Roskilde Festival, Dinamarca, julho de 2014. No acampamento, onde festas improvisadas se sucedem num contínuo temporal, um grupo de rapazes canta, dança e bebe umas cervejas do lado de fora da barraca. A alguns passos dali, atrás de uma barraca vizinha, um cara vira-se de costas, abre o zíper da calça e faz xixi. Uma menina se aproxima, fica do lado do cara, agacha-se, abaixa a calça e faz xixi. A festinha continua ao mesmo tempo em que alguns dormem nas barracas e outros circulam pelo acampamento. Enquanto isso, um menino, duas meninas e outro menino repetem a cena do xixi no mesmo local, sem alterar o curso festeiro.

Para os dinamarqueses, parece não importar muito quem está abaixando as calças para fazer xixi no matinho. Mas importava pra mim e pra Gra, amiga e companheira na travessia por sete festivais de música na Europa nos dois meses que se seguiriam. A jornada ainda ganharia lá no final, na Hungria, uma terceira mosqueteira, a Paula, para completar o trio de moças obsessivas-compulsivas por shows que se conheceram na faculdade de Comunicação.

Ali no Roskilde, onde presenciamos a cena em questão durante uma das muitas festas que acontecem no acampamento, dávamos o pontapé inicial na jornada de festivais e também ao Festivalando. Quem? Em sua forma concreta, Festivalando é o site que a gente transformou em bagagem para guardar os “causos” (somos mineiras!), experiências e memórias desses festivais, assim como lugares e pessoas que conhecemos e ainda pretendemos conhecer. Em sua forma abstrata, é a vontade de retomar o fôlego na vida e fazer o que a gente gosta do jeito que a gente quer: escrever, contar histórias, ir a shows, viajar. Tudo isso sem medo de escorregar na água derramada depois daquele chute básico no balde (alguns empregos foram abandonados nessa história).

Quando deixamos o Brasil atrás de um alívio para nossa fissura por shows e de experiências em terra estrangeira para contar no nosso site, não imaginávamos que ver meninos e meninas abaixando as calças lado a lado para atender à simples e natural necessidade de aliviar a bexiga seria uma das histórias que ficariam na nossa memória.

Entre perrengues com dinheiro, comida e banheiro (porque existem perrengues nos festivais europeus também, ainda que em menor grau); shows bons e ruins e episódios isolados como esse de Roskilde, nos festivais eu acabei vivendo de forma muito mais aguda aquele inevitável deslocamento cultural que vem de brinde com o deslocamento físico de uma viagem.

Passar dias e às vezes uma semana inteira indo a um mesmo festival me fez ver dinamarqueses, suecos, suíços, alemães, tchecos e húngaros pintando cenas comuns de seu dia e dia e de sua cultura com tintas mais carregadas. “Culpa” do natural clima de oba-oba, extroversão exacerbada e às vezes um quase desbunde que insiste em impregnar a atmosfera de festivais, mas que não se encontra nos roteiros turísticos tradicionais. Um sentimento cultivado e evocado pela mítica aura de liberdade e liberação herdada, consciente ou inconscientemente do mais mítico e arquétipo de todos os festivais, aquele lá de 1969 – o Woodstock.

Mapa de viagens de música e turismo do Festivalando

É claro que dinamarqueses e dinamarquesas não fazem xixi na rua uns do lado dos outros; existem banheiros separadinhos para cada um. Mas em uma região como a Escandinávia, onde a bandeira da igualdade de gênero é uma política levada a sério pelo Estado e com resultados efetivos (tinha até mulher narrando a final da Copa na TV, gente), a cena das moças e rapazes juntos no matinho sem serem incomodados ou questionados por ninguém é uma amostra desse quadro em sua versão, digamos, mais exagerada e libertina, como pede o clima de festival. O mesmo vale para a outra ponta do extremo, na República Tcheca, no Brutal Assault, festival de heavy metal, quando eu e Gra tivemos que lidar com assédios constantes e infantis de marmanjos que chegaram a tentar fotografar nossas bundas. Uma reprise exagerada e abobalhada dos gracejos que ouvimos nas ruas de Praga, direcionadas a nós mesmas ou a outras moças, muitas com cara de turistas.

Lá na Alemanha, quando passei um fim de semana no Resist to Exist – festival de punk, hard core e ska –, vi que o casal de punks debochados que seguravam um pedaço de papelão com os dizeres “Beer and Weed” (cerveja e maconha) em meio aos restos do muro de Berlim posicionados na Potsdamer Platz não eram só peça decorativa. Sempre há algo por trás da paisagem turística.

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Concentrando uma amostragem na casa dos milhares da população punk que ainda resiste em Berlim, o festival me revelou algumas das diferentes razões dessa resistência e, meio sem querer, algumas sutis desigualdades. Como o menino que penou para me dizer em um inglês meio tabajara que se identificou com o punk diante da dificuldade de conseguir um emprego ou o estudante universitário que mora com a família e disse se identificar com as bandeiras políticas do movimento depois da gente ter uma conversa pseudointelectual e comparativa sobre as pegadinhas do alemão e de línguas neolatinas, como o francês. Foi também no festival que ouvi, durante os shows e no meio do público, os gritos mais altos contra o neonazismo, que hoje é uma assombração institucionalizada na figura do Partido Nacional Democrático (NPD), que propaga seus ideais neonazistas com representação no legislativo alemão em dois de 16 estados.

Mensagens contra o nazismo ressurgente no Festival Resist to Exist.
Mensagens contra o nazismo ressurgente no Festival Resist to Exist, na Alemanha.

E eu, que só queria ver uns shows em lugares por onde ainda não havia passado e fugir do marasmo profissional que me perturbava já alguns anos, voltei para o Brasil sem o emprego que deixei para trás, com nove quilos de excesso de bagagem que me custaram 40 euros e mais uma bagagem na cabeça que vale mais que todos os euros que eu gastei em dois meses e que não pesa nem um décimo do medo que foi deixar para trás um emprego estável.

O Festivalando virou um projeto profissional em potencial, com todo o entusiasmo e energia que eu procurava há algum tempo e que uma ideia nova e promissora naturalmente tem. A peregrinação por festivais foi um encontro inesperado com alguns dos hábitos, valores e comportamentos de jovens como eu nos países por onde passamos, e que não se repetiu nos passeios que fiz por pontos turísticos tradicionais, tão cheios de gente de todo lugar do mundo, mas tão vazios de quem vive e faz o dia-a-dia e a cultura daquele lugar (isso não é um desprezo pelo turismo padrão. Trago comigo também boas recordações da turistagem no muro de Berlim e no Cassino de Montreux, por que não?).

Não imaginava que a vontade de ver os Stones no Roskilde Festival me levaria, sem querer, a ver como homens e mulheres enxergam uns aos outros na Dinamarca, naquela reveladora e anedótica cena do xixi lá do início do texto. Ou que a oportunidade de ir a um festival em Berlim para voltar a ouvir o punk rock que tanto escutei na adolescência me mostraria como há uma camada da população, principalmente jovem, consciente e temerosa dos riscos de uma nova onda conservadora (alguma semelhança com esse Brasil pré e pós eleitoral?). A gente quer explorar ainda mais esse recém-descoberto portal de experiências, e já temos outros cantos do mundo na mira das próximas viagens: Nepal, Japão, Colômbia, Estados Unidos.

Festivais de música:  eventos que aqui e lá apostam tanto numa tal de experiência e seguem se esforçando para entregar ao público ~experiências únicas~ em forma de lounges patrocinados e de uma alegria jovial e descolada pré-fabricada por departamentos de marketing e produção. Mal desconfiam que as experiências já estão prontinhas para acontecer, em qualquer lugar – no palco, claro, no meio do público e até atrás da moita.

Sou jornalista e melômana, não sei se nessa ordem. Coleciono ingressos de shows desde 2001. Agora vou acrescentar exemplares gringos à coleção. Sou autora do site de música e turismo <a>Festivalando</a> e do <a href="http://www.porqueeugostodemusica.com.br">Porque eu gosto de música</a>. Colaboro com o <a href="http://www.brasilpost.com.br/priscila-brito/">Brasil Post</a> e edito o <a href="http://www.bhshow.com.br">BH Show</a>. Também ajudei <a href="http://www.paulvemfalaruai.com.br/">Paul McCartney a falar uai</a> em pleno Mineirão."