importante também respeitar o silêncio. Por que ele é um comportamento comum. Ele pode se referir tanto a um processo de negação daquilo que foi vivido, quanto também pode ser consequência da nossa cultura que ainda vê o assunto como um tabu e, portanto, um assunto que não pode ser tocado. É muito importante termos em mente que forçar o relato de alguém sobre violência sexual, é equivalente a reproduzir um ato de violência.
A prioridade sempre deve ser possibilitar que essas pessoas possam, de algum forma, revisitar esse assunto, mas sem acrescentar a essas memórias elementos que sejam mais dolorosos do que a própria experiência de violência vivida.
“Algo para mim sempre foi óbvio é: eu tenho que saber escutar. Estar presente, acolher, abraçar, mesmo sabendo que estarei compreendo o mínimo.
Porém, é tão importante, é a pessoa que você ama, rompendo as barreiras dela para te contar algo horrível que não deveria acontecer com ninguém, mas aconteceu com ela. Escutar as experiências do outro, não só as boas, nos une porque “ninguém tem bola de cristal” para adivinhar nada. Essa frase é quase um mantra para nós, pois enfatiza que não é algo unilateral, é a dois. Expor pensamentos, sentimentos, carinhos, vontades, nos quais não se precisa adivinhar… conecta. E ter uma conexão é o diferencial para tornar a vida, a relação e os aspectos difíceis delas, um pouco mais leves. É essa veracidade que desconstrói um pouco os gatilhos de traumas. “ (V. D)
3 – Não é falta de desejo (necessariamente)
É imprescindível que o parceiro não ache que é “falta de desejo” ou falta de amor quando essa pessoa apresenta dificuldades na relação. Entretanto, é importante que o parceiro também comunique de forma empática como se sente em relação a isso, mas sem realizar cobranças ou pressão.
4 – Combinados, sinalizações e conversa sobre gatilhos
É comum que a pessoa que passou pela violência tenha algumas reações mais agressivas por um período, por que acaba que essa é uma forma que ela encontra de tentar se proteger de possíveis violências. Então o casal pode combinar sobre o outro sinalizar quando isso estiver acontecendo. Com o passar do tempo, à medida que essa relação for avançando e essa intimidade for sendo construída, é possível e necessário iniciar conversas sobre os gatilhos, para que haja a possibilidade de se lidar melhor com eles.
“É muito mais importante para mim ter mecanismos que entendem e lidam com situações que geram gatilhos, do que criar objetivos irreiais de que um dia irão sumir. Podem até sumir, mas com o tempo, isso não importa. Saber que está tudo bem se momentos difíceis acontecerem, me auxilia em todos os demais momentos para que sejam bem vividos na relação.” (V.D)”
5. Nós homens precisamos conversar sobre o assunto
Uma ação também muito importante é que os homens possam dividir e conversar mais entre si sobre isso, sobre como tem lidado e dado suporte às suas companheiras. É muito comum que nesse momento você ache que só a sua relação passa por essas dificuldades. Poder dividir ajuda para que o processo seja menos solitário. Lembre-se de, primeiro, falar com a sua companheira antes de dividir algo sobre ela.
6. Acompanhamento psicológico para o companheiro
Se esse companheiro também tiver a possibilidade de receber um acompanhamento psicológico profissional, isso pode auxiliar no caminho para lidar com a complexidade dessas etapas e ambos construírem ferramentas para gerir a relação de forma saudável.
E por fim…
É certo que não é fácil para ambos. Cada um terá que lidar de determinada forma com a situação, se repensar, comunicar, compreender e ter paciência.
Esse texto completo foi feito a partir de relato de mulheres vítimas de violência sexual, casais e também a partir das orientações da psicóloga clínica Carol Mesquita.
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