O que a manifestação de hoje teve de diferente? 

Nosso autor da série "Para entender política" estava lá para ver com os próprios olhos e compartilhar conosco suas impressões

O clima de Copa do Mundo diminuiu, assim como a adesão. Em frente ao Masp, onde me instalei, andava-se tranquilamente entre as 14:00 e 15:00 – no mesmo horário, na última manifestação, não conseguia andar.

Cartazes contra corrupção, aos montes. Fora PT, fora Dilma. Um ou outro sobre o presidente da Câmara Eduardo Cunha, nada sobre o presidente do Senado, Renan Calheiros, pouquíssimo sobre o PMDB em geral. Volta FHC. Fotos com Polícia Militar, selfies. Pessoal se hidratando, ambulantes vendendo garrafas d’água. Vuvuzelas, apitos e até um reco-reco.

Nada fora do comum para uma manifestação. 

O tom do discurso se elevou. Se antes o mote era contra a corrupção de maneira genérica, hoje os palanques defendiam claramente a saída da Presidente, seja por renúncia, seja por impedimento.

Intervenção militar, como se ouvia falar na última manifestação, não ouvi. 

Enfim, descrições sobre as manifestações vocês vão encontrar aos montes amanhã, com direito a fotos, memes, provocações, ironias e tudo mais de bom e de ruim que a Internet oferece.

Fui à manifestação de hoje, como da última vez, para buscar informações na fonte e tentar trazer uma voz própria para este espaço. O que eu quero, aqui, é levantar pontos de reflexão que possamos aproveitar em nosso desenvolvimento político e abrir um diálogo construtivo nos comentários. Aliás, os comentários têm sido sempre de elevadíssimo nível e com raríssimos ataques pessoais, pelo que agradeço. 

Vamos às impressões. 

Partidarização 

Difícil negar o caráter partidário da manifestação de hoje.

Por mais que, no discurso, os organizadores insistam em dizer que não, as palavras de ordem que saíam dos carros de som, os cartazes dos manifestantes, os pedidos de prisão, todos, em sua imensa maioria, eram contra o Partido dos Trabalhadores. O povo paulista jamais será petista, em ritmo de o povo unido jamais será vencido, e até carro de som falando que o Fernando Haddad não pode se reeleger para a prefeitura de São Paulo. 

O primeiro ponto de reflexão que proponho é o seguinte: por que a insistência na ausência de interesse partidário das manifestações?

Mirem, vejam: particularmente, considero a partidarização dos movimentos um traço de população politicamente ativa, e não vejo absolutamente nenhum problema que a manifestação seja organizada pela oposição em detrimento da situação.

Por que negar, então? Ofereço aqui algumas ideias para discussão. 

Para tentar sair do óbvio, o discurso de apartidarismo confere uma confortável irresponsabilidade e, por isso mesmo, tem o poder de agregar muito mais pessoas.

É como se dissessem: não queremos o Partido dos Trabalhadores no Poder, mas também não queremos correr o risco de indicar uma alternativa da qual eu possa vir a me arrepender.

A consciência permanece em paz, em cima do muro: se, por um lado, luta-se para derrubar algo que se acredita estar errado, por outro, não há compromisso em construir algo melhor, mantendo para sempre a posição de crítico, e nunca de criticado. 

Uma outra possibilidade para o proclamado apartidarismo das manifestações pode ser o simples fato de que alguns manifestantes não conhecem os partidos políticos brasileiros, e os organizadores adotam propositalmente um discurso pouco tangível contra um, em favor de nenhum.

As pessoas podem estar se dizendo apartidárias quando, na verdade, desconhecem o partido que mais se aproxima de suas convicções políticas. 

Ser contra tudo e todos tem seu charme de rebeldia juvenil, mas ele acaba lá pelos vinte e poucos anos. Se continuamos com esse mesmo discurso, corremos o risco de manter diálogo somente com essa mesma audiência rebelde e juvenil e perder credibilidade em discussões verdadeiramente construtivas. 

Sei que as ideias levantadas acima podem soar agressivas (você está me chamando de irresponsável, no primeiro caso, e de desinformado, no segundo), mas esse realmente não é meu objetivo, que é entender a razão pela qual parte dos organizadores ainda insiste no tal apartidarismo.

O apartidarismo, por exemplo, é ótimo em um discurso de democracia direta (em que o cidadão vota diretamente, sem o intermédio de representantes), mas não encontrei pessoas defendendo esse tipo de alteração estrutural. Se tiver alguma outra ideia, não se acanhe e vamos conversar nos comentários. Levantei os dois pontos porque já me peguei usando desses recursos em diversas ocasiões e transpus minha experiência para a discussão política. 

Já disse, em algum comentário aos meus textos anteriores, que jamais anulo meu voto. É uma decisão difícil, mas para mim representa a tranquilidade de ter tentado o melhor, ainda que isso implique o amargo gosto de se provar errado no futuro.

Um ótimo exercício político... 

Seria que os manifestantes apartidários aceitassem algum nível de responsabilidade e saíssem do armário em defesa de seus partidos e de suas propostas de mudança.

Correr o risco do sucesso e do fracasso, de ser questionado e, inclusive, de ver sua posição alterada depois de uma discussão franca e aberta são atitudes que só têm a contribuir para nosso desenvolvimento político. 

Lembram no último texto, que falei da indignidade seletiva?

Pois bem, a partidarização resolveria o problema. Assumindo-se abertamente como uma manifestação da oposição, ela não teria compromisso com um bem maior acima do bem e do mal (e dos partidos, como se pretendia no início), mas apenas com a defesa dos interesses da oposição que, atualmente, é retirar a Presidência do Partido dos Trabalhadores. Simples, transparente e direto. Ah, mas e o tremsalão? Faça sua própria manifestação contra isso, oras

Impedimento e Renúncia

Se a adesão diminuiu em números, o tom se elevou.

Nos carros de som, palavras como ação política mais forte, renúncia, impeachment e vamos sangrar o PT e acabar com esse câncer do Brasil.

Ânimos exaltados. Lembram que, também no último texto, disse que faltava foco nos manifestantes? Pois bem, nesta manifestação o foco está na alteração do comando do Poder Executivo federal. O grupo do abaixo tudo, tirar tudo isso que está aí, etc., deu uma sumida, o que eu acho ótimo, porque tirou o caráter de festividade da última manifestação.

Há claramente um objetivo traçado. 

Um alívio foi que a turma da intervenção militar minguou, e as palavras eram mesmo de impedimento e renúncia. Ou seja, soluções institucionais, baseadas na Constituição Federal, que não demandam quebra do ordenamento jurídico. Vivemos muito pouco tempo de democracia para cairmos de novo em um estado de exceção, e já respiro um pouco mais aliviado. 

Isso porque não vejo uma crise institucional: vejo uma crise política, com déficit de confiança nos agentes públicos, e não necessariamente nas instituições. Não enxergo tanto o alegado golpismo (i.e., tentativa de quebra da ordem jurídica para tomada de poder), mas sim um legítimo exercício de direito à manifestação e discussão aberta sobre as possíveis responsabilidades da Presidente.

Contanto que a ação política mais forte se mantenha dentro do aceitável juridicamente, a situação está tranquila. 

Pode parecer pouco, mas não é. Normalmente, as pessoas imaginam que a situação política é um dado imutável, impassível de alteração. Não é bem assim, e algumas cabeças foram separadas do tronco em razão dessa falsa segurança.

A história acontece com democracia, sim, mas também com revoluções, golpes e rasteiras políticas que podem alterar o curso dos acontecimentos e desestabilizar o ambiente político.

O mero fato de grande parte da manifestação dar atenção a questões constitucionais implica uma responsabilidade institucional por parte dos atores políticos, que provavelmente entendem que a instabilidade decorrente de uma quebra do ordenamento jurídico é muito mais prejudicial do que a manutenção do adversário político no poder. 

Apenas para ilustrar a seriedade do que estou falando, quando digo instabilidade, eu quero dizer possível guerra civil, em maior ou menor grau, com a formação de grupos armados, atentados terroristas separatistas, choque de insegurança, militarização. Isso, meus caros, causa um impacto econômico gigantesco, além do sofrimento da população com tamanho nível de estresse e perdas.

É alarmista, mas é uma possibilidade muito real quando se rompe com o ordenamento jurídico (e ninguém acha que pode acontecer até acontecer). 

Como já falei em um comentário de um outro texto, não vejo bases jurídicas para o impedimento, neste momento, e por isso a única saída que vejo para os manifestantes é a pressão política por uma eventual renúncia. Se essa pressão é boa ou não para o país, depende do seu ponto de vista político. 

Comentários finais

Pessoalmente, estou otimista.

É praxe achincalhar nossa educação e baixo nível de consciência política. Sim, todos sabemos que a nossa educação é ruim e que nossa consciência política é baixa, mas estamos melhorando.

A discussão política em que o país se inseriu nos últimos meses trouxe para o homem médio a diferenciação entre Câmara, Senado e Presidência, conceitos de responsabilidade fiscal, exigência de transparência na condução das sociedades de economia mista, separação das funções dos entes federativos, todas essas questões que já tratamos na série Para entender política.

Tenho impressão de que hoje o brasileiro tem mais contato com política do que há 1 ano atrás. Estamos longe do ideal? Muito, muito longe.

Mas tenham em mente que nossa tradição democrática é recente, e que política se aprende e se ensina com o tempo. 

Vamos juntos. 

* * *

Para se aprofundar:


publicado em 16 de Agosto de 2015, 17:45
File

Thiago Trung

É advogado de propósito. Gosta de arte, música e política e acredita que sempre dá para mudar. Acredita também que Yourcenar está sempre certa, e que isso não muda nunca.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura