O que aprendi com a maior tragédia natural da história do Brasil

Em janeiro de 2011, como muitos devem saber, Teresópolis e outras cidades da região serrana do RJ passaram pela maior tragédia natural da história do Brasil. E isso porque a pilantragem e a política diminuíram ao máximo as dimensões do evento.

O que eu observei de mais interessante foram as reações das pessoas a essa realidade dura e inesperada.

A tragédia

Eu chamo o evento apenas de "a tragédia", e ela ocorreu durante a madrugada. Na manhã seguinte, pessoas enlameadas começaram a ser vistas pelas ruas, como zumbis. Elas buscavam alguma coisa. Qualquer coisa. Umas buscavam o hospital, outras buscavam água, outras simplesmente queriam sair de onde estavam, de qualquer forma que pudessem.

Começamos a ouvir rumores que bairros inteiros tinham sido destruídos, que nada havia sobrado. Tudo muito triste.

Ao longo do dia, a visão de dezenas de helicópteros (marinha, polícia de São Paulo, redes de TV etc) e ambulâncias circulando confirmaram a gravidade da situação.

Só se falava nisso. Em todo lugar víamos pessoas chorando. Quase todos tinham amigos perdidos ou que perderam alguém.

Houve boatos de arrastões e assaltos. A Força Nacional veio para a cidade. Gente armada em todos os cantos. Carros correndo com policiais pendurados com metralhadoras em punho. Cena de filme. Filme de terror.

O IML de Teresópolis fica na delegacia. Comporta cerca de seis corpos.

Em frente à delegacia foi preciso ocupar um galpão vazio (onde era uma igreja evangélica) para se colocarem os mortos encontrados nos primeiros dias. A delegacia fica na avenida principal da cidade. Praticamente todo o trânsito de quem chega na cidade passa por ali. E é também meu caminho pra casa.

Em um ou dois dias, o cheiro podia ser sentido à distância. Eram dezenas de mortos. Mais alguns dias e eram centenas. Alugaram caminhões frigoríficos de transporte de pescados para se alojarem os corpos e restos mortais.

Os números oficiais alegam que foram cerca 380 mortos em Teresópolis. Amigos que foram voluntários (dentistas e advogados, por exemplo) que auxiliaram nos trabalhos de identificação e catalogação dos mortos perderam a conta em muito mais do que isso.

O sentimento coletivo

Há poucos dias, as chuvas castigaram Teresópolis novamente. Foram 5 mortos e quase 1000 desalojados/desabrigados. Desta vez, a chuva atingiu outra parte da cidade (a região onde moro).

Nota-se, com muita facilidade, o desânimo e a tristeza da população. Relembrar aqueles dias de 2011 é horrível.

Em um livro do Chuck Palahniuk (Mais Estranho que a Ficção, uma coletânea de histórias reais) há um texto chamado Bodhisatvas. Nele, uma socorrista relata como os cães de resgate se sentem ao sentir o cheiro de sobreviventes ou o cheiro de morte. Ao sentir o cheiro de sobreviventes, os cães reagiam com euforia. Com o cheiro de morte, por outro lado, eles se abalavam, punham o rabo entre as pernas e ganiam. Na interpretação da socorrista, eles sentiam como se um deles (um membro da matilha) tivesse morrido.

Sinto como se aqui, dadas as devidas proporções de intimidade e contato, ocorresse o mesmo, mesmo que por um período curto de tempo, às vezes alguns instantes.

Tenho tentado perceber de que maneira sentimentos diferentes brotam e como eles se manifestam em situações como essa.

Há uns dez anos li um ótimo livro da Susan Sontag (Diante da dor dos outros) em que ela fala:

“Nós” – esse “nós” é qualquer um que nunca passou por nada parecido com o que eles sofreram – não compreendemos. Nós não percebemos. Não podemos na verdade, imaginar como é isso. Não podemos imaginar como é pavorosa, como é aterradora a guerra; e como ela se torna normal. Não podemos compreender, não podemos imaginar. É isso o que todo soldado, todo jornalista, todo socorrista e todo observador independente que passou algum tempo sob o fogo da guerra e teve a sorte de driblar a morte que abatia outros, à sua volta, sente de forma obstinada. E eles têm razão.

É estranho me imaginar na posição de alguém que observou isso ao mesmo tempo de perto (comparado ao resto do Brasil) e de longe (comparado às vítimas e socorristas).

Percebi, em todo tipo de pessoa que, como eu, viveu de alguma forma aquela tragédia:

1. Um orgulho estranho em saber, em primeira mão, as informações mais importantes ou as confirmações mais trágicas.

-- Minha empregada perdeu os pais, os irmãos, os filhos e ainda teve que ir reconhecer a prima, pela metade no IML.
-- Pior meu cunhado, que resgatou o corpo de três crianças, abraçadas, nuas e mortas debaixo de um carro...

2. Um sentimento competitivo quando os noticiários informavam o número de mortos.

"Friburgo tem 300 mortos?! Teresópolis já tem mais que isso, gente, que absurdo! Eles estão é escondendo as informações..."

(O pior é que acontece mesmo isso, de informações serem escondidas.)

3. Raiva. O prefeito demorou a se pronunciar. As buscas foram suspensas quando ainda se sabia que havia mais corpos. O dinheiro da ajuda sumiu. Alguns donativos foram desviados. Comerciantes aumentaram o preço de velas, vassouras e água a números absurdos. Jornais inventaram novos dramas onde obviamente não era necessário...

4. A compaixão. Pessoas que nem imaginávamos fazendo isso se enfiaram na lama para ajudar no resgate, outras na identificação de corpos, outras no recolhimento de doações. É difícil não se emocionar. Os jipeiros e trilheiros de moto também vieram no dia seguinte ajudar a levar mantimentos, enfermeiros, médicos, bombeiros a lugares onde ninguém chegava.

5. A culpa. Muita gente parece que fica paralisada e não sabe como agir. Ao ver conhecidos relatando como ajudaram e o que fizeram (alguns com certo orgulho também), sentem-se culpados.

A culpa por seguir com sua vida enquanto assiste ao fim de outras.

(Após o trabalho, fui beber uma cerveja com um colega de trabalho. Passa um caminhão com cerca de 30 caixões com corpos. O cheiro permaneceu por algum tempo ainda. Nós estávamos bebendo cerveja.)

6. A Pena. Ver pessoas brigando pelo reconhecimento de um morto. Assistir o desespero de famílias diferentes que precisam de um ponto final. Elas brigavam pela certeza de que aquela foto ou aquele corpo era de seu ente querido, e não do outro. Assim poderiam ter um novo ponto de partida.

Isso para não falar das dezenas de animais feridos e doentes.

7. A humildade. Um homem perde tudo. Perde a casa, as coisas, a família. Em uma madrugada. É esse homem que, após dias sem socorro, enterra o próprio filho no quintal. E é esse homem que, num lampejo lúcido, diz: agora vou começar de novo.

* * *

O "dano" que eu, particularmente, sofri foi o de ter que subir a minha rua a pé (um buraco gigante tomou a rua inteira, impedindo o trânsito). E a minha empresa ficou sem telefone e internet por alguns dias. Só isso.

Não vivi o terror. Só o vi.

Dá para colocar nossa vida e nossos problemas em perspectiva.

* * *

Para muitos que viram e viveram essa experiência, ouvir qualquer helicóptero, ver qualquer caminhão de pescados, comboio de jipes ou motos de trilha dá arrepios.

Esse arrepio parece ser sinal de que existe uma sensação de coletividade que nos une. Que temos sentimentos em comum. Será que essa sensação só brota, assim forte, em situações de tragédias como essa?

Quer colocar isso em prática?

Para quem está cansado de apenas ler, entender e compartilhar sabedorias que não sabemos como praticar, criamos o lugar: um espaço online para pessoas dispostas a fazer o trabalho (diário, paciente e às vezes sujo) da transformação.

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publicado em 02 de Maio de 2012, 06:42
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Vítor Barreto

Editor da Lúcida Letra/2AB Editora, mora em Teresópolis, participa d'O Lugar e se interessa por meditação, comunicação não-violenta e como as pessoas podem se ajudar a viver melhor. No instagram: @vitbarreto.


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